Opinião

Fim da sucumbência em caso de Justiça gratuita: avanço no processo democrático

Autor

  • Igor de Oliveira Zwicker

    é doutor em Direito pela UFPA (Universidade Federal do Pará) mestre em Direitos Fundamentais pela Unama (PA) especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Ucam (RJ) e em Gestão de Serviços Públicos pela Unama (PA).

31 de outubro de 2021, 6h04

No último dia 20, o STF julgou inconstitucionais a parte final do caput e o §4º do artigo 790-B e o §4º do artigo 791-A, ambos da CLT [1].

Assim, passa a ser considerado inconstitucional impor ao beneficiário da Justiça gratuita: 1) a responsabilidade pelo pagamento dos honorários periciais, ainda que tenha obtido em juízo créditos capazes de suportar a despesa, devendo a União sempre responder por este encargo; ou 2) o pagamento de honorários advocatícios sucumbenciais, independentemente de o beneficiário ter ou não obtido em juízo, mesmo que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa, inexistindo, a partir de agora, o rito fixado pela reforma trabalhista (Lei n. 13.467/2017) de aguardar créditos por dois anos, sob condição suspensiva de exigibilidade, tendo em vista que agora tais créditos são, definitivamente, inexigíveis.

Na mesma assentada, o STF julgou constitucional o §2º do artigo 844 da CLT, mantendo a cominação de custas ao beneficiário da Justiça gratuita que não compareça à audiência e dê ensejo ao seu arquivamento, salvo se houver a comprovação, dentro do prazo de 15 dias, que a ausência ocorreu por motivo legalmente justificável.

Esse julgamento representa uma grande contribuição da Suprema Corte ao processo democrático e justo e ao acesso à Justiça e à ordem jurídica justa, senão vejamos.

Para essa compreensão, o primeiro recorte a se fazer é quanto à distinção de "aventuras jurídicas" do acesso à ordem jurídica justa; são realidades jurídicas distintas. 

Para os aventureiros, a própria reforma trabalhista implementou os artigos 793-A a 793-D, na CLT, que repelem expressamente a conduta de quem litigar de má-fé como reclamante, reclamado ou interveniente e, ainda, responsabiliza o litigante de má-fé por dano processual, com a cominação de multa, indenização, ressarcimento de despesas e, ainda, com o pagamento de honorários advocatícios, ainda que o litigante de má-fé seja beneficiário da justiça gratuita.

Como bem discorrem Mauro Cappelletti e Bryant Garth, o primeiro obstáculo de acesso à Justiça — à ordem jurídica justa — é o obstáculo econômico, com a consequente deficiência de aparato jurídico para a assistência aos pobres [2].

O próprio poder constituinte originário elevou a direito fundamental — portanto, a cláusula pétrea, infensa não só a reforma por emenda constitucional, mas a interpretação que lhe reduza o alcance [3] — o direito daqueles que comprovem insuficiência de recursos à prestação de assistência jurídica integral e gratuita por parte do Estado — incluindo o Estado-juiz, na forma do artigo 5º, LXXIV, da CR.

A diferença entre essas realidades jurídicas é patente, não somente em termos conceituais e interpretativos, mas fáticos e práticos, quando verificados os números.

Lembre-se que, com seis meses de vigência da reforma trabalhista, as reclamações trabalhistas reduziram em mais de 40% [4], cerca de meio milhão de ações.

Perguntas: esse contingente tratava apenas de aventuras jurídicas? Em seis meses, mais de meio milhão de empregadores passaram a cumprir suas obrigações trabalhistas, exatamente como determina a legislação do trabalho? É mais plausível imaginar que aventureiros deixaram de se aventurar do que conceber que trabalhadores que não tiveram seus direitos garantidos tiveram receio de ajuizar reclamações trabalhistas para não saírem com um passivo maior do que o ativo?

O ordenamento jusconstitucional não admite interpretações teratológicas, despidas de razoabilidade.

Veja-se um dado seriíssimo: após a reforma trabalhista, o número de reclamações trabalhistas com pedidos de indenização em decorrência da prática de assédio sexual caiu quase 70% [5]. Por quê? Porque a prova do assédio sexual é muito difícil, o que passou a impelir o trabalhador ou a trabalhadora assediado a não reclamar a indenização, pois, caso o pedido fosse julgado improcedente, teria que pagar honorários advocatícios sucumbenciais sobre o valor do pedido.

Como a prova do assédio sexual é muito difícil, "melhor não pedir", para não arcar com tamanha despesa. Isso é justo? É razoável? Creio que não. Aventuras jurídicas equivalem a dano processual e não podem ser repelidas com a admoestação do acesso à Justiça e à ordem jurídica justa.

Aliás, é uma grande falácia que o trabalhador "sempre vence". As reclamações trabalhistas totalmente procedentes são mínimas. O que ocorre é que, no processo do trabalho, é comum a cumulação de pedidos — com capítulos de sentença procedentes e improcedentes.

Generalizar para acusar juízes trabalhistas de falta de critério na concessão do benefício é uma sugestão grave. A Justiça é do Trabalho, não do trabalhador ou de quem contrata, é de quem tem o direito. Se o empregador cumpre com seus deveres, religiosamente, não tem o que temer. E se o trabalhador quer se aventurar, não será na Justiça do Trabalho, que deve reprimir a má-fé, ainda que do beneficiário da Justiça gratuita.

O que não se discute é que, sim, a maioria dos casos é de descumprimento da legislação do trabalho; sim, o empregado se vê compelido a aderir ao contrato de trabalho sem muito questionar, no curso do contrato, justamente para não ficar desempregado e não perder a sua fonte de sustento e sobrevivência. E é exatamente por isso que o poder constituinte originário atribuiu a um magistrado especializado julgar os conflitos decorrentes das relações entre o capital e o trabalho. Há de se ter sensibilidade na hora de julgar, particularmente, esses conflitos.

O protecionismo existe, e tem de existir. Não se concebe que o ordenamento jusconstitucional proteja o consumidor hipossuficiente, que comprou uma caneta que não risca e se viu lesado, mas não se proteja um trabalhador que, em troca de dinheiro, coloque sua vida, seu tempo e seu vigor físico a serviço de outrem para sobreviver.

O que não pode existir é o paternalismo. Mas o protecionismo deve existir sempre.

Repita-se, não se afasta a concessão da Justiça gratuita àqueles que ajuízam ações infundadas. Deve-se presumir verdadeiro — e conceder os benefícios da Justiça gratuita — a quem alega insuficiência de recursos, se se tratar de pessoa natural. Isso não está na CLT, está no CPC (artigo 99, §3º), aplicável subsidiariamente ao processo do trabalho (artigos 769 da CLT e 15 do CPC).

Aos que ajuízam ações infundadas se condena pela litigância de má-fé e se responsabiliza processualmente pelo dano processual, com a cominação de multa, indenização, ressarcimento de despesas e, ainda, com o pagamento de honorários advocatícios, ainda que o litigante de má-fé seja beneficiário da justiça gratuita.

O julgado do STF não traz prejuízo aos advogados trabalhistas, nem para aqueles que advogam para o patronato, nem para aqueles que assistem aos trabalhadores. Ainda permanecem assegurados, mesmo nas situações de beneficiários da Justiça gratuita, os honorários convencionados em contratos escritos e aqueles arbitrados judicialmente, na falta de estipulação ou de acordo (artigos 22 a 24 da Lei nº 8.906/1994).

Também não haverá aumento de custos aos empresários para ver combatidas as aventuras jurídicas. Repita-se: aos aventureiros permanecem em vigor os artigos 793-A a 793-D na CLT, sem nenhuma pecha de inconstitucionalidade até o momento, e que responsabilizam ditos aventureiros, pelo dano processual, com a cominação de multa, indenização, ressarcimento de despesas e, ainda, com o pagamento de honorários advocatícios, ainda que o litigante de má-fé seja beneficiário da justiça gratuita.

A decisão do STF também não afeta negativamente a União, que deve arcar com os custos quando o beneficiário da Justiça gratuita for sucumbente. O que afeta a União é a corrupção, são as práticas pouco republicanas. A União tem o dever constitucional de prestar assistência jurídica integral e gratuita àqueles que comprovem insuficiência de recursos.

Igualmente, o Brasil não é responsável por 98% das ações trabalhistas no mundo, afirmação repetida à miríade, inclusive pelo ministro Roberto Barroso, do STF, que, quando questionado, afirmou que teria obtido os dados "em uma entrevista concedida por Flávio Rocha (sócio da rede de lojas Riachuelo) publicada na Revista Um Brasil em 2016" [7]. Ao se checarem as informações, porém, verificou-se que o teor das declarações era sensivelmente diverso [8].

"Apesar de inexistir qualquer estudo científico capaz de embasar tais afirmações, verifica-se que elas seguem sendo reproduzidas, por diversas autoridades, como uma espécie de verdade absoluta, e continuam a permear as consecutivas e profundas reformas que o Direito do Trabalho brasileiro vem sofrendo nos últimos anos" [9].

Fato é que há muito demonstra-se e se comprova que essa é uma afirmação inconclusiva [10].

O TST já afirmou que não tem dados suficientes para verificar se o Brasil é o país com o maior número de ações, "porque nem todos os países têm a Justiça do Trabalho como um ramo específico de Justiça".

O CNJ "também afirma que não tem dados comparativos entre países".

A própria OIT — da qual o Brasil é país-membro, ao lado de outras quase 200 nações no mundo — "afirma que não tem conhecimento da existência de dados que comparem o número de ações trabalhistas em diferentes países e que tal comparação não é possível considerando as enormes diferenças entre leis trabalhistas, sistemas jurídicos e disponibilidade de estatísticas nos diferentes países".

Por fim, matematicamente, essa é uma conta impossível.

Em 2016, por exemplo, o Brasil teve 3,9 milhões de novas reclamações trabalhistas. Caso isso representasse 98% das ações no mundo, é sinal que teríamos apenas 80 mil ações para todos os demais países do mundo, algo em torno de 400 ações por país. Ocorre que só a Alemanha, em 2007, quase dez anos antes, teve 593 mil novas ações. Na Itália, em 2001, 15 anos antes, houve 324 mil novas ações trabalhistas. Na Polônia, em 2002, 302 mil; na Espanha, em 2002, 199 mil; na Holanda, em 2002, 139 mil; nos tão falados Estados Unidos da América, em 2016, em apuração no mesmo ano que o Brasil, ocorreu o ajuizamento de 110 mil novas ações trabalhistas [11].

A repetição dessas afirmações, sem lastro científico, é terrível ao Estado democrático de Direito. Basta dizer que as declarações do ministro Roberto Barroso, sobre os tais "98%", embasaram e mereceram expressa menção em parecer elaborado pelo senador Ricardo Ferraço, durante a tramitação do projeto de lei da reforma trabalhista [12].

Por fim, quanto ao possível aumento da judicialização, cabe aqui uma última reflexão, nas palavras certeiras da ministra Cármen Lúcia [12], do STF, no julgamento de mandado de injunção em que se decidiu, por maioria, não reconhecer aos oficiais de Justiça avaliadores federais o direito à aposentadoria especial, mesmo que se trate de uma profissão de risco, inclusive com o uso de armas de fogo, sob o pálio do aumento da judicialização e de custos ao erário:

"(…) A judicialização em excesso, que possa vir, não me preocupa em nada. Aliás, se fosse assim, o Supremo não deveria ter mudado sua jurisprudência da década de 90, que não reconhecia o mandado de injunção. (…) Embora respeite as ponderações (…) quanto ao que isto pode gerar em termos de judicialização, ou de custos para a Previdência, vivo biblicamente: 'A cada dia a sua agonia'".

Vivamos biblicamente. A cada dia a sua agonia.

 

[1] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF derruba normas da reforma trabalhista que restringiam acesso gratuito à Justiça do Trabalho: a cobrança de custas caso o trabalhador falte à audiência inaugural sem justificativa foi mantida. Publicado em: 20 out. 2021. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=475159&ori=1>. Acesso em: 25 out. 2021.

[2] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.

[3] SARLET, Ingo Wolfgang. Proteção de direitos fundamentais diante das emendas constitucionais: parte 2. Revista Consultor Jurídico. Publicado em: 20 maio 2016. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2016-mai-20/direitos-fundamentais-protecao-direitos-fundamentais-diante-emendas-parte>. Acesso em: 25 out. 2021.

[4] JORNAL DO COMÉRCIO. Número de ações trabalhistas cai 40% em seis meses. Publicado em: [S.d.]. Disponível em: <https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/geral/2018/06/634396-numero-de-acoes-trabalhistas-cai-40-em-seis-meses.html>. Acesso em: 25 out. 2021.

[5] SANTOS, Rafa. Após reforma trabalhista, número de ações sobre assédio sexual chega a cair 68%. Revista Consultor Jurídico. Publicado em: 28 ago. 2021. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-ago-28/reforma-trabalhista-acoes-assedio-sexual-chegam-cair-68>. Acesso em: 25 out. 2021.

[6] MARCHESAN, Ricardo. Brasil é campeão de ações trabalhistas no mundo?: dados são inconclusivos. Portal UOL. Publicado em: 27 jun. 2017. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/confere/ultimas-noticias/2017/06/27/brasil-e-campeao-de-acoes-trabalhistas-no-mundo-dados-sao-inconclusivos.htm>. Acesso em: 25 out. 2021.

[7] FERNANDES, João Renda Leal. O mito EUA: um país sem direitos trabalhistas? Salvador: JusPODIVM, 2021. p. 254.

[8] FERNANDES, João Renda Leal. Idem, p. 256.

[9] MARCHESAN, Ricardo. Idem.

[10] MARCHESAN, Ricardo. Idem.

[11] FERNANDES, João Renda Leal. Idem, p. 253.

[12] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Mandado de injunção n. 833 (DF). Órgão julgador: Tribunal Pleno. Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Relator p/ Acórdão: Ministro Roberto Barroso. Data do julgamento: 11/6/2015. Data da publicação: 30/9/2015.

Autores

  • é doutorando em Direito pela UFPA (Universidade Federal do Pará), mestre em Direitos Fundamentais pela Unama (Universidade da Amazônia), especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Candido Mendes (Ucam) e professor de Direito.

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