Novo ciclo

"A magistratura só faz sentido se for no coletivo, no plural", diz Andréa Pachá

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4 de setembro de 2021, 9h25

Entre as mais de 30 histórias do livro A Vida não é Justa, de Andréa Pachá, uma especialmente deu materialidade à minha ideia de que juiz de verdade não se esconde na burocracia dos autos para se livrar de responsabilidades. Principalmente em primeira instância, onde processos carregam esperanças, angústias, têm cheiro, cor de pele, manias.

Reprodução/Facebook
A desembargadora Andréa Pachá, do TJ-RJ

Menina de 15 anos grávida de um garoto de 18 anos. Levados pelos pais dela, e pela mãe dele, à juíza Pachá para que o Estado autorizasse a menor a se casar. Pais e adolescentes de acordo, bastava assinar a papelada. Mas havia um clima de animosidade no início da audiência. Seu Pedro incomodado com o fato de ter de pedir permissão para a filha casar. "Se a filha é minha, eu autorizo se quiser. Não precisava que a senhora se metesse nisso", disse para a juíza.

O motivo da tensão era outro. Na condução da audiência, a magistrada percebeu que os adolescentes não queriam se casar. Mas, não apenas eles. Seu Pedro também não estava à vontade com a ideia. E, questionado, confessou o descontentamento. No fundo, fazia aquilo por um difuso dever moral. Todos queriam o casamento, mas a sensibilidade da juíza a alertou: ninguém queria de verdade. Autorização negada. Comoção, choro e o incômodo persistente em Seu Pedro. Ele não sabia o que dizer à vizinhança e ao resto da família.

—  Põe na minha conta, seu Pedro. Diz que a justiça é complicada mesmo e que a juíza proibiu o casamento. Se alguém reclamar, manda passar aqui.

Depois de 27 anos no comando de audiências como essas, Andréa Pachá foi promovida a desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Por merecimento, junto com outros três colegas. Outros quatro foram promovidos por antiguidade. Os oito tomaram posse na última segunda-feira (30/8).

Em seu discurso, que desde o começo da semana corre as redes sociais, Andréa Pachá revela que a sensibilidade se mantém inalterada. E que ainda tem a real dimensão da responsabilidade do cargo. "Vingança jamais será justiça e o grande desafio, em tempos complexos de arroubos autoritários, é insistir na racionalidade, enfrentando a opinião pública todas as vezes em que a voz da maioria se organizar para silenciar e aniquilar direitos e garantias previstos pelas leis e pela Constituição."

Leia o discurso

Inícios e fins de ciclos são momentos de inevitável reflexão. Os rituais de transição ganham, hoje, com a nossa posse, inédito contorno. Todos nós, contemporâneos da pandemia de Covid-19, que nos isolou da convivência diária, impediu o luto e a tristeza compartilhada, reduziu a população brasileira em quase 600 mil vidas, trazemos uma cicatriz definitiva na alma. Temos a responsabilidade de traduzir, para as futuras gerações, o que aprendemos, e em quem nos transformamos depois de tanta dor.

Se o momento é de extrema felicidade, nessa sessão festiva, impossível experimentá-lo, sem que antes, nos solidarizemos com todas e todos os que perderam entes queridos. Em nome do advogado Silvio Viola, padrinho, amigo, e que certamente aqui estaria hoje, como esteve em todos os momentos importantes da minha vida, homenageio as famílias dos que partiram precocemente. O mundo ficou um lugar menor e mais sem graça, sem a presença dele.

A sobrevivência a tanto desamparo só tem sido possível porque, felizmente, somos seres da esperança e do afeto. É em nome dessa esperança, celebrando a vida e o futuro, que agradeço aos desembargadores do Órgão Especial que me elegeram. Um agradecimento especial ao presidente Henrique Figueira, quem de forma firme, segura e republicana tem conduzido essa Corte, sem cujo apoio eu jamais conseguiria ser promovida por merecimento.

O curto tempo me impede de nomear a extensa lista daqueles com quem convivi e aprendi ao longo da vida e dos 27 anos de profissão. Dos bancos da Uerj à juíza do interior, da experiência do cinema e do teatro à Conselheira do CNJ, passando pela militância associativa ao lado do querido Luis Felipe Salomão, nada do que me orgulho e do que consegui executar foi resultado de luta ou de prestígio individual. A magistratura, para mim, só faz sentido se for no coletivo, no plural, na afirmação dos direitos humanos e das garantias sociais. Aos que me precederam nessa estrada, minha profunda gratidão.

Chego ao final da carreira, consciente das dificuldades, dos desafios e da responsabilidade que me aguardam. As rupturas e polarizações que assolam o mundo, potencializam ainda mais a importância do Judiciário no cenário político, econômico e social. Quer pela infantilização da sociedade, quer pela incapacidade de diálogo, quer pela baixa densidade da democracia em nosso país, a vida tem sido remetida à Justiça, como se fôssemos a única esfera de solução de conflitos.

No Estado do Rio de Janeiro, a situação é ainda mais grave porque convivemos com a violência aprofundada pela desigualdade, com grave crise na segurança pública, e com áreas de risco e exclusão nas quais o Estado tem sido impedido, inclusive, de atuar na garantia dos direitos de todas as comunidades.

Nosso Tribunal foi e continua sendo referência de gestão e administração, com capacidade para enfrentar tais desafios e escancarar as portas da Justiça para os cidadãos fluminenses que esperam efetividade dos seus direitos fundamentais.

As partes nos milhares de processos que julguei e os servidores com quem tive a honra de trabalhar, os juízes e juízas, colegas com quem compartilho as ansiedades do exercício da jurisdição, foram e são minhas vigas de sustentação. Por causa deles, não perdi e espero jamais perder a consciência da relevância do cargo que exerço.

Assumo hoje o compromisso de continuar a defender, de forma intransigente, a Constituição da República, o princípio do não retrocesso social, compreendendo que vingança jamais será justiça e que o grande desafio, em tempos complexos de arroubos autoritários, é insistir na racionalidade, enfrentando a opinião pública todas as vezes em que a voz da maioria se organizar, para silenciar e aniquilar direitos e garantias previstos pelas leis e pela Constituição.

Sou uma mulher privilegiada. Nasci e cresci em ambiente amoroso e funcional, cercada de afetos e com sobrevivência garantida, o que me torna ainda mais responsável pelo combate ao racismo, ao machismo, a todas as formas de discriminação.

Transitei pelas artes, pela cultura, saberes da mesma raiz da humanidade. Nesse contexto, não posso deixar de registrar um agradecimento a Alcione Araújo, que partiu cedo e foi essencial para a minha formação, como autora e magistrada brasileira, e à Marieta Severo, atriz e amiga, filha do Desembargador Severo da Costa, em cuja vaga meu pai ingressou no Tribunal de Alçada, e a quem me associo na ressaca cívica e na persistente esperança.

Agradeço, ainda, ao Miguel, Patrícia, Bel, Chico e Pedro, irmãos e sobrinhos com quem compartilho o cotidiano, os projetos de um mundo menos hostil, mais igualitário, inclusivo e sustentável, e ao Geraldo, um amor dos verões da juventude, pela sorte de um retorno no outono, para uma experiência linda de encontros e de liberdade.

João e Kike, meus amores, fontes de luz e de vida, não tem sido fácil garantir um mundo melhor para vocês. Mas é esse o meu compromisso. Utopia não é lugar de chegada. É bússola para toda a vida.

Vovô Miguel, mesmo de longe, está nos assistindo. Ele, que presidiu esse Tribunal e que até hoje é lembrado com saudades por colegas, servidores e advogados, me legou essa toga que hoje eu visto. Espero que me inspire e me faça chegar à metade do que ele foi como desembargador, e do que ele é como homem público e como ser humano.

Com ele e com vovó Léa, nós seguimos aprendendo que pessoas boas fazem coisas boas, que justiça é produto de primeira necessidade e que, sem o olhar empático para o outro, especialmente para os que são diferentes de nós, é impossível viver uma vida digna.

Que vocês tenham a sorte e a alegria de encontrar, como eu, um trabalho que os faça felizes, e que por meio dele vocês possam fazer desse mundo um lugar melhor e mais humano.

Meus colegas que aqui chegam comigo: que tenhamos força e coragem para não nos contaminar pela irracionalidade das paixões, pelos afagos fáceis e elogios oportunistas; que não percamos a conexão com a sociedade, destinatária de nosso trabalho e tenhamos consciência de que ao cumprir e fazer cumprir a Constituição, nos irmanamos com Rosa Luxemburgo em um desejo de um mundo "em que sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres".

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