Opinião

Portaria 2927/2021: Moradia Primeiro como slogan?

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6 de setembro de 2021, 17h44

A Portaria 2.927, do último dia 26, instituiu o Projeto Moradia Primeiro no âmbito do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Trata-se de uma iniciativa louvável, que disponibiliza verba para a população de rua em meio a uma crise sanitária global sem precedentes, incorporando princípios absolutamente necessários para a superação de certos paradigmas de atendimento desta população. A portaria traz para o ordenamento brasileiro diversos conceitos da maior importância para avançarmos na necessária reformulação de alguns serviços públicos voltados à população de rua. No entanto, a redação da portaria pode gerar algumas confusões conceituais desnecessárias e que podem dificultar esses avanços cruciais. Nesta breve análise inicial, pretende-se examinar algumas destas confusões.

Os programas do tipo Moradia Primeiro são um modelo de efetivação do direito à moradia e se apoiam no princípio da disponibilização imediata e incondicional de moradia a pessoas em situação de rua. Foi desenvolvida inicialmente por Sam Tsemberis e pela Pathways to Housing, em Nova York, para "pessoas que precisam de níveis significativos de suporte que a permitam deixar a situação de rua", atendendo a pessoas com severos problemas de saúde mental, com deficiência física, doenças crônicas ou que fazem uso problemático de drogas. Em suma, grupos hipervulneráveis para quem políticas de habitação e até mesmo assistenciais e de saúde não chegam.

A ideia é inverter a abordagem tradicional das políticas públicas para a população de rua, que consideram que "primeiro" a pessoa precisa se tratar, se cuidar, se autonomizar, se organizar, aderir a um modelo de albergue e, só depois, ter oportunizado o acesso à moradia, quiçá passando por algum equipamento intermediário. É o chamado modelo etapista, "modelo das escadinhas" (ou staircase model). Este acesso à moradia, então, se daria pelas vias convencionais, no caso do Brasil, ante a quase inexistência de programas de moradia social, por meio de financiamento habitacional.

O Moradia Primeiro inverte essa abordagem tradicional: o que as pessoas em situação de rua necessitam é de uma casa. Para isso, é importante o "suporte à vida domiciliada", como corretamente prevê a portaria. Porém, o acesso à moradia não se condiciona a adesão a tratamento ou às "políticas públicas de promoção da vida autônoma e da empregabilidade" (artigo 2º, II, da portaria). Essa adesão é absolutamente opcional e a recusa não pode implicar em desligamento do programa — essa é a primeira precisão conceitual que precisa ser feita.

Segundo, uma característica básica da moradia é conferir segurança da posse ao morador. Não à toa, a segurança da posse é um dos elementos da definição de moradia digna feita no Comentário Geral nº 4, do Comitê dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas (ONU), junto com disponibilidade de serviços, materiais, facilidades e infraestrutura, custo acessível, habitabilidade, acessibilidade, localização, adequação cultural. Nesse documento das Nações Unidas, se dispõe que "não obstante o tipo de posse, todas as pessoas devem possuir um grau de segurança de posse que lhes garanta proteção legal contra despejo forçado, assédio e qualquer tipo de outras ameaças" [1]. Quando se está diante de uma solução provisória, "temporária", como a preconizada pela portaria, devemos falar em abrigo, não em moradia. Nesse sentido, é uma verdadeira contradição em termos falar em "moradia temporária" (artigo 2º, I, da portaria).

Supõe-se que essa contradição deriva de uma noção arraigada de que "moradia" teria relação com "propriedade privada", portanto, a "temporariedade" estaria aí justamente para marcar que não se trata de conferir a propriedade imobiliária às pessoas ou famílias beneficiárias. Bem, é preciso superar essa ideia e trabalhar com o conceito de "moradia social", que deve ser permanente no sentido de conferir segurança na posse: proteção legal contra assédio e qualquer tipo de ameaça ou arbitrariedade. Ser permanente não significa que não possam existir critérios de desligamento da moradia social — critérios que devem ser objetivos e observar direitos subjetivos dos beneficiários. Mas incorporar, de partida, o conceito de "moradia temporária", é manter a ideologia alberguista, na qual o local fornecido pelo poder público é um mero local de passagem, o que não necessariamente é o caso. Com a "moradia temporária" se mantém também a lógica do modelo etapista, segundo o qual a pessoa estaria obrigada a buscar uma solução habitacional — leia-se, passar para a próxima etapa adquirindo um imóvel próprio por meio de financiamento habitacional.

Terceiro, quanto aos beneficiários do programa, novamente a portaria amplia de tal forma que parece descaracterizar as finalidades centrais deste tipo de programa e arrisca torná-lo complexo demais em sua implementação. O artigo 3º da norma dispõe que:

"O projeto Moradia Primeiro destina-se às famílias e indivíduos com mais de 18 anos em situação de rua, prioritariamente àqueles em situação crônica que se encontram há mais de cinco anos em logradouros públicos ou em áreas degradadas, com possibilidade de agravamento relacionado ao uso de álcool de forma abusiva ou de drogas, ou com comprometimento da saúde mental, ou egressos de medida protetiva ou socioeducativa".

Já o artigo 4º dispõe:

"A estratégia do acesso imediato à moradia temporária, por meio de redomiciliamento rápido, poderá compor programas complementares para pessoas em risco habitacional ou recém-chegadas à situação de rua, a fim de evitar o início, a permanência ou o agravamento da situação de rua".

Inicialmente, é curioso que se mencione "uso de álcool de forma abusiva ou de drogas"; ora, o uso da droga álcool deve ser abusivo, mas o de outras drogas não? Ora, o foco do programa deve pessoas que fazem uso abusivo de drogas, incluindo do álcool. Portanto, a diferenciação, além de errônea, aponta para estigmas injustificáveis relacionados ao uso de drogas ilícitas, já que o álcool é de longe a droga socialmente mais danosa.

Por outro lado, a portaria inclui egressos de medida protetiva ou socioeducativa; por que não, então, inserir também idosos, pessoas LGBT+, pessoas com deficiência física e egressos do sistema penitenciário? As vulnerabilidades são muitas, algumas se intercruzam e devem ser atendidas pelo poder público. Porém, a complexidade de um programa que abarca tantas situações cresce exponencialmente a cada inclusão.

Por fim, a portaria também inclui pessoas em situação de risco habitacional — essas pessoas, obviamente, não são pessoas em situação de rua. Assim, amplia-se o espectro de atendimento a ponto de possivelmente desvirtuar o programa. Também inclui pessoas recém-chegadas à situação de rua, as quais, por definição, não estão em situação de rua crônica.

Ora, os programas do tipo Moradia Primeiro destinam-se justamente a pessoas em situação de rua crônica, umas circulando por anos entre rua, abrigo e outros serviços ou instituições (efeito porta-giratória), outras com dificuldade de aderência a qualquer serviço, em especial aos de abrigamento. Nesse sentido, destina-se a pessoas com grande necessidade de suporte. Tais casos em geral estão associados ao uso problemático de drogas e/ou a questões de saúde mental ou limitações severas decorrentes de deficiência física ou doenças debilitantes.

A complexidade de cada uma destas questões é tal que, em Lisboa, Portugal, havia há alguns anos duas organizações que realizavam o atendimento do tipo Moradia Primeiro, uma trabalhava apenas com pessoas que faziam uso problemático de drogas (Crescer na Maior — Santa Maria Maior Housing First), outra apenas com pessoas com problemas de saúde mental (Aeips, ou Associação para o Estudo e Integração Psicossocial). Um tipo de especialização salutar ante a complexidade de cada atendimento. Nestes casos, a moradia serve justamente como suporte e apoio para que a pessoa se reorganize e busque, voluntariamente e assim desejando, outros serviços públicos de que necessite (saúde, educação, assistência, emprego, renda etc).

Ao abarcar também pessoas em risco habitacional, recém-chegadas às ruas, jovens que passaram por medidas socioeducativas, mulheres vítimas de violência doméstica, certamente a complexidade do programa aumenta exponencialmente. Em alguns desses casos, pode-se reconhecer uma grande necessidade de suporte, mas não parece ser a regra geral para cada um destes grupos. Nesse sentido, o próprio "acompanhamento especializado de suporte à vida domiciliada", corretamente previsto na portaria (artigo 2º, IV), parece não fazer muito sentido a estes grupos.

Portanto, se não se pretende usar a nomenclatura Moradia Primeiro apenas como slogan, é necessário, primeiro, efetivar o acesso incondicional à moradia. Do contrário, o programa deverá se chamar Projeto Moradia Assistida e Condicionada a Tratamento, o que vai contra a noção básica de conferir moradia para que seja uma base de organização e, principalmente, de escolha para a pessoa. Segundo, é necessário conferir segurança da posse aos beneficiários do programa, permitindo acesso a moradias permanentes (o que não significa ausência de critérios de desligamento). Do contrário, o programa deverá se chamar Projeto de Abrigo Temporário, o que certamente não foi a intenção da portaria. Além disso, seria recomendável que o foco do atendimento fossem as pessoas em situação de rua crônica, que fazem uso abusivo de drogas e/ou apresentam problemas de saúde mental, doenças debilitantes, ou deficiências físicas muito limitantes — em suma, pessoas que necessitem de níveis de suporte significativo. Do contrário, tratar-se-ia de um programa de moradia para certos grupos vulneráveis, elencados de forma mais ou menos arbitrária, excluindo injustificadamente outros grupos que também mereceriam atendimento em moradia social, bem como criando complexidades desnecessárias na sua implementação.


[1] Comentários Gerais dos Comitês de Tratados de Direitos Humanos da ONU – Comitê de Direitos Humanos – Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Disponível em https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/repositorio/0/Coment%C3%A1rios%20Gerais%20da%20ONU.pdf, consulta em 03 de setembro de 2021.

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