Direito eleitoral

Os polêmicos gastos com combustível nas eleições de 2020

Autores

  • Carlos Henrique Poletti Papi

    é sócio do escritório Fonsatti Advogados Associados pós-graduado em Direito Eleitoral e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).

  • Ruy Fonsatti Junior

    é sócio fundador do escritório Fonsatti Advogados Associados especialista em Direito Processual Civil e Direito Eleitoral e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).

6 de setembro de 2021, 8h00

Nas últimas eleições municipais, como já é de praxe, estavam em vigência novas regras eleitorais, na medida em que, segundo virou costume legislativo, a cada dois anos temos uma reforma na legislação especial, sendo que as principais regras são postas "a teste" durante o pleito para escolha de prefeitos e vereadores, como uma maneira de depurar e experimentar a legislação a ser aplicada durante as eleições gerais.

Entre tantas mudanças, neste artigo falarei de um item em específico, que gerou muito debate entre todos os players do jogo eleitoral, desde servidores da Justiça Eleitoral, passando por contadores e advogados dos candidatos, até promotores e juízes eleitorais, que foi o gasto com combustível, em razão das alterações promovidas pelas Leis nº 13.488/2017 e 13.877/2019.

Inicialmente, é importante expor a seguinte premissa: segundo o artigo 26, § 3º, alínea "a", da Lei nº 9.504/1997, com a redação dada pela Lei nº 13.488/2017, "não são consideradas gastos eleitorais nem se sujeitam a prestação de contas as seguintes despesas de natureza pessoal do candidato: combustível e manutenção de veículo automotor usado pelo candidato na campanha".

Ou seja, a regra dada é que, a princípio, as despesas com combustíveis do veículo utilizado pelo candidato na sua campanha não são gastos eleitorais e, portanto, não estão sujeitos aos limites legais e regulamentares de financiamento da candidatura.

Seguindo nessa linha de entendimento, inclusive, a Resolução TSE nº 23.2017, que tratava da prestações de contas de 2018, fixou em seu artigo 63, §5º, inciso I, que "são dispensadas de registro na prestação de contas dos candidatos as seguintes despesas de natureza pessoal: combustível e manutenção de veículo automotor usado na campanha pelo próprio candidato".

Com base em tal preceito, em 2018 os candidatos fizeram uso de seus veículos em campanha, realizaram abastecimentos e não enfrentaram maiores problemas nas aprovações das suas contas.

Entretanto, com as inovações da Lei nº 13.877/2019, o já citado artigo 26 da Lei nº 9.504/1997 ganhou novos parágrafos, valendo citar especificamente o §5º, que dispõe o seguinte: "Para fins de pagamento das despesas de que trata este artigo, inclusive as do § 4º deste artigo, poderão ser utilizados recursos da campanha, do candidato, do fundo partidário ou do FEFC".

Noutras palavras, o §5º trouxe uma grande complexidade interpretativa, já que ele tratou de afirmar que todas as despesas do artigo 26 (sem especificar se algum parágrafo estaria afastado, embora tenha feito uma ressalva inclusiva, ao apontar o §4º) poderiam ser custeadas com qualquer espécie de recurso licitamente angariado durante a campanha e, entre essas despesas, presume-se que estaria o gasto com combustível (embora continuasse existente a dispensa da prestação de contas instituída pela Lei nº 13.488/2017).

Contudo, no momento em que o Tribunal Superior Eleitoral expediu as normativas aplicáveis ao pleito de 2020, observou-se uma grande novidade regulamentar, na medida em que o artigo 35, §6º, alínea "a", da Resolução TSE nº 23.607/2019, além de fixar que as despesas com combustível do veículo utilizado não seriam gastos eleitorais e, portanto, estavam dispensadas de constar na prestação de contas, ainda seria proibido o custeio dos abastecimentos com recursos da campanha: "Não são consideradas gastos eleitorais, não se sujeitam à prestação de contas e não podem ser pagas com recursos da campanha as seguintes despesas de natureza pessoal do candidato: combustível e manutenção de veículo automotor usado pelo candidato na campanha".

E, diante dessa inovação da resolução, surgiu a grande celeuma, apontando no sentido de que os candidatos não poderiam custear, com qualquer que fosse a natureza do recurso de campanha (seja de origem própria, fruto de doações ou recebido em razão do fundo partidário ou do FEFC), as despesas que viessem a manter com seu veículo durante a campanha.

Dessa forma, a solução mais prática, adotada por inúmeros candidatos, foi ceder o veículo à campanha, ainda que pertencente ao próprio candidato, para que a despesa ganhasse um status de gasto eleitoral, conforme previsão do artigo 35, §11, inciso II, da Resolução TSE nº 23.607/2019: "Os gastos com combustível são considerados gastos eleitorais apenas na hipótese de apresentação de documento fiscal da despesa do qual conste o CNPJ da campanha, para abastecimento de: (…) veículos utilizados a serviço da campanha, decorrentes da locação ou cessão temporária (…)".

Portanto, a despeito da regra proibitiva, a qual, frisa-se, estava prevista apenas na Resolução TSE nº 23.607/2019, e não na Lei nº 9.504/1997, se o automóvel estivesse cedido à campanha, desde que cumpridas as demais regras relativas à prestação de contas, poderia ter seu abastecimento custeado com os recursos de campanha.

Todavia, malgrado esta interpretação ampliativa, o fato é que algumas cortes entenderam pela irregularidade dos gastos, mesmo se o veículo estivesse cedido.

Lista-se, como exemplo ilustrativo, o julgado proferido pelo Tribunal Regional Eleitoral de Sergipe, em que acabaram sendo rejeitadas as contas de um vereador eleito por entender que "o candidato, ora recorrente, utilizou recurso financeiro da campanha para abastecer veículo próprio, por ele cedido a sua campanha eleitoral, mediante termo de cessão", porém, ainda assim, "não são considerados gastos eleitorais as despesas de natureza pessoal do candidato com combustível de veículo automotor usado por ele na campanha eleitoral, de modo que não podem ser pagas com recursos da campanha, providência não observada pelo insurgente" (TRE-SE, RE nº 0600328-21.2020.6.25.0018, relator doutor Edivaldo do Santos, Plenário, DJ: 27/4/2021, DP: 30/4/2021).

A título de curiosidade, cumpre destacar que referido acórdão ainda não transitou em julgado, em razão de recursos interpostos ao Tribunal Superior Eleitoral, cuja relatoria do AREspE está a cargo do ministro Edson Fachin.

Basicamente, o TRE-SE aplicou a literalidade do artigo 35, §6º, alínea "a", da Resolução TSE nº 23.607/2019, e considerou insanável o vício decorrente do custeio do abastecimento do veículo utilizado pelo candidato, com recursos de campanha, ainda que o automóvel tenha sido cedido.

Felizmente, em sentido diametralmente diverso, pode-se elencar o entendimento adotado pelo juízo da 75ª Zona Eleitoral de Toledo (PR), ao aprovar as contas de um candidato a vereador não eleito, ainda que com ressalvas, quando se aprofundou na tese defendida, e fundamentou que "em que pese a vedação regulamentar, assiste razão ao prestador de contas ao sustentar que inexiste esta previsão em lei em sentido estrito", pois, "na verdade, a lei parece expressar outra coisa, que os gastos com combustíveis para o transporte do candidato apenas não se sujeitam aos limites de gastos definidos na lei eleitoral", para concluir que "a melhor interpretação indica que o gasto com combustíveis para locomoção do próprio candidato tem natureza pessoal, sendo indiferente sua declaração na prestação de contas para os fins da apuração da regularidade na gestão de recursos eleitorais" (TRE-PR, PC nº 0600654-53.2020.6.16.0075, doutora Luciana Lopes do Amaral Beal, DJ: 20/8/2021, DP: 24/8/2021).

Assim sendo, observa-se que, na sentença retrocotejada, houve uma primazia pela aplicação da norma de maneira mais benéfica ao candidato, evitando-se que uma restrição prevista apenas em nível regulamentar pudesse sobrepor-se à lei, para vedar que um candidato custeasse sua campanha de maneira perfeitamente lícita, mediante o abastecimento de seu próprio veículo, formalmente cedido à sua campanha.

O certo é que o tema ainda gerará muita controvérsia, sendo necessário que principalmente o Tribunal Superior Eleitoral pacifique esse assunto que criou tanta celeuma na última corrida eleitoral.

Autores

  • é sócio do escritório Fonsatti Advogados Associados, pós-graduado em Direito Eleitoral e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).

  • é sócio fundador do escritório Fonsatti Advogados Associados, especialista em Direito Processual Civil e Direito Eleitoral e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).

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