Opinião

Na democracia, a responsabilidade pela ordem social é nossa

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14 de setembro de 2021, 20h31

Não existe vida social sem responsabilização. A organização em sociedade, com o surgimento do Estado, impôs à condição humana a responsabilidade pela ordem e pelo cuidado com o funcionamento harmônico da sociedade. Assim nasceram as leis e sua aplicação. E é da Babilônia, em 1770 a.C., que temos a primeira notícia de uma organização legal. Eram guiamentos criados pelo rei — e aplicados por ele próprio — para disciplinar a convivência social. Em seu bojo, já havia o conceito da Lei de Talião, que ficou mais conhecido por nós pela disseminação do Antigo Testamento, nos livros "Êxodo", "Levítico" e "Deuteronômio": o rei poderia autorizar a punição dos vassalos na mesma moeda que usaram para prejudicar um igual, ou seja, o "olho por olho, dente por dente".

Mas é a Lei das 12 Tábuas (Roma 462 a.C.), que versava sobre organização e procedimento judicial, normas para os inadimplentes, poder pátrio, sucessão e tutela, propriedade, servidões, delitos, Direito Público e Direito Sagrado, que, ao ser pregada no Fórum romano para conhecimento de toda população, fundamentou uma divisão de poderes ao combater o privilégio real no controle jurídico sobre a população. A teoria da tripartição de poderes como combate aos abusos praticados pelo rei nasce desse exemplo, sendo posteriormente desenvolvida por Aristóteles (340 a.C) e constantemente aperfeiçoada até a modernidade, quando Montesquieu (1747) criou a divisão entre Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário — fazendo com que um poder controle o outro, ou, ao menos, seja um contrapeso —, que vigora praticamente até os dias de hoje.

O aperfeiçoamento moderno da tripartição dos poderes teve como pedra angular a neutralidade política do Judiciário, que se mostrou uma peça importante na caracterização do Estado de Direito. É impossível, porém, que a estanqueidade do conceito permaneça até hoje e inúmeros são os teóricos que atualmente consideram antiquada a teoria moderna da separação dos poderes.

Alguns chamam a atenção para o sistema de freios e contrapesos da Constituição americana e oporiam a ela uma leitura equivocada de Montesquieu, de separação literal, que a Constituição nacional teria adotado; outros chamam a atenção para uma importante distinção entre poder e função, como acontece aqui no Brasil. No caso da Constituição brasileira, se o poder emana do povo, não temos "poderes" do Estado, mas funções, e a interpenetração de funções deixaria evidente um gosto de Montesquieu pelo equilíbrio, em oposição à "separação" de poderes.

Há, ainda, os que deixam claro que há deficiências nessa divisão, não sendo possível estabelecer fronteiras nítidas entre elas, nem criar órgãos que exerçam essas funções com exclusividade; e aqueles que chamam atenção para o caráter político da formação das leis e, portanto, das próprias decisões tomadas no exercício das funções. Outros, ainda, evidenciam o avanço da sociedade tecnológica após o Modernismo, que aumenta o nível de complexidade da vida humana, o que tem feito com que as atividades de controle deixem de voltar-se para o passado e passem a se ocupar do futuro. E, por fim, há quem se lembre das novas tecnologias estatais, como a expansão das agências reguladoras, que praticamente realizam atos legislativos, executivos e judiciais, tem mitigado a importância da estrutura calcada nos três poderes e colocado em dúvida a necessidade desse princípio para garantir a liberdade.

De qualquer forma, a separação de poderes é um princípio adotado na maior parte dos Estados modernos e as questões que avançaram na indubitável complexidade da vida contemporânea deixam evidente que não é mais possível considerá-lo absoluto, na medida em que há uma interpenetração, com situações de exercício de funções que não são próprias a cada um dos poderes considerados. Além disso, há mecanismos de controle recíproco, caracterizadores do sistema de freios e contrapesos, que visam evitar a concentração de poder e, consequentemente, a ocorrência de abusos, conforme alertava já havia muito Montesquieu.

No Brasil, a Constituição estabelece, no artigo 2º, que os poderes são independentes, e o artigo 60, §4º, III, veda emendas à Constituição que possam abolir a separação de poderes, tornando esse dispositivo "cláusula pétrea". E vai mais além ao estabelecer que a organização do Estado brasileiro pressupõe a independência e a autonomia do Poder Judiciário frente aos demais poderes, sendo essa autonomia ampla, abrangendo os aspectos administrativo e financeiro, conforme expressamente previsto no artigo 99 da CF.

A Constituição é a lei máxima de um país, que traça os parâmetros do sistema jurídico e define os princípios e diretrizes que regem uma sociedade. Ou seja, ela organiza e sistematiza um conjunto de preceitos, normas, prioridades e preferências que a sociedade acordou. É um documento jurídico, mas guarda origens sociológicas e políticas, sem dúvida. E a Constituição de 1988, embora seja para o Direito nacional um marco zero, levou em conta o estado da arte das discussões de questões sociais, morais, antropológicas e as questões internacionais que permearam seu debate na época da redemocratização.

Ou seja, ela e suas inúmeras emendas constitucionais constituíram as funções do Estado, cujo poder emana do povo, e estabelecem funções exercidas de forma imprópria pelos poderes. Seja a função judiciária do Legislativo, pelas Comissões Parlamentares de Inquérito, ou as funções judiciárias e legislativas do Executivo, por meio das agências reguladoras e autarquias — como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica — ou do próprio Departamento de Trânsito e suas multas.

Retomo aqui à primeira frase deste artigo: não existe vida social sem responsabilização. E um poder que se exime de exercer sua função pode — e deve — ser responsabilizado e "corrigido" pelos demais, não numa ação de sobreposição, mas no exercício da independência harmônica nas relações de governança. Se o Legislativo não legisla, ou se o Executivo não executa — ou executa errado nos termos da Constituição —, caberá ao Judiciário corrigir, mediante os dispositivos constitucionais e infralegais, garantindo que tais funções sejam exercidas, para o bem da governança. E é aí que mora nosso imbróglio atual.

O STF é a guarda da Constituição. Se há alguma ação (ou omissão) constitucional que precisa ser realizada, cabe a ele apontar o caminho da governança, seja através do controle difuso, que pode ocorrer no curso das mais diversas ações judiciais, ou do controle concentrado, que produz efeitos erga omnes (seja através de ação direta de inconstitucionalidade ou ação declaratória de constitucionalidade; seja por meio da arguição de descumprimento de preceito fundamental; seja no julgamento de causas e conflitos entre a União e os estados, a União e o Distrito Federal ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta).

Todas as questões da vida comum e da vida política podem ser questionadas no Judiciário. É o poder "mais próximo" do cidadão, aquele em que a porta está aberta para acolher diretamente os pedidos individuais. Levar os conflitos para o Judiciário, ou judicializar as questões, é fácil (caro e demorado, mas fácil). Não só isso, o Judiciário tem a obrigação de agir quando provocado. Assim, sempre que um direito for negado, mesmo que por falta legislativa, o Judiciário pode ser instado a se manifestar. Quando faltam políticas para mulheres, quando faltam políticas para minorias, quando direitos difusos e coletivos são atacados pelo Executivo, o Judiciário será acionado.

Temos outras formas de resolver conflitos sem o Judiciário, mas quanto mais difícil o diálogo e a política (quanto menor for a representatividade das múltiplas visões sociais) maior será a judicialização. A ausência de ação dos demais poderes ou a ação inconstitucional dos mesmos leva, invariavelmente, à sobrecarga do Judiciário.

E, na democracia, a responsabilidade pela ordem social é, acima de tudo, nossa, individual, cidadã. Quantos de nós têm silenciado minorias? Quantos de nós têm olhado apenas para nossas próprias questões nos conflitos sociais? Quantos de nós têm ajudado a negar direitos, elegendo políticos com menos representatividade, criado um Legislativo menos atuante nos conflitos? Quantos de nós somos capazes de entender a liberdade individual como um pacto coletivo e de autorresponsabilização? Quantos de nós contribuem diuturnamente para levar os conflitos ao Judiciário, falhando na escuta, na mediação, na mitigação democrática dos conflitos? E quantos são os mesmos de nós reclamando da judicialização da política? Pois é… Essa conta não fechará jamais.

Reclamar do STF exercendo sua função é, antes de tudo, olhar para nós mesmos e pensar: onde nós não estamos agindo e, portanto, contribuindo para sobrecarregar o Judiciário? E justamente porque eu olho em volta e vejo a gente votando mal, convivendo mal, sendo péssimos cidadãos, é que eu deposito no Supremo a confiança da guarda da Constituição Cidadã.

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