Opinião

Improbidade e anticorrupção: é possível cumular as suas sanções?

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3 de setembro de 2021, 13h41

Não é exagero afirmar que o combate à corrupção vem pautando o debate público no país nas últimas décadas. Essa pauta gerou, naturalmente, inúmeros frutos. Um deles foi a Lei nº 12.846/2013, popularmente conhecida como a Lei Anticorrupção Empresarial (LAE).

O impulso para a sua criação partiu de um diagnóstico preciso: a Lei de Improbidade Administrativa (LIA) prevê uma série de sanções administrativas e civis para o agente público e para o particular que com ele concorra na prática de ilícitos contra a Administração Pública. Não havia, todavia, diploma legal que impusesse sanções ao particular quando da prática de ilícitos contra a administração sem a participação de um agente público. O exemplo mais comum desses ilícitos é a colusão de empresas para fraudar processos licitatórios (cartel), sem que nenhum agente público tenha concorrido para a prática. A operação "lava jato" foi pródiga em descortinar ilícitos dessa natureza. Nesses casos, a LIA não era suficiente para preveni-los e puni-los na esfera civil-administrativa.

Além disso, a LIA também não era suficiente para prevenir e punir atos ilícitos cometidos por particulares nacionais contra a Administração Pública estrangeira. Os atos de improbidade passíveis de sanção pela LIA são somente aqueles praticados contra a administração dos entes federativos, das empresas públicas nacionais e das sociedades de economia mista. Mas o Brasil já havia assumido inúmeros compromissos internacionais no sentido de punir também atos de corrupção cometidos perante a administração estrangeira, com a participação ou não de seus agentes.

Foi para suprir esses dois vácuos legislativos que a LAE foi elaborada e promulgada, com especial enfoque à responsabilização da pessoa jurídica e ao estímulo de criação de mecanismos eficientes de self-policing institucional (daí a alcunha de Lei Anticorrupção Empresarial). O Parecer nº 649/2013 do Senado Federal que subsidiou a sua aprovação é explícito nesse sentido [1].

O texto final da norma, no entanto, prevê, entre os atos lesivos passíveis de sanção, "prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada" (artigo 5º, I). Essa conduta, por envolver diretamente o agente público na sua descrição (e sem especificar se é o agente nacional ou estrangeiro), confunde-se com outras já tipificadas pela LIA, mais especificamente aquelas previstas nos incisos de seu artigo 9º, nos quais estão descritos os atos de improbidade que importam enriquecimento ilícito do agente.

Daí surge a controvérsia: o particular que praticar conduta passível de ser tipificada em ambos os diplomas legais estará submetido a duas punições de mesma natureza (civil-administrativa) em razão dos mesmos fatos? Estará sujeito ao ajuizamento de duas ações judiciais, uma para a aplicação das sanções da LIA e outra para as sanções da LAE?

A LAE parece responder afirmativamente a essa dúvida, ao prever, em seu artigo 30, I, que "(a) aplicação das sanções previstas nesta Lei não afeta os processos de responsabilização e aplicação de penalidades decorrentes de: ato de improbidade administrativa nos termos da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992". Essa foi a conclusão a que recentemente chegou o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: com base nesse dispositivo legal, o TJ-RJ concluiu que a LIA e LAE são diplomas complementares, componentes do que se convencionou designar microssistema de combate à corrupção, de modo que não há qualquer embaraço legal para que o particular seja duplamente acionado pelo mesmo ato ilícito [2].

Essa não nos parece, contudo, a solução mais acertada. Como toda norma infraconstitucional, a LAE precisa ser interpretada e aplicada conforme a Constituição Federal. E não nos parece condizente com o regime constitucional brasileiro admitir que o particular seja duplamente sancionado em razão da prática de um só ato ilícito, com a cumulação de sanções de uma mesma esfera jurídica, previstas em dois diplomas distintos. Afinal, apesar de suas diferenças (inclusive de regime de responsabilização), os bens jurídicos tutelados pela LIA e pela LAE são exatamente os mesmos: o patrimônio público e a moralidade administrativa (também na sua eficácia exógena) [3].

Essa cumulação de sanções análogas ofende o postulado do ne bis in idem. Embora tenha a sua gênese ligada à garantia individual do sujeito de não responder duas vezes pelo mesmo crime, o ne bis in idem também tem aplicabilidade em sede de direito administrativo sancionador que, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, "se aproxima muito do direito penal e deve ser compreendido como uma extensão do jus puniendi estatal e do sistema criminal" [4]. Corolário natural dos postulados constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade, o ne bis idem está expressamente previsto no artigo 8º, item nº 4, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), norma recepcionada pelo Decreto Legislativo nº 27/92 e que ostenta o atributo da supralegalidade, suficiente para derrogar qualquer norma infraconstitucional que a contrarie (inclusive o artigo 30 da LAE) [5].

Essa cumulação também ofende o princípio da isonomia, ao admitir que, em razão de um mesmo ato ilícito, o particular seja duplamente sancionado, ao passo que o agente público só responderá pelas sanções previstas na LIA. E isso quando o próprio sistema penal pune com maior rigor os delitos praticados por agentes públicos. Além disso, a dupla condenação de sanções pecuniárias da mesma natureza (por exemplo: multa de caráter retributivo), previstas em ambas as leis, prestigia o enriquecimento sem causa do Estado, com a correlata vulneração ao direito de propriedade do particular.

Mas se não pode cumular, como definir o diploma e as sanções aplicáveis a essas hipóteses? A resposta, a nosso ver, também passa por uma solução cara ao Direito Penal: o princípio da especialidade. As condutas descritas em ambas as normas são semelhantes, mas a LIA possui um elemento especializante: a participação do agente público nacional no ato ilícito. Desse modo, sempre que o particular induzir, concorrer ou se beneficiar do ato ilícito cometido por um agente público nacional estará submetido às sanções da LIA (cf. artigo 3º). Mesmo a pessoa jurídica, como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça [6].

Por outro lado, se o ato ilícito for cometido sem a participação de um agente público nacional, o particular estará submetido às sanções da LAE. Essa é a solução que melhor respeita a mens legis de ambos os diplomas, sem vulnerar garantias básicas dos administrados. Inúmeros doutrinadores se posicionam nesse sentido (só para citar alguns: Maria Sylva Zanella Di Pietro [7], Cristiana Fortini [8], Luciano Ferraz [9] e Wallace Paiva Martins Junior [10]).

Há quem contra-argumente que, nesse cenário, a pessoa jurídica que comete um ato ilícito contra a Administração em conjunto com um agente público nacional é apenada com sanções mais brandas do que a pessoa jurídica que o comete sozinha, já que as sanções da LAE são mais pesadas para a empresa, inclusive com a previsão de verdadeira pena de morte da pessoa jurídica, que é a sua dissolução, e de responsabilização objetiva, independente de culpa ou dolo [11].

Por isso, há quem defenda que o agente público deva responder pelas sanções da LIA, cujas disposições são mais voltadas para a sua responsabilização, enquanto a pessoa jurídica pelas sanções da LAE, desenvolvidas especialmente para a responsabilização das empresas. Uma solução próxima à adotada pelo Código Penal para os crimes de corrupção ativa (cometido pelo particular) e de corrupção passiva (cometido pelo agente público). Mesmo no caso de concurso de agentes, o particular responde pelo crime de corrupção ativa, e o funcionário público, pelo de corrupção passiva.

A proposta é interessante do ponto de vista pragmático e evita a cumulação das sanções de ambas as leis sobre o particular. Mas, do ponto de vista hermenêutico, é no mínimo curiosa a adoção de uma exceção do sistema punitivo como solução interpretativa.

Afinal, a regra do sistema punitivo brasileiro é a teoria monista (CP, artigo 29, caput), segundo a qual todos os que concorrem para a prática da conduta criminosa incorrem no mesmo delito. E essa é a teoria expressamente adotada pela LIA ao prever, em seu artigo 3º, que "(a)s disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta".

Por isso, a nosso ver, a solução para esse contra-argumento deve ser de lege ferenda, consistente na alteração legislativa da LIA para aprimorar as sanções impostas à pessoa jurídica que induzir, concorrer ou se beneficiar do ato de improbidade administrativa. Ou mesmo para excluí-la expressamente de sua esfera de incidência, restringindo a sua responsabilização às sanções previstas na LAE. O Projeto de Lei nº 10.887/2018 — cujo escopo é justamente a reforma da LIA — é uma excelente oportunidade para esse ajuste. Mas, até aqui, o PL proposto não só desperdiça essa oportunidade como ainda agrava o risco de legitimação do bis in idem ao prever que o juiz deverá, ao sentenciar, "levar em consideração na aplicação das sanções a dosimetria das sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato já aplicadas ao agente" (artigo 18, V).

A inegável importância do combate à corrupção — prática entranhada na vida pública e privada do país há séculos — não pode legitimar a vulneração de garantias básicas dos administrados, o bis in idem, a aplicação de sanções de uma mesma natureza em razão de um mesmo ato ilícito. A simples retórica do microssistema de combate à corrupção tampouco pode legitimar, em sede de Direito Administrativo sancionador, a aplicação cumulativa e indistinta de diplomas legais congêneres a um mesmo fato.

 

Referências bibliográficas
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago (Coord.). Lei Anticorrupção comentada. 2.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018.

FORTINI, Cristiana. Excesso de punição a atos de corrupção não favorece interesse público. Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-ago-10/interesse- publico-excesso-punicao-atos-corrupcao-nao-favorece-interesse-publico.

FERRAZ, Luciano. Reflexões sobre a Lei nº 12.846/2013 e seus impactos nas relações público-privadas: lei de improbidade empresarial e não lei anticorrupção. Revista Brasileira de Direito Público — RBDP, Belo Horizonte, ano 12, nº 47, p. 33-43, out./dez. 2014.

ANDRADE, Landolfo. Interesses Difusos e Coletivos. Volume 2. São Paulo: Método, 2018.

MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Sanções por ato de improbidade administrativa. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. VÉRAS, Rafael. A juridicidade da Lei Anticorrupção — Reflexões e interpretações   prospectivas. Disponível em: https://www.editoraforum.com.br/wp-content/uploads/2014/01/ART_Diogo-Figueiredo-Moreira-Neto-et-al_Lei-Anticorrupcao.pdf. Acesso em 26 ago. 2021.

 

[1] "A legislação brasileira é, contudo, omissa quanto a punições de caráter civil a pessoas jurídicas, por atos de lesão ao patrimônio público, quando não houver participação de agente público no ilícito, de modo a caracterizar a ocorrência de ato de improbidade administrativa. É certo que os mecanismos de ressarcimento e recomposição do patrimônio público encontram-se bem disciplinados, tendo aplicação também a esses casos, como o demonstram a Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965). Falta, no entanto, prever medidas punitivas de natureza penal, civil ou administrativa para as pessoas jurídicas, quando a lesão é provocada independentemente de participação de servidor público. É necessário assegurar a punição quanto o ato lesivo se dá contra a administração pública estrangeira."

[2] 0140052-14.2018.8.19.0001.

[3] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. VÉRAS, Rafael. A juridicidade da Lei Anticorrupção — Reflexões e interpretações               prospectivas. Disponível em: https://www.editoraforum.com.br/wp- content/uploads/2014/01/ART_Diogo-Figueiredo-Moreira-Neto-et-al_Lei-Anticorrupcao.pdf. Acesso em 26 ago. 2021.

[4] STF, Rcl 41557, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 15/12/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-045 DIVULG 09-03-2021 PUBLIC 10-03-2021.

[5] "(…) Diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante." (STF, RE 466.343/SP, Tribunal Pleno, Rel. Minº Cezar Peluso, DJe 5.6.2009)

[6] "(…) Considerando que as pessoas jurídicas podem ser beneficiadas e condenadas por atos ímprobos, é de se concluir que, de forma correlata podem figurar no polo passivo de uma demanda de improbidade, ainda que desacompanhada de seus sócios." (REsp 970.393/CE, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 21.6.2012, DJe 29/06/2012)

[7] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago (Coord.). Lei Anticorrupção comentada. 2.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p.332.

[8] FORTINI, Cristiana. Excesso de punição a atos de corrupção não favorece interesse público. Conjur. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-ago-10/interesse-publico-excesso-punicao-atos-corrupcao-nao-favoreceinteresse-publico.

[9] FERRAZ, Luciano. Reflexões sobre a Lei nº 12.846/2013 e seus impactos nas relações público-privadas: lei de improbidade empresarial e não lei anticorrupção. Revista Brasileira de Direito Público — RBDP, Belo Horizonte, ano 12, nº 47, p. 33-43, out./dez. 2014.

[10] MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Sanções por ato de improbidade administrativa. Enciclopédia jurídica da PUC- SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire.

[11] Nesse sentido: ANDRADE, Landolfo. Interesses Difusos e Coletivos. Volume 2. 2018, p. 851-856.

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