Opinião

'Caso Evandro', 'caso Escher', usurpação de funções e violações de direitos humanos

Autor

  • Lucas Ferreira Dutra

    é bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo pós-graduado em Direito Penal Econômico pelo IBCCrim e pela Faculdade de Direito de Coimbra e delegado de Polícia Federal.

11 de setembro de 2021, 9h13

A história do "caso Evandro" chegou até boa parte de nós através do escritor Ivan Misazuk, em seu podcast "Projeto Humanos", posteriormente transformado em série.

Evandro Ramos Caetano desapareceu em 6 de abril de 1992 na cidade de Guaratuba (PR). Nessa época havia um "surto" de crianças desaparecidas na região, o que vinha causando grande preocupação da população e das autoridades.

O corpo de Evandro foi encontrado cinco dias após seu desaparecimento. O corpo estava sem o couro cabeludo, sem os olhos e sem parte das mãos e dos pés.

A elite da Polícia Civil do Paraná, o chamado Grupo Tigre, foi enviada até Guaratuba para investigar o desaparecimento de Evandro. Após meses de investigação, a Polícia Civil ainda não havia conseguido apontar possíveis responsáveis.

Acreditando que a Polícia Civil não estava fazendo seu trabalho de forma devida, o Ministério Público solicitou que grupo de inteligência da Polícia Militar (PM) passasse a investigar o caso. Assim, chegou a Guaratuba o Grupo Águia, comandado pelo então capitão da PM Valdir Copetti Neves, que rapidamente apontou sete culpados pelo crime.

Esse grupo da Polícia Militar, partindo de uma denúncia apresentada por um parente de Evandro, conseguiu a confissão de cinco dos sete presos. Todos os que confessaram foram condenados pelo crime, salvo uma, que teve a punibilidade extinta pela prescrição.

Em 2020, Ivan Mizanzuk teve acesso às fitas originais de áudios gravados pela Polícia Militar durante a confissão dos acusados. Esses áudios comprovam que os investigados foram torturados para confessar a morte de Evandro.

Voltando a 1999, o agora major Valdir Copetti Neves, chefe do Grupo Águia, apresentou ao Judiciário um pedido de interceptação telefônica para investigar pessoas ligadas ao MST que estariam envolvidas em práticas delituosas. O pedido foi deferido sem fundamentação judicial e o Ministério Público não foi notificado do procedimento.

O major Neves não presidia qualquer investigação formal em andamento, sendo que o pedido foi feito de forma isolada, sem fundamento em inquérito policial ou ação penal.

Esse caso chegou à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que condenou o Brasil no chamado caso Escher vs Brasil [1].

A corte entendeu que, por se tratar de investigação de crime comum (não militar), somente a Polícia Civil poderia ter feito a solicitação de interceptação telefônica ao Poder Judiciário.

Tanto no "caso Evandro" quanto no "caso Escher" podemos observar que a usurpação de funções de investigação pela Polícia Militar, em detrimento da Polícia Civil, levou a péssimos resultados. No caso Evandro, a Polícia Militar atrapalhou a investigação conduzida pelo Grupo Tigre, e ainda levou a prisão pessoas inocentes, que confessaram mediante tortura. Já no "caso Escher", a investigação da Polícia Militar levou a violação ilegal do direito a intimidade dos investigados, bem como acarretou a condenação do Brasil perante a CIDH.

A Polícia Militar tem papel relevantíssimo no desenho da segurança pública brasileiro. Conforme o artigo 144, §5º, da CF, cabe às Polícias Militares exercer o policiamento ostensivo, preservando a ordem pública. Com efeito, a falta do trabalho do policial militar acarretaria em uma verdadeira anarquia social. O policiamento ostensivo é essencial para prevenir o crime, através da dissuasão que a presença policial causa nos criminosos, bem como para reprimir de forma imediata os crimes que estão ocorrendo.

Porém, após a consumação do crime, não cabe à Polícia Militar a investigação de infrações penais comuns. Nesse sentido dispõe a CF, no mesmo artigo 144, que cabe à Polícia Federal e às Polícias Civis a investigação de infrações penais, exceto as militares.

Assim, toda e qualquer investigação de crimes comuns conduzida pela Polícia Militar, ou por outras polícias ostensivas, é ilegal e inconstitucional. Não se trata aqui de mera burocracia sem sentido. A separação de funções foi pensada pelo legislador constituinte.

Primeiramente, a separação entre polícia ostensiva e investigativa faz parte do sistema de checks and balances, de contenção do poder estatal brasileiro. O fato de o policiamento ostensivo e a investigação criminal de cidadãos comuns serem feitos por instituições diversas cria filtros de proteção ao cidadão. O flagrante, via de regra, realizado pela Polícia Militar deverá passar pelo crivo da Polícia Judiciária, que posteriormente investigará o crime.

Cabe ressaltar ainda que a Polícia Judiciária conta com um profissional, bacharel em Direito, aprovado em concurso publico para exercer função de natureza jurídica, conforme a Lei 12.830/2013, o delegado de polícia, o qual será o responsável por velar pela legalidade do flagrante e pela condução do inquérito policial.

Aliás, o delegado de polícia é o único policial com capacidade postulatória em inquéritos que investiguem crime comum, como bem definiu a CIDH no "caso Escher". Sem capacidade postulatória não é possível que a Polícia Militar conduza inquérito policial por crime comum, de forma que, além de ilegal, este seria totalmente ineficiente.

Por falar em eficiência, esse é outro ponto do por que existe a divisão de funções nas polícias brasileiras.

Assim como a Polícia Militar é especializada no policiamento ostensivo, a Polícia Federal e as Polícias Civis são especializadas em investigação. Nesse sentido, não há porque trocar esses papéis, ou seja, permitir com que a Polícia Militar proceda a investigações de crimes comuns, enquanto a polícia investigativa patrulha as ruas. Não somente ilegal, essa sistemática seria totalmente ineficiente.

Não estou dizendo que as polícias investigativas nunca cometem erros ou que suas investigações são sempre bem-sucedidas. Porém, me parece claro que a polícia especializada em determinado tipo de serviço terá, via de regra, melhores resultados na prática deste.

Em qualquer área do conhecimento sempre que desejamos que uma tarefa seja realizada da melhor forma possível recorremos a especialistas na área. Por que seria diferente na área policial? Por que uma polícia que "faz tudo" seria melhor em investigar do que uma polícia que "só" investiga?

É comum que pessoas em geral digam que a polícia brasileira tem um índice de resolução de homicídios de 6% ou 8%. Porém, esses dados não estão de acordo com a realidade — e, sinceramente, não consegui encontrar de onde vieram [2].

Segundo o estudo "Onde Mora a Impunidade", de 2020, do Instituto Sou da Paz, referente a homicídios ocorridos em 2017 e esclarecidos até 2018 (ocorrências que geraram denúncias criminais), a média nacional de esclarecimento de homicídios é de 33,1%. No entanto, o número é bem mais alto em alguns estados. No Mato Grosso do Sul, por exemplo, o índice de resolução é de 67%, e no Distrito Federal chega a 92% [3].

A título de comparação, segundo o mesmo estudo, os EUA obtiveram uma taxa de resolução de homicídios de 58,83% em 2018, conforme dados oficiais do Federal Bureau of Investigation (FBI).

Esses dados demonstram que o modelo brasileiro não é ineficiente, e que, aliás, ele pode ser muito eficiente quando há investimentos e capacitação dos servidores.

O "caso Evandro" e o "caso Esher" são exemplos de como a usurpação de funções das polícias investigavas pode causar graves violações de direitos humanos, bem como acarretar impunidade. Nesse sentido, é essencial que cada polícia exerça a função que lhe foi dada pela Constituição, a função para a qual aquela polícia "nasceu", e a função na qual ela é especializada. Não defendemos aqui um sistema estanque, a cooperação entre todas estas instituições é essencial no combate ao crime, porém cada qual dentro da sua área de atribuição constitucional.

 

[1] https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_200_por.pdf.

[2] O Relatório "Meta 2: Impunidade como Alvo" realizado pelo CNMP, CNJ e Ministério da Justiça em 2012 comenta que os índices de resolução de homicídios estariam entre 5% e 8%, mas não apresenta qualquer dado com relação a isso, e aliás, de acordo com os dados dos inquéritos finalizados na Meta 2 do programa o índice estaria em 19%.

[3] https://soudapaz.org/o-que-fazemos/conhecer/pesquisas/politicas-de-seguranca-publica/controle-de-homicidios/?show=documentos#3969.

Autores

  • é delegado de Polícia Federal, pós-graduado em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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