Opinião

Convenção de Belém do Pará pode ser usada contra a violência de gênero

Autor

  • Mariana Tripode

    é advogada especializada em Direito da Mulher fundadora do primeiro escritório exclusivo para mulheres em Brasília e da Escola Brasileira de Direitos das Mulheres.

3 de setembro de 2021, 6h03

Um dos maiores desafios da advogada que milita diuturnamente na defesa das mulheres é encarar a flagrante falta de capacidade técnica de boa parte do sistema judiciário brasileiro — não só da autoridade policial, mas também dos próprios juízes e magistrados — para conhecer e entender as questões de gênero. Para nós, está claro que muitos deles ainda estão imersos na cultura patriarcal e reproduzem a mentalidade machista e misógina em suas atuações profissionais, impondo às mulheres que buscam seus direitos, ainda hoje, uma inaceitável resposta que, por si só, representa mais uma violência contra elas.

A revitimização da mulher que sofre iniquidades pelas mãos do Poder Judiciário não pode prosperar. Não deveria sequer acontecer, mas, se ainda ocorre, precisa ser refutada com veemência imediata. Acontece que muitos colegas advogados e juristas de todo país desconhecem ser possível buscar acordos internacionais para fazer com que o Brasil corrija essas injustiças.

Alguns não se qualificam tecnicamente para lidar com a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), que acaba de completar 15 anos de vigência. Não buscam capacitação para operar em demandas que envolvam questões de gênero, rejeitam "usar os óculos de gênero" para enxergar a violência contra a mulher pelo fato de ela ser mulher. E acabam proferindo decisões equivocadas, que, por muitas vezes, não acatam pedidos de medidas protetivas de urgência por não conhecer esse caráter da lei.

Vale lembrar que a Maria da Penha é uma das melhores leis e a maior ferramenta que temos hoje para proteção da dignidade e dos direitos humanos das mulheres. Ela abrange todas as questões da violência — física, psicológica, moral, sexual, patrimonial —, além de prever medidas protetivas de urgência para de fato tirar a mulher de uma situação de violência iminente.

O grande problema, lamentavelmente, são operadores de Justiça que não a aplicam corretamente. Em todo o Brasil, juízes, magistrados, servidores de Justiça, delegados, policiais, enfim, toda a rede que deveria dar apoio à mulher vítima de violência não tem treinamento suficiente para colocar em prática ações de proteção. Há juízes, magistrados e até juízas que sequer percebem que a jurisprudência já coloca a Lei Maria da Penha em outro patamar. Ela não só deve ser aplicada nos casos clássicos de violência no âmbito doméstico. Hoje, a lei protege também as mulheres trans e deve ser evocada até mesmo em casos que extrapolam a relação marital — já pode ser usada em demandas entre filhos e mães, entre avós e netos. Acontece muito, por exemplo, de o neto cometer violência patrimonial contra a avó idosa ao se apoderar do dinheiro da aposentadoria dela.

Mais do que isso, urge perceber que a lei possui um caráter híbrido, ou seja, é aplicável não somente na questão criminal, mas também deveria funcionar bem nas Varas de Família. Não é isso o que acontece. Juízes de Família frequentemente lavam as mãos e jogam a bola de um caso de violência doméstica ou familiar a um colega de vara criminal ou dos juizados de violência doméstica e familiar. Nesse jogo, a mulher é quem acaba desprotegida.

Muitas vezes, levamos essas questões e pedimos alguma medida protetiva dentro de Varas de Famílias e a resposta do juiz é não ser competente, mesmo com a Lei Maria da Penha prevendo que caberiam medidas tanto na esfera civil quanto na criminal. Mais uma vez, o juiz acaba revitimizando a mulher, cometendo, assim, uma nova violência com ela ao não lhe garantir a efetividade legal, em consequência a proteção dessa mulher. Essa inação contribui para a manutenção do feminicídio no Brasil em números alarmantes, a despeito de contarmos com uma das três melhores legislações do mundo. Todo esse arcabouço legal precisa do empenho do sistema de Justiça para ser eficaz no combate à violência de gênero, violência contra a mulher.

A batalha para que a Maria de Penha possa ter sua eficácia plena no país depende do comprometimento de todos nós. Muitos advogados desconhecem que podem trazer dentro das petições técnicas na defesa dos direitos das mulheres os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário que garantem a efetividade da lei. Nelas, é possível fazer com que o juiz entenda que, se não cumprir o determinado nesses tratados supraconstitucional, o país poderá sofrer punição.

O melhor instrumento para isso é a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9/6/1994 e promulgada no Decreto Federal nº 1.973 em 1º/8/1996. Conhecida como Convenção de Belém do Pará, permite ao advogado ou à parte interessada buscar as cortes internacionais para poder fazer valer seus direitos.

A convenção, em seu artigo 2, explicita o entendimento em relação à abrangência da violência (física, sexual e psicológica) contra a mulher, incluindo aquela "perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra" (alínea "c").

As alíneas "f" e "g", do artigo 7 do Capítulo III ("Deveres dos Estados"), são claras ao assentar que os Estados-partes comprometem-se em empenhar esforços no sentido de "estabelecer procedimentos jurídicos justos e eficazes para a mulher sujeitada a violência, inclusive, entre outros, medidas de proteção, juízo oportuno e efetivo acesso a tais processos" e "estabelecer mecanismos judiciais e administrativos necessários para assegurar que a mulher sujeitada a violência tenha efetivo acesso a restituição, reparação do dano e outros meios de compensação justos e eficazes".

Além disso, as alíneas "a" e "d" apontam para outras convenções estabelecidas pelos Estados-partes, quais sejam, respectivamente, as de: "(…) Velar por que as autoridades, seus funcionários e pessoal, bem como agentes e instituições públicos ajam de conformidade com essa obrigação" e "adotar medidas jurídicas que exijam do agressor que se abstenha de perseguir, intimidar e ameaçar a mulher ou de fazer uso de qualquer método que danifique ou ponha em perigo sua vida ou integridade ou danifique sua propriedade".

Por fim, o artigo 12 do mesmo diploma estabelece que "qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou qualquer entidade não-governamental juridicamente reconhecida em um ou mais Estados membros da Organização, poderá apresentar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos petições referentes a denúncias ou queixas de violação do artigo 7 desta Convenção por um Estado Parte, devendo a Comissão considerar tais petições de acordo com as normas e procedimentos estabelecidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e no Estatuto e Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para a apresentação e consideração de petições".

O peticionamento pode ser feito diretamente no site da OEA, onde as partes podem até mesmo pedir medidas cautelares. Basta preencher o formulário relatando tudo o que foi negado pela autoridade judiciária brasileira.

A apelação à OEA é um ato extremo, mas necessário e educativo. É preciso acompanhar as transformações sociais que desafiam a sociedade, entender e aceitar a diversidade e, sobretudo, fazer cumprir a lei, em última instância, o motivo de ser da Justiça e a tarefa cotidiana de todo operador do Direito.

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