Opinião

O home office e a possibilidade de redução salarial no Brasil

Autor

  • Cristiane Fátima Grano Haik

    é advogada sênior do escritório Furriela Advogados pós-graduada em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Universidade Gama Filho mestre e doutoranda em Direito das Relações Sociais — Direito Previdenciário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo — palestrante professora em cursos preparatórios para concurso público e na pós-graduação do Complexo Educacional FMU nas disciplinas de Direito Previdenciário e do Trabalho.

9 de setembro de 2021, 19h11

É certo que desde o início da pandemia da Covid-19 o home office, que antes era algo praticado apenas por algumas empresas e, mesmo assim, quase sempre em modelo de trabalho híbrido — aquele que mescla dias de trabalho presencial com dias de trabalho remoto dentro da mesma semana —, passou a ser algo que a realidade pandêmica impôs de um dia para outro a quase todos os ramos de atividade.

Não são poucas as polêmicas e incertezas que norteiam o tema, que vão desde trabalho excessivo e direito à desconexão até dúvidas de ordem prática, como a necessidade ou a possibilidade de controle da jornada ou de custeio das despesas com energia e provedor de internet pelo empregador.

Para além disto tudo, recentemente [1] o noticiário internacional deu conta que em países estrangeiros grandes empresas pretendem reduzir a remuneração dos empregados que permanecerem em home office. A justificativa para tal decisão é que o dispêndio com o deslocamento está incluído no pacote remuneratório do trabalhador, de modo que a ausência de deslocamento devido ao trabalho em home office acarretaria proporcional diminuição da remuneração.

Mas será que isso é possível no Brasil? Em caso negativo, por quais motivos? Se puder, em que circunstâncias? Quer dizer, no Brasil é possível justificar a diminuição da remuneração do trabalhador que passou a trabalhar em home office, sob a justificativa de eliminação do gasto com deslocamento para o local de trabalho.

Eis uma análise que requer todo cuidado e atenção devido às várias nuances que a questão comporta.

Em primeiro, vale sempre lembrar que a irredutibilidade salarial é princípio dos mais marcantes no Direito do Trabalho, ao lado de outros igualmente relevantes e que desembocam na mesma conclusão, como o da proteção do trabalhador, da condição mais benéfica, da inalterabilidade contratual lesiva e da intangibilidade salarial, tudo ancorado na presunção de hipossuficiência do trabalhador e na evidente natureza alimentar e essencial do salário.

Sendo assim, a princípio, o salário do empregado não pode ser reduzido por ato unilateral do empregador por determinação expressa da Constituição Federal, que em seu artigo 7º, inciso, VI, elenca como direito dos trabalhadores urbanos e rurais a irredutibilidade do salário. Contudo, o mesmo dispositivo da Constituição prevê a exceção à regra da irredutibilidade salarial, e uma importante solução para o problema, qual seja, a negociação coletiva, ou seja, aquela que envolve o sindicato representativo da categoria.

Contudo, a possibilidade de redução salarial mediante negociação por meio de convenção ou acordo coletivos, no Brasil, não se reduz às palavras da Constituição Federal e deve observar, além dos já citados princípios do Direito do Trabalho, a regulamentação da Consolidação das Leis do Trabalho, que no parágrafo 3º do seu artigo 611-A dispõe que "se for pactuada cláusula que reduza o salário ou a jornada, a convenção coletiva ou o acordo coletivo de trabalho deverão prever a proteção dos empregados contra dispensa imotivada durante o prazo de vigência do instrumento coletivo" (sic).

Desse modo, no mínimo, o instrumento coletivo que autorizar a redução salarial haverá de prever estabilidade de emprego durante sua vigência, sendo possível e recomendável que se ainda preveja outras contrapartidas.

Por seu turno, o parágrafo único do artigo 444 da CLT prevê a possibilidade de a regra acima transcrita ser aplicada aos trabalhadores que tenham nível superior e que percebam salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social:

"Artigo 444  As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, às convenções coletivas que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes.
Parágrafo único. A livre estipulação a que se refere o caput deste artigo aplica-se às hipóteses previstas no artigo 611-A desta Consolidação, com a mesma eficácia legal e preponderância sobre os instrumentos coletivos, no caso de empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social".

Em que pese os fortes argumentos de inconstitucionalidade do supratranscrito parágrafo único do artigo 444 da CLT, por afronta aos princípios da igualdade, da proteção ao trabalhador e da norma mais benéfica, entre outros, ressalvamos que escapa ao objeto do presente estudo maior aprofundamento desse aspecto, cabendo por ora apenas apontar a possibilidade legal e os riscos daí decorrentes da aplicação do dispositivo em comento.

A despeito dos já apontados riscos, em havendo a negociação individual para redução salarial, o empregador ainda deverá observar se referida negociação não resultou em infringência à regra da equiparação salarial, segundo a qual caberá igual salário entre pessoas cuja diferença de tempo de serviço para o mesmo empregador não seja superior a quatro anos e a diferença de tempo na função não seja superior a dois anos (artigo 461 da CLT). Vale aqui acrescentar que o artigo 6º, também da CLT, se aproveita ao caso, na medida em que proíbe qualquer distinção entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, aquele executado no domicílio do empregado ou o realizado a distância.

Retornando ao foco da notícia internacional, ela deixa evidente que a cogitada redução de rendimentos ocorre porque o gasto com deslocamento foi computado no pacote remuneratório do empregado. O mesmo pode acontecer no Brasil?

Não deveria. Isso porque a legislação trabalhista veda a fixação de cláusulas contratuais que fixem determinada importância ou percentual a fim de englobar vários direitos do trabalhador — o chamado salário complessivo. Assim, no Brasil, o salário básico do empregado não deve compreender o dispêndio que ele terá com qualquer tipo de transporte, quer seja público, coletivo, particular ou alugado.

Se a legislação pátria determina que os direitos e benefícios concedidos aos empregados devem ser lançados em títulos próprios e com os seus respectivos valores, vedando o salário complessivo, então, não havendo mais a utilização de determinado benefício, a priori também não haverá mais a obrigação de concedê-lo ao empregado. É o que pode ocorrer, para se ater ao tema do presente estudo, com vale-transporte, auxílio-combustível ou pagamento de estacionamento.

Em sendo assim, possivelmente não se estará na seara da redução salarial, mas, sim, de cessação de um benefício por não mais ser utilizado pelo trabalhador, sob pena de configurar-se enriquecimento sem justa causa do trabalhador. Contudo, reafirmamos a necessidade de uma análise criteriosa do caso concreto para identificação, não apenas da possiblidade, mas de eventuais riscos envolvidos.

 

[1] https://www.bbc.com/news/business-58171716.

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