Opinião

As inconsistências jurídicas da privatização da Eletrobras

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1 de setembro de 2021, 15h04

1)
Com a edição da Lei nº 14.182/2021, conclui-se o processo legislativo de autorização da privatização da Eletrobras, iniciado com a edição da Medida Provisória nº 1.031/2021 por Bolsonaro. O processo legislativo foi conduzido com grave déficit de legitimidade e racionalidade. O modelo aprovado recebe críticas não só de correntes políticas de inclinação estatal, mas também de setores identificados com a agenda das privatizações.

No processo legislativo, é natural que a vontade da maioria prevaleça. Porém, para que o resultado seja racional, é imprescindível que, antes de a maioria decidir, se instaure ambiente de amplo debate e se produzam as informações necessárias a uma deliberação informada [1]. No processamento da MP 1.031/2021, tais exigências não foram atendidas minimante. Sequer se cumpriu a previsão constitucional de submissão da medida provisória à comissão mista de deputados e senadores, prevista no artigo 62, §9º, tendo a MP sido apreciada diretamente aos plenários das casas [2].

É certo que o STF, nas ADPFs nº 661 e 663, autorizou a suspensão da observância do artigo 62, §9º, na vigência: a) da emergência em saúde pública; e b) do estado de calamidade pública decorrente da Covid-19. Esse segundo requisito, porém, já não se cumpria quando a MP 1.031/2021 foi editada — o estado de calamidade pública expirou em 31/12/2020. Hoje, dezenas de comissões já vêm funcionando na Câmara e no Senado, quer presencialmente, quer por intermédio de teleconferências, como a CPI da Covid-19.

A matéria não poderia sequer ter sido objeto de medida provisória, tendo em vista a inobservância do requisito da urgência (CF, artigo 62). A Eletrobras, instalada em 1962, foi construída ao longo de décadas por sucessivos governos [3]. O que demandou o esforço de gerações agora não se poderia alienar açodadamente, sem debate aprofundado e sem apresentação de dados técnicos.

A ilegitimidade procedimental se completa com a aprovação de emendas parlamentares alheias à privatização da empresa — tais emendas vêm sendo caracterizadas como "emendas jabuti". O texto final da Lei nº 14.182/2021: a) exige a contratação de termelétricas movidas a gás natural; b) estabelece, para os próximos leilões de energia nova, reserva de mercado para pequenas centrais hidrelétricas (PCHs); c) prorroga por 20 anos os contratos das usinas construídas no âmbito do Programa de Incentivos às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa).

Com o propósito de impedir que essas emendas fossem objeto de veto presidencial, constam todas do preceito mais mal redigido de toda a história legislativa brasileira: o artigo 1º, §1º, da Lei nº 14.182. O dispositivo possui 664 palavras, juntando assuntos que não mantêm entre si unidade temática. Ou o presidente o vetava por inteiro — alcançando a própria autorização para alienação da Eletrobras — ou não vetava nada. O veto presidencial, como se sabe, deve abranger o texto integral de dispositivo (CF, artigo 66, §2º). Ao impor obstáculo ilegítimo ao veto presidencial, a Lei nº 14.182/2021 viola não só a norma constitucional que o prevê (CF, artigo 66, §1º), mas também o princípio da separação de poderes (CF, artigo 2º).

Os principais problemas da Lei nº 14.182/2021 são, porém, materiais e derivam do próprio texto da própria medida provisória. É o que se demonstra nas sessões seguintes.

2)
A Medida Provisória nº 1.031/2021 promove a "descotização" de seis usinas de Furnas (Funil, Porto Colômbia, Corumbá, Estreito — Luís Carlos Barreto —, UHE Furnas e Marimbondo), sete usinas da Chesf (Itaparica, Xingó, Boa Esperança e Paulo Afonso — quatro usinas) e uma usina da Eletronorte (Usina de Coaracy Nunes).

Por meio da Lei 12.783/2013, a União havia disciplinado a renovação antecipada de contratos de concessão daquelas usinas. Com a renovação, a concessionária se obrigava a entregar "cotas" da energia às distribuidoras, as quais atendem aos consumidores residenciais e às empresas de pequeno porte. A amortização da construção das usinas já estava em vias de se concluir, razão pela qual, indenizados eventuais resíduos, as novas tarifas seriam fixadas pela Aneel sem incluir valores com essa destinação. Tais contratos, fortemente vantajosos para o consumidor final, vigorariam até aproximadamente 2043.

Em decorrência da Lei nº 14.182/2021, a nova Eletrobras, privatizada, se desonera de cumprir as cotas e passa a poder negociar toda produção das usinas "descotizadas" no "ambiente de contratação livre".

A Lei nº 14.182/2021 determina ainda a renovação antecipada, no mesmo regime, das concessões de Tucuruí e de Mascarenhas de Moraes, as quais venceriam em agosto de 2024 e em outubro de 2023. Ao final das concessões atuais, realizar-se-ia nova licitação, adotando-se regime de cotas com tarifa fixada pela Aneel. Quanto a Tucuruí e Mascarenhas de Moraes, a Lei nº 14.182/2021 impede a concretização desses eventos futuros, que produziriam impacto tarifário positivo.

Em 2020, a tarifa máxima praticada pelas usinas "cotizadas" da Eletrobras, já acrescido do valor relativo ao "risco hidrológico", chegou a R$ 93/MWh — subtraindo-o, a tarifa seria de R$ 61/MWh. Hoje, a tarifa média praticada pelas usinas não cotizadas é de R$ 222,17/MWh: a "descotização" tende a fazer com que as novas tarifas se aproximem desse patamar. Os prognósticos quanto ao impacto tarifário são alarmantes. A Fiesp, por exemplo, emitiu comunicado reportando sua estimativa de que, em 30 anos, os consumidores deverão pagar a mais cerca de R$ 400 bilhões [4].

Embora o governo negue, o impacto tarifário se deduz da própria Lei nº 14.182/2021, a qual prevê o pagamento, pela concessionária, de "bônus de outorga" correspondente a 50% do valor adicionado às concessões os outros 50% serão destinados à Conta de Desenvolvimento Energético, supostamente para reduzir o impacto tarifário. O "valor adicionado" às concessões decorrerá justamente da possibilidade de a concessionária praticar tarifas maiores [5].

O modelo desconsidera que o texto constitucional concebe os recursos hídricos como propriedade pública (artigo 20, III, VIII e 176, caput) e sua exploração como prestação de serviço público (artigos 21, XII, e 176, §1º). Como se trata de serviço público, é imperativa a observância do princípio da modicidade tarifária (CF, artigo 175, caput, e parágrafo único, IV). Os serviços públicos servem à satisfação de direitos fundamentais [6], ao atendimento de necessidades essenciais [7]: as tarifas devem ser módicas para possibilitar o amplo acesso às respectivas prestações [8].

Como estruturada na Lei nº 14.182/2021, a operação viola os princípios da moralidade (CF, artigo 37, caput), da licitação (CF, artigo 37, XXI, e artigo 175, caput) e da modicidade tarifária (CF, artigo 175, caput e parágrafo único, IV; Lei 8987, artigo 6º, §1º). O governo não está apenas privatizando a Eletrobras. Está vendendo aos investidores o direito de encarecer nossa conta de luz! Está obrigando os usuários a pagar novamente por ativos pelos quais já pagaram!

3)
Nada obstante se ocupe da prestação de serviço público, não de atividade econômica em sentido estrito, o sistema elétrico brasileiro já é predominantemente privado. A Eletrobras é responsável pela produção somente de cerca de 30% da energia consumida no Brasil.

Na verdade, a Eletrobras tem funcionado como importante indutor de investimentos privados. Grande parte das usinas construídas recentemente resultaram de parcerias público-privadas (PPPs). As licitações são disputadas por consórcios integrados por empresas privadas e por estatais. O vencedor forma sociedade de propósito específico (SPE) para explorar a concessão. Na SPE, a participação pública deve necessariamente ser minoritária: são os parceiros privados que a controlam (artigo 9º, §4º, da Lei nº 11.079/2004).

O modelo foi empregado, por exemplo, na construção das hidrelétricas de Belo Monte (2016), Jirau (2013), Santo Antônio (2012), Teles Pires (2015), São Manoel (2018) e Dardanelos (2011), e de inúmeros empreendimentos menores, como usinas eólicas e térmicas [9]. De 2000 a 2020, os investimentos totais realizados pela Eletrobras chegaram a R$ 190 bilhões, aos quais, em inúmeros empreendimentos, se somaram investimentos privados. Sem tais investimentos, hoje já estaríamos submetidos e rigoroso racionamento, tendo em vista a seca histórica que ora acomete o país. Como o governo, até o momento, não apresentou alternativa a essa forma de ampliação do setor elétrico, cria-se ambiente de grave insegurança: o crescimento do setor elétrico deve anteceder o da economia, como sua condição de possibilidade.

Não apenas os consumidores residenciais serão afetados pela alteração do regime tarifário. É certo que grandes consumidores podem negociar a aquisição de energia no ambiente de contratação livre [10]. Pequenas e médias empresas, porém, estão excluídas desse ambiente [11]. O processo de desindustrialização hoje vivenciado no Brasil associa-se, entre vários fatores, ao custo da energia. A privatização da Eletrobras, como modelada na Lei nº 14.182/2021, aprofunda o problema [12].

A promoção unilateral dos interesses de investidores institucionais, em detrimento do setor produtivo, se revela no procedimento de privatização adotado: aumento de capital com diluição do poder de controle [13], sem realização de processo licitatório. O modelo descumpre o que foi decidido pelo STF no julgamento da ADI nº 5624, que fixou dois requisitos para a alienação do controle de estatais: a) autorização legislativa; e b) licitação pública [14]. A licitação permitiria condicionar a participação no certame à capacidade técnica para gerir a Eletrobras e à capacidade econômica para fazer investimentos. O modelo adotado cria o risco de tornar a empresa acéfala, entregue ao atendimento de interesses financeiros de curto prazo.

A Lei nº 14.182/2021 está em desconformidade com vários princípios constitucionais da ordem econômica. Considerem-se, em especial, as seguintes violações:

a) Por permitir o encarecimento da tarifa, alterando contratos de concessão que são mais favoráveis aos consumidores, viola o princípio da defesa do consumidor (artigo 170, V);

b) Por permitir a transferência de renda dos usuários do sistema para investidores institucionais, viola o princípio da redução das desigualdades sociais (artigo 170, VII);

c) Por permitir a negociação em ambiente de contratação livre da energia produzida por grandes usinas hidrelétricas, em situação tendente ao monopólio natural, viola o princípio da livre concorrência (artigo 170, IV);

d) Por onerar o acesso à energia elétrica para as empresas dedicadas à produção, viola os princípios da valorização do trabalho humano e da livre iniciativa (artigos 1º, IV, e 170, caput);

e) Por onerar especialmente as empresas de pequeno porte, que consumiam a energia produzida pelas hidrelétricas "cotizadas", viola o princípio do tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte (artigo 170, IX).

A economia brasileira deve assegurar a todos "existência digna", conforme os ditames da "Justiça social" (CF, artigo 170). A Lei nº 14.182/2021 opera no sentido inverso: funcionaliza os usuários do sistema elétrico ao atendimento dos interesses financeiros de curto prazo de alguns poucos investidores institucionais.

 


[1] Três inovações recentes refletem a exigência de racionalização do processo de elaboração normativa: (a) A Emenda Constitucional nº 95 — no geral, reprovável — exige que os projetos de lei que criem despesas obrigatórias ou instituam renúncia de receitas sejam acompanhados de estudo de impacto orçamentário e financeiro (ADCT, artigo 113); (b) o Decreto nº 9191/2017, em seu artigo 32, VI, determina que o parecer de mérito que subsidia a edição de atos normativos inclua "análise de impacto da medida"; (c) Por fim, a Lei nº 13.848/2019, originária da MP nº 881, prescreve a elaboração de "análise de impacto regulatório" no curso processo de elaboração normativa.

[2] Cf.: ADI 4029, Relator Luiz Fux, DJe-125 27.06.2012.

[3] Em 1961, entrou em vigor a Lei nº 3.890-A autorizando a criação da companhia. A instalação da empresa ocorreu em 1962. Algumas das subsidiárias da empresa já existiam: a CHESF foi criada em 1948; Furnas, em 1957. Depois da criação da Eletrobrás, em 1968, foi criada a Eletrosul; em 1973, a Eletronorte; em 1974, a Itaipu Binacional; em 1997, a Eletronuclear.

[4] FSP, 15.06.2021.

[5] Na Nota Técnica, emitida em 2017, a Aneel indicou a iniquidade da "descotização" e seu inequívoco impacto tarifário: "Trata-se de ativos já depreciados, cuja remuneração foi garantida ao longo dos anos pelos usuários (consumidores cativos ou livres), desde o início da prestação do serviço de geração. Estabelecer um novo regime comercial, em que o preço será estabelecido livremente, tem um efeito perverso sobre o custo de energia suportado por esses consumidores". (Nota Técnica nº 01/2017-ASD-SRM-SGT-SRG-SCG-SRT/Aneel).

[6] JUSTEN FILHO, M. Curso de direito administrativo, 2005, p. 480.

[7] CIRNE LIMA, R. Princípios de Direito Administrativo Brasileiro, 1939, p. 69.

[8] A Lei nº 8987/95, ao regulamentar o artigo 175 da Constituição da República, define como "adequado" o serviço prestado com a observância, entre outros, do princípio da modicidade das tarifas (artigo 6º, §1º).

[9] O Estado tem participado da expansão do setor elétrico como financiador, por meio do BNDES. Cf.: IPEA. Introdução. Inº Infraestrutura e Planejamento no Brasil Coordenação estatal da regulação e dos incentivos em prol do investimento — o caso do setor elétrico. Brasília, 2012.

[10] Com a edição da Portaria 514/2018 do MME, a partir de janeiro de 2020, consumidores com demanda superior a 2.000 kw passaram a ter acesso ao mercado livre.

[11] Pequenas e médias empresas geram 54% dos empregos formais no Brasil, pagam 40% dos salários e produzem 27% do PIB nacional.

[12] Não se estranha que Fiesp, FIRJAN e mesmo a ABRACE (Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres) tenham apresentado críticas severas ao modelo. O presidente executivo desta última foi enfático: "o governo venderá uma Eletrobras e uma outra Eletrobras será paga pelos consumidores" (G 1, 02.06.2021).

[13] O governo não pretende vender a totalidade de suas ações da Eletrobras. Pretende manter participação acionária pouco inferior a 50% das ações. Com isso, perde o controle acionário, fazendo com que a empresa mude de natureza. Deixa de ser sociedade de economia mista (empresa estatal) e passa a ser empresa privada. A alteração faz toda a diferença. Como prescreve a Lei nº 6404/76, artigos 115-117, o poder de controle deve ser exercido no interesse da empresa controlada. No caso das sociedades de economia mista, porém, a própria Lei nº 6.404/76 (artigo 238) excepciona a regra: legitima o exercício do poder de controle, pelo Estado, no sentido da realização do interesse público.

[14] ADI 5624 MC- Rel.: Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, DJ de 29/11/2019.

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