seguros contemporâneos

Novo seguro nas operações de M&A?

Autores

  • Claudio Miranda

    é advogado e sócio do escritório Chalfin Goldberg Vainboim.

  • Thiago Junqueira

    é doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra professor convidado da FGV Direito Rio da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil advogado e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

2 de setembro de 2021, 8h00

A operação de reorganização societária é parte da rotina de empresários brasileiros e internacionais, à medida em que oferta às sociedades envolvidas oportunidades para o desenvolvimento de novos negócios e para a solução de questões relevantes em sua atuação empresarial, seja para fins de acelerar sua expansão, seja para ampliar a eficiência de suas operações.

Apesar de, na prática, serem inúmeras as combinações e estruturas possíveis, juridicamente vislumbram-se quatro operações a nortear o que se convencionou denominar "fusões e aquisições" ou, na sigla em inglês, "mergers and acquisitions — M&A"; são elas: 1) transformação (a sociedade altera o seu tipo societário, sem implicar sua dissolução ou liquidação); 2) fusão (duas ou mais entidades se unem para formar uma sociedade nova); 3) cisão (uma sociedade transfere parcelas de seu patrimônio para uma ou mais sociedades); e 4) incorporação (operação por meio da qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em direitos e obrigações).

Tais operações envolvem ritos e procedimentos interdisciplinares relevantes, uma vez que é de suma importância que o comprador tenha acesso aos ativos e passivos, assim como às contingências, especialmente trabalhistas e tributárias, decorrentes da sociedade a ser adquirida. A apuração desses elementos, em regra, ocorre no âmbito de auditorias jurídicas, contábeis e de procedimento, conhecidas pela expressão anglo-saxônica due diligence.

O levantamento acurado dos riscos e da efetiva situação econômico-financeira do ativo alvo consiste em elemento fundamental para que o comprador possa, entre outras questões relevantes, definir e negociar com o vendedor o preço para a formalização da operação, o qual, em muitos negócios recentes, tem superado a casa das centenas de milhões ou, até mesmo, dos bilhões de reais [1].

Nesse contexto, para além da aplicação de métricas e cálculos de ordem jurídica, financeira e contábil, subsistem importantes elementos de ordem subjetiva, advindos da interpretação e da resiliência dos diferentes agentes econômicos envolvidos na negociação para fins de assunção de riscos e, sobretudo, de definição de valores presentes e futuros. A resolução dessas divergências envolve numerosas estruturas, ferramentas, negociações e institutos aplicados ao direito societário, podendo abranger, a título de ilustração, o ajuste de participações societárias através de valores mobiliários, a celebração de garantias e a definição de mecanismos de apuração de resultados em periodicidade recorrente.

Para os fins deste artigo, destaca-se a celebração e o funcionamento da chamada "escrow account" ou "conta garantia". De forma objetiva, trata-se de contrato que disciplina conta bancária especificamente criada com o objetivo de custodiar valores provisionados para fazer frente a determinado dispêndio exigível da sociedade adquirida, protegendo-se o interesse da sociedade compradora do ativo. Ou seja, em havendo divergência entre as partes a respeito do risco e do valor envolvido em determinada contingência passiva, a contratação de uma escrow possibilita que tal questão não prejudique a celebração da operação, de modo que o comprador deposite os valores objeto da divergência na conta bancária, administrada por um terceiro. Ato subsequente, caso a contingência passiva se materialize, haverá a liberação dos recursos para honrar com as respectivas obrigações. Caso não venha a ocorrer tal passivo envolvendo o ativo alvo, os valores são liberados em favor do vendedor, compondo o preço da operação.

Nas precisas palavras de Edwin S. Mills: "Uma conta escrow consiste em fundos detidos por um terceiro, que coleta, armazena e desembolsa os fundos de acordo com um contrato ou uma obrigação entre as duas partes" [2]. São comuns em diferentes tipos de operação e se destacam principalmente no âmbito de fusões e aquisições empresariais.

Vislumbra-se, portanto, amplo espaço à autonomia privada, de forma que, em bases equilibradas e bem negociadas, as partes viabilizem a implementação da operação, deixando com que discussões envolvendo riscos ou contingências específicas sejam maturadas e, após o decurso do tempo necessário, resolvidas à luz das peculiaridades de cada caso específico.

Tal instrumento, apesar de extremamente comum e eficiente na prática empresarial e nas operações de reorganização societária, não está imune a críticas e a aperfeiçoamentos. Entre tais elementos, destacam-se a necessidade de o comprador mobilizar, desde a largada, volumes relevantes de recursos destinados à conta garantia, a complexidade para o provisionamento das contingências passivas e do tempo para aguardar sua resolução, a intangibilidade dos valores depositados e os custos envolvidos para a contratação dos poucos agentes de mercado que ofertam essa ferramenta de forma profissional.

Dentro desse contexto, sem a pretensão de substituir, mas com o intuito inegável de aprimorar o instituto, foi desenvolvida alternativa de mercado interessante e eficiente para a situação descrita acima, respondendo a tais inconvenientes e possibilitando a oferta de um novo instrumento para a viabilização de operações como a aqui narrada. Trata-se do designado Seguro Garantia para Substituição de Conta Escrow, recentemente noticiado pela mídia brasileira [3].

Em termos gerais, o instituto, que ainda está dando os seus primeiros passos, funciona como alternativa à contratação de "conta escrow", de maneira que sejam diretamente resguardados os interesses do vendedor e, por conseguinte, indiretamente, sejam endereçados as expectativas e os receios do comprador do ativo objeto da operação de reorganização societária.

Desse modo, instrumentalizado em apólice à base de reclamação com notificação, o objeto do seguro é garantir indenização, até o valor fixado na apólice, à sociedade vendedora pelos prejuízos decorrentes do inadimplemento das obrigações assumidas e inadimplidas por ela no contrato principal, referentes ao pagamento de passivos judiciais (existentes e potenciais) e identificados durante a fase de due diligence, isto é, de contingências identificadas.

Nesse sentido, o risco econômico identificado quando da negociação para fins de aquisição do ativo alvo, diretamente relacionado ao advento futuro de contingências passivas que possam repercutir negativamente no patrimônio daquele ativo, é endereçado e transferido da esfera negocial estabelecida entre as partes da operação para a matriz de riscos disciplinada pela seguradora em questão. Entre outras, são garantidas as obrigações inadimplidas pelo tomador do seguro (leia-se, o vendedor, que afigura-se o devedor das obrigações, nos termos do contrato principal de fusão e aquisição empresarial) decorrentes de acordos judiciais, de parcelamentos administrativos, bem como obrigações decorrentes de direito de sub-rogação por empresa garantidora.

Sem que haja a necessidade de contratação e depósito de recursos financeiros volumosos na conta escrow, os recursos são objeto de imediata liquidação entre as partes, compondo o preço a ser pago pelo vendedor ao comprador, na forma negociada nos instrumentos da operação. Isso porque, caso haja a materialização da contingência passiva, não haverá necessidade de recursos disponíveis serem direcionados para esse fim, posto que a cobertura do passivo será realizada pela entidade seguradora, consoante os termos e condições da respectiva apólice contratada, bem como do contrato de contragarantia, que assegurará a efetividade do direito à sub-rogação pelo segurador [4].

De outro lado, além de ofertar objetividade à operação, evitando que se desenrolem por anos a fio os atos relativos ao pagamento do preço negociado, o comprador absorve a vantagem indireta de adquirir o ativo alvo "imune" aos riscos acima apontados, eis que, uma vez deflagradas as contingências passivas, bastará comunicar à seguradora e aguardar que haja o seu pagamento.

Convém registrar que o alvissareiro instituto jurídico securitário objeto deste artigo cumpre função semelhante à exercida pelos já conhecidos "seguros M&A", apesar de com eles não se confundir. Isso porque, no âmbito do seguro M&A, o qual é passível de contratação pelo comprador ou vendedor, a cobertura incidirá sobre prejuízos advindos em razão da violação de cláusulas contratuais, protegendo-se o contratante justamente contra passivos e contingências passivas de natureza oculta, não identificadas quando da realização da due diligence e, assim, não consideradas quando da negociação do preço e da estrutura da operação.

De forma distinta, o Seguro Garantia para Substituição de Conta Escrow não se propõe a cobrir riscos ocultos, os quais, como o próprio nome indica, não eram de conhecimento das partes no momento da negociação da operação e, assim, não foram endereçados no âmbito dos seus instrumentos. Tais riscos não são cobertos por conta escrow, afinal apenas é possível destinar recursos para cobrir passivos futuros sobre os quais se reconhece a existência. No seguro garantia em comento, portanto, cobre-se o risco conhecido, justamente a contingência passiva que se reconhece como remota, possível ou provável, à luz da dinâmica da auditoria de cada operação, de modo que, uma vez implementada, haja o acionamento do seguro para sua cobertura.

Entre os riscos excluídos na apólice do Seguro Garantia Escrow, destacam-se os passivos não mencionados no relatório de due diligence e os decorrentes de infrações de leis de natureza penal. A perda de direitos, por sua vez, poderá ocorrer, entre outras hipóteses, caso o tomador do seguro não cumpra com o seu dever de declaração inicial do risco (artigo 766 do CC), enseje o agravamento intencional do risco (artigo 768 do CC) ou cometa atos ilícitos dolosos ou por culpa grave equiparável ao dolo [5].

Na eventualidade de concretização do risco coberto, ou seja, na ocorrência do sinistro, o segurador irá indenizar o segurado (empresa vendida). Todavia, cabe ressaltar que, com base no "contrato de contragarantia" (CCG), o tomador do seguro (vendedor original da empresa) terá de ressarcir o segurador. Nesse particular, é comum que o próprio tomador do seguro indenize o segurado diretamente, evitando dispêndio de custos e tempo adicionais.

Para não deixar a questão formulada no título do presente artigo — "Novo seguro nas operações de M&A?" — sem resposta específica, pode-se dizer que sim. O Seguro Garantia para Substituição de Conta Escrow se apresenta como instrumento inovador no mercado brasileiro, endereçando, a um só tempo, aspectos relevantes que correlacionam o direito securitário e as operações de M&A, e ofertando ao empresariado nacional alternativa eficiente para o endereçamento de seus riscos e a conclusão de seus negócios.

 


[1] "Apesar dos efeitos adversos da crise do coronavírus, o Brasil experimentou uma recuperação acentuada nas atividades de M&A no ano passado, com um recorde de 1.200 transações anunciadas, substancialmente mais do que a média histórica de cerca de 800 transações. No final de abril de 2021, 509 negócios foram anunciados ou fechados, deixando claro que o Brasil continua a oferecer oportunidades de investimento atraentes para investidores locais e estrangeiros. Com um aumento de negócios potencialmente em dificuldades ou de alto risco no bloco de ofertas, no entanto, ‘esqueletos’ relacionados à pandemia ou conformidade que permanecem ocultos durante a due diligence básica podem ter um impacto potencialmente devastador sobre os investidores". CIRNE, Renato; NEUMAN, Steven. M&A no Brasil: melhorando resultados através das due diligences. Disponível em: https://exame.com/bussola/ma-no-brasil-melhorando-resultados-atraves-das-due-diligences/Acesso em: 29.08.2021.

[2] MILLS, Edwin S. The Functioning and Regulation of Escrow Accounts. Housing Policy Debate, v. 5, n. 2, 1994, p. 204. Disponível em: https://www.innovations.harvard.edu/sites/default/files/hpd_0502_mills.pdf. Acesso em: 28.08.2021. (Tradução livre).

[3] TAUHATA, Sérgio. Seguro para aquisições pode liberar até R$ 60 bi. Disponível em: https://valor.globo.com/financas/noticia/2021/08/10/seguro-para-aquisicoes-pode-liberar-ate-r-60-bi.ghtml. Acesso em: 29.08.2021. O produto foi desenvolvido pela Corretora de Seguros Marsh e é comercializado, desde março de 2020, pela BMG Seguros.

[4] "Posto não obrigatório, é comum que o contrato de seguro garantia seja acompanhado de contragarantia celebrada entre sociedade seguradora e tomador, a fim de proteger a própria seguradora contra a ocorrência do sinistro, já que lhe permite recobrar do tomador os valores despendidos em favor do segurado diante do implemento do risco". TERRA, Aline de Miranda Valverde; SALGADO, Bernardo. O risco no seguro garantia e o inadimplemento anterior ao termo. In: GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago. Temas Atuais de Direito dos Seguros, Tomo II. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 490.

[5] Sobre a diferença entra a cláusula de exclusão de risco e a cláusula de perda de direitos, observa Luiza Petersen: "[…] embora as cláusulas de exclusão e perda de direitos se assemelhem, constituindo hipóteses de delimitação negativa do risco, elas operam de modo distinto, não podendo ser confundidas. Na primeira, a cobertura é afastada de plano, desde o início da relação contratual. Na segunda, há cobertura para o evento, porém, no curso da relação contratual o segurado vem a perder o direito em razão de determinado ato ou comportamento". PETERSEN, Luiza. O risco no contrato de seguro. São Paulo: Roncarati, 2018. p. 106.

Autores

  • é doutorando em Direito Comercial pela Uerj e sócio do escritório Chalfin, Goldberg e Vainboim Advogados.

  • é doutor em Direito Civil pela Uerj, mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra, pesquisador visitante do Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado (Hamburgo, Alemanha), professor convidado da FGV Direito Rio, da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros, advogado e sócio do escritório Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados.

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