Opinião

Apontamentos sobre a Resolução CVM 44

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6 de setembro de 2021, 6h04

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), no último dia 23, editou a Resolução 44, que substituiu a Instrução 358/2002 na disciplina da divulgação de informações sobre ato ou fato relevante, da negociação de valores mobiliários na pendência de divulgação de aviso de ato ou fato relevante e da divulgação de informações sobre a negociação de valores mobiliários.

A Resolução 44, que entrou em vigor no dia 1º, foi construída sobre o mesmo arcabouço da Instrução 358 e, além de alterações de cunho meramente redacional, que buscaram assegurar consistência com o teor outras normas, trouxe modernizações relevantes, que trataremos abaixo, sem prejuízo da necessária análise mais profunda que os temas merecem.

1) Começando pelo começo: o que não mudou com a Resolução 44?
A Resolução 44 não alterou: 1) o conceito de ato ou fato relevante (artigo 2º), incluindo a lista exemplificativa de hipóteses que acompanha o conceito, constante do parágrafo único do referido dispositivo; 2) a responsabilidade do diretor de relações com investidores pela divulgação de aviso de fato relevante, exceção feita à regra de imediata divulgação e o dever de guardar sigilo imposto aos insiders (artigo 3º a 8º); 3) a obrigatoriedade de divulgação de fato relevante previamente à realização de oferta pública de aquisição de ações e alienação de controle (artigo 9º e 10º); e 4) as obrigações de divulgação de participação acionária de insiders e detentores de participações superiores a 5% de cada espécie ou classe de ação da companhia.

Em suma, a espinha dorsal da disciplina segue intocada mas, como trataremos a seguir, abordagem muda quando se trata de insider trading e matérias correlatas.

2) Insider Trading e presunção de conhecimento e uso de informação privilegiada
As principais alterações promovidas pela Resolução 44 dizem respeito à "utilização de informação relevante ainda não divulgada, por qualquer pessoa que a ela tenha tido acesso, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem, mediante negociação de valores mobiliários", ou, em termos mais diretos, insider trading.

O novo regime trazido pelo artigo 13 da Resolução 44, em linha com os precedentes do Colegiado da CVM sobre o tema, abraça a sistemática das presunções e não de premissas ou vedações absolutas. Por sua natureza, tais presunções são relativas e, portanto, admitem prova em contrário, como a própria resolução expressamente determina.

Apesar das críticas apresentadas por participantes do mercado no âmbito da audiência pública, a CVM manteve fundamentalmente o sistema que propôs. Ainda que se discuta a conveniência da inversão do ônus da prova no sistema de presunção que a Resolução 44 adotou, parece-nos que ele permite, mesmo que com certo esforço da parte do acusado, demonstrar por diversos modos a inocorrência do ilícito na negociação de valores mobiliários. Não é excessivo lembrar que as presunções já eram reconhecidas em decisões administrativas durante a vigência da Instrução 358, razão pela qual defesas afirmativas podem continuar sendo utilizadas, ainda que não sejam expressamente previstas na regulamentação.

Assim, por exemplo, presume-se pela nova norma que: 1) quem negociou de posse da informação privilegiada fez uso dela na negociação; 2) os insiders (incluindo a própria companhia e, em determinadas circunstâncias, prestadores de serviço) têm acesso a toda informação ainda não divulgada e tinham ciência de seu caráter restrito; e 3) o administrador que se desliga tem informação privilegiada por três meses (e não seis, como originalmente previsto na Instrução 358).

Os pontos 1 e 2 acima parecem-nos ter desdobramentos conceituais interessantes. Na medida em que a vedação ao insider trading tem por objetivo impedir a negociação de valores mobiliários em situação de assimetria informacional, a negociação entre dois insiders  que, presumivelmente (presunção relativa), têm o mesmo nível de informação e estão fazendo uso dela  não deveria ser vedada. Embora essa consideração obviamente seja irrelevante na ótica de uma negociação em mercado, ela pode ter desdobramentos relevantes em uma operação privada.

A esse respeito, a Resolução 44 promoveu uma importante alteração ao deixar claro que as presunções, vedações e obrigações de comunicação aplicam-se tanto a negociações realizadas em bolsa de valores ou mercado de balcão organizado quanto a negociações privadas, direta ou indiretamente e por conta própria ou de terceiros. Nesse sentido, a alteração não nos soa a mais adequada, uma vez que o objetivo primário da vedação ao insider trading é a proteção do mercado, e não dos agentes individualmente considerados.

3) Presunção de relevância por matéria
Também merece destaque a adoção da presunção de que certas matérias são, por definição, relevantes. A relação inclui "a partir do momento em que iniciados estudos ou análises relativos à matéria, as informações acerca de operações de incorporação, cisão total ou parcial, fusão, transformação, ou qualquer forma de reorganização societária ou combinação de negócios, mudança no controle da companhia, inclusive por meio de celebração, alteração ou rescisão de acordo de acionistas, decisão de promover o cancelamento de registro da companhia aberta ou mudança do ambiente ou segmento de negociação das ações de sua emissão", bem como "informações acerca de pedido de recuperação judicial ou extrajudicial e de falência efetuados pela própria companhia, a partir do momento em que iniciados estudos ou análises relativos a tal pedido".

É fácil constatar que as matérias acima serão, costumeiramente, relevantes. Todavia, a regra comporta exceções. Como exemplo, podemos citar a sociedade que incorpora outra sociedade de porte substancialmente menor, ou eventualmente incorpora sua subsidiária integral, ambas operações relativamente comuns no dia a dia empresarial e sem impacto patrimonial relevante. A presunção (relativa) permite que se afaste o caráter de materialidade da operação no caso concreto. Por outro lado, o próprio sistema da regra faz com que tais matérias devam ser vistas também como um rol meramente exemplificativo, havendo outras que podem ser relevantes mesmo que não constem na relação.

A nova norma estendeu expressamente o aspecto temporal a ser considerado: "A partir do momento em que iniciados estudos ou análises relativos à matéria". Aqui, novamente, o conceito da presunção é relevante, e a nosso ver deveria levar em conta não apenas a materialidade, mas o estágio da operação pretendida e a probabilidade de sua concretização, o que não significa afirmar que a vedação surja apenas quando da aprovação por órgãos da administração, conforme sugerido durante a audiência pública que antecedeu a edição da Resolução 44.

4) Período vedado
A CVM adotou no artigo 14 da Resolução 44 uma abordagem distinta daquela do artigo 13 no que concerne à negociação por insiders no período de 15 dias que antecede à divulgação de informações financeiras, impondo uma vedação objetiva e autônoma que, inclusive, independe do conhecimento efetivo do conteúdo das demonstrações financeiras. Como destacou a própria CVM no respectivo edital de audiência pública, "a instituição da vedação objetiva não afasta a incidência da regra geral de vedação ao insider trading, desde que comprovados os elementos daquele tipo". Em outras palavras, mesmo havendo violação da vedação à negociação em período restrito, o sistema de presunção prevalece em relação ao insider trading em si, podendo haver ilícito administrativo sem que haja ilícito penal.

As únicas exceções admitidas pelo artigo 14, acatando sugestões de participantes do mercado no âmbito do processo de audiência pública, são: 1) operações compromissadas envolvendo valores mobiliários de renda fixa (que são, por natureza, operações de renda fixa e cujos resultados independem das informações financeiras); 2) liquidações de operações de empréstimos de valores mobiliários, opções de compra e operações a termo, todas já contratadas; e 3) negociações por conglomerados financeiros no curso normal de suas operações e com parâmetros previamente estabelecidos.

A vedação autônoma trazida pelo artigo 14, técnica distinta daquela adotada no artigo 13, foi provavelmente o ponto mais criticado por participantes do mercado no âmbito do processo de audiência pública que antecedeu a edição da Resolução 44. Todavia, e superando o suposto excesso cometido pela CVM em relação à sua competência (argumento que julgamos improcedente), a alteração constitui uma escolha normativa do regulador, inspirada em soluções adotadas em outros mercados, diante de uma situação na qual a incerteza tende a existir.

A regra impondo um período de blackout nos 15 dias que antecedem a divulgação de informações financeiras já existia na Instrução 358, mas era vista e discutida em decisões do colegiado também como uma presunção que exige contraindícios fortes para ser rechaçada. A decisão no Processo RJ2015/13651, citado pela CVM na audiência pública, é um exemplo de tal discussão.

A Resolução 44 altera esse quadro, criando a vedação objetiva e, a rigor, trazendo mais segurança  ainda que se possa criticar a escolha do regulador. Parece-nos que a adoção de tal regra, de cumprimento fácil por sua objetividade, não gera ônus excessivamente gravosos aos participantes do mercado, visto que sua aplicação acontece em períodos limitados e nos quais, efetivamente, há um potencial maior de insider trading, dada a óbvia materialidade das informações financeiras e seu potencial impacto na cotação de valores mobiliários no mercado.

5) Política de negociação, plano de investimento/desinvestimento e política de divulgação
A Resolução 44 manteve, em linhas gerais, as regras sobre adoção de política de negociação pelas companhias. Todavia, promoveu alterações nas disposições referentes a planos de investimento que, agora, expressamente incluem desinvestimentos (algo antes implícito), estabelecendo que tais políticas e planos afastariam as presunções previstas na resolução.

A possibilidade de negociação com valores mobiliários, mesmo em períodos de vedação, com base em planos de investimento foi incluída na Instrução 358 em reforma realizada em 2015. O objetivo é tirar do insider a discricionariedade sobre a negociação, que obedeceria a regras objetivas previamente estabelecidas e conhecidas, e cuja alteração somente poderia acontecer de tempos em tempos.

Apesar de ser um instrumento que permite maior flexibilidade na negociação  por exemplo, para venda de ações recebidas regularmente no âmbito de um plano de stock options , os planos de investimento/desinvestimento não alcançaram grande popularidade. As alterações promovidas pela Resolução 44 trazem regras um pouco mais objetivas para dar segurança ao plano, reduzem o intervalo mínimo de alteração de seis para três meses e permitem expressamente sua adoção pela própria companhia. Embora sejam ajustes relevantes, parece-nos que a popularização de planos de investimento dependerá, ainda, de uma mudança cultural com a percepção de que seu objetivo é permitir a negociação frequente dentro da regra estabelecida, e não necessariamente nas melhores condições de mercado.

Por fim, a Resolução 44 limitou a obrigatoriedade de adoção de política de divulgação de informações a companhias registradas na categoria A, cujas ações sejam negociadas em bolsa ou mercado de balcão organizado e que tenham ações em circulação, em linha com as regras que adota em relação às regras de convocação de assembleia geral com a Instrução 481/09.

6) Algumas considerações a título de conclusão
As alterações promovidas pela Resolução 44 devem, a nosso ver, ser recebidas como importantes avanços, dando maior clareza aos parâmetros que devem pautar a conduta de insiders.

A CVM manteve a estrutura da Instrução 358 e foi consistente com posicionamentos que já vinham sendo adotados pela área técnica e o colegiado, sem revolução e minimizando o impacto para as companhias abertas, com substancial discussão com o mercado no âmbito do processo de audiência pública.

Por sua vez, foram promovidas importantes alterações que consagram a visão de que, por envolver questões "de fato", as discussões relativas à qualificação, posse e uso de informação privilegiada por insiders devem ser tratadas como presunções relativas, que podem, portanto, ser afastadas. Por outro lado, criou-se uma vedação à negociação durante período de blackout, nesse caso fugindo da discussão acerca de presunções, por se entender que esse período deve ser, por assim dizer, um "período de suspeição" no qual a possibilidade de negociação ilícita é mais danosa para o mercado do que a restrição à liberdade de insiders para negociar. Ainda que se critique a opção, a regra é clara, tem fundamento e representa uma opção cautelosa do regulador.

Todo processo de regular condutas envolve, na essência, pesar diferentes valores e impactos de ações e omissões, e cabe ao regulador escolher entre elas, seguindo sua política. E, no caso da Resolução 44, representa evidente aperfeiçoamento.

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