Opinião

A fiança e os crimes hediondos e equiparados

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30 de outubro de 2021, 7h13

O artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição, dispõe que "a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem". A interpretação gramatical do dispositivo constitucional tem levado à equivocada conclusão de que o juiz não pode impor ao autuado a medida cautelar de fiança, inserta no inciso VIII do artigo 319 do Código de Processo Penal.

Para ilustrar o paradoxo causado pela interpretação literal do dispositivo constitucional, basta imaginar duas situações distintas: a do agente que é preso em flagrante por crime comum e a do agente que é preso em flagrante por crime hediondo ou equiparado. Caso não estejam presentes os fundamentos do artigo 312 do Código de Processo Penal (risco à ordem pública, à instrução processual ou à aplicação da lei penal), a ambos será concedida liberdade provisória pelo juiz, contudo, somente ao primeiro poderá ser imposta a medida cautelar de fiança.

Dessa forma, ao crime menos grave poderão ser aplicadas todas as medidas cautelares arroladas no artigo 319 do diploma processual penal, mas ao crime mais grave poderão ser impostas apenas as outras medidas cautelares, não a fiança. A ilogicidade da situação torna-se ainda mais evidente pelo fato de que, não raro, os crimes hediondos e equiparados têm considerável repercussão econômica e, no mais das vezes, a futura execução referente à indenização do dano, à multa, às custas e à prestação pecuniária (CPP, artigo 336) são infrutíferas.

Para evitar tal incoerência sistêmica e prestigiar a ratio do artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição, faz-se necessária a interpretação sistemática e teleológica da norma constitucional.

O mandado de criminalização insculpido no inciso XLIII do artigo 5º da Constituição tem por finalidade enrijecer o tratamento dos crimes hediondos e equiparados, não abrandá-lo.

Ao tratar da atuação do delegado de polícia durante o auto de prisão em flagrante, o artigo 304, §1º, do Código de Processo Penal, preceitua que "resultando das respostas fundada a suspeita contra o conduzido, a autoridade mandará recolhê-lo à prisão, exceto no caso de livrar-se solto ou de prestar fiança, e prosseguirá nos atos do inquérito ou processo, se para isso for competente; se não o for, enviará os autos à autoridade que o seja". Portanto, existindo fundada suspeita da prática delitiva, o delegado de polícia pode conceder liberdade provisória em duas hipóteses, quais sejam, quando a lei dispõe que o agente necessariamente livra-se solto ou quando o agente prestar fiança.

A primeira hipótese remonta à antiga redação do artigo 321 do Código de Processo Penal (totalmente modificada pela Lei 12.403/11), que estabelecia que o agente livrar-se-ia solto se a pena cominada à infração penal fosse diversa da privação de liberdade ou se o seu máximo fosse inferior a três meses de privação de liberdade. Nesse caso a autoridade policial tinha o dever de conceder a liberdade provisória.

É a segunda hipótese, no entanto, que possui relevância para a temática aqui tratada. Ao dispor que o delegado de polícia pode conceder liberdade provisória ao autuado que preste fiança, a legislação permite à autoridade policial analisar se estão presentes os fundamentos da prisão preventiva, haja vista que o artigo 324, inciso IV, do diploma processual penal, veda a concessão de fiança quando presentes os fundamentos da prisão preventiva.

Ao tornar inafiançáveis os crimes hediondos e equiparados, a Constituição proibiu, em tais crimes, que a autoridade policial coloque o autuado em liberdade em virtude da prestação de fiança, caso referida autoridade entenda que não estão presentes os fundamentos da prisão preventiva.

A análise dos fundamentos da prisão preventiva, nos crimes comuns, é feita inicialmente pelo delegado de polícia, que pode conceder liberdade provisória ao autuado em flagrante delito mediante o pagamento de fiança. Nos crimes comuns, portanto, somente se a autoridade policial não conceder a liberdade provisória mediante fiança ou se o autuado não pagar a fiança arbitrada pela referida autoridade é que o juiz analisará se é caso de relaxamento da prisão em flagrante, conversão em prisão preventiva ou concessão de liberdade provisória.

Essa era a sistemática adotada à época da promulgação da Constituição e, em relação aos crimes comuns, continua sendo. No tocante aos crimes hediondos e equiparados, todavia, a Lei Maior instituiu nova sistemática, em que a análise da presença ou não dos fundamentos da prisão preventiva é feita apenas pelo juiz.

Ante a gravidade dos crimes hediondos e equiparados, não é possível que a autoridade policial arbitre fiança e conceda liberdade provisória. A Constituição optou, no tocante aos delitos hediondos e equiparados, pela maior prudência na análise da necessidade ou não da prisão preventiva, que a partir de 1988, então, é feita apenas pela autoridade judicial, sendo que antes dessa análise o autuado não será liberado.

Quanto à medida cautelar de fiança, prevista no artigo 319 do Código de Processo Penal, sequer existia ao tempo da promulgação da Constituição, foi criada pela Lei 12.403/11, juntamente com as outras medidas cautelares descritas no referido dispositivo legal. Não há como considerar que a Lei Maior pretendeu obstar sua aplicação aos crimes hediondos e equiparados.

Portanto, considerar que o inciso XLIII do artigo 5º veda a imposição da medida cautelar de fiança (CPP, artigo 319, inciso VIII) pelo juiz é interpretar a Constituição contra sua própria vontade e conferir tratamento mais benéfico aos autuados por crimes hediondos e equiparados do que aos autuados por crimes comuns.

A Constituição buscou tratar com maior rigor os crimes hediondos e equiparados, por meio do mandado de criminalização insculpido em seu artigo 5º, inciso XLIII. Interpretar que o dispositivo constitucional veda ao magistrado a aplicação da medida cautelar de fiança nos casos em que sua aplicação se mostra adequada é ir de encontro à Lei Maior, já que a liberdade provisória será concedida sem essa medida cautelar.

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