Opinião

Considerações sobre impeachment e semipresidencialismo

Autores

  • Aroldo Nascimento

    é juiz de Direito na Bahia ex-professor de Direito Eleitoral com especialização em Direito Público Processual e Eleitoral e mestrando em Ciências Jurídico-Políticas na Universidade Portucalense no Porto em Portugal.

  • Maruska Troufa

    é advogada pós-graduada em Direito Processual Civil e mestranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Portucalense.

28 de outubro de 2021, 19h11

1) Objetivo
Surgido no longínquo século 14, na Inglaterra, e incorporado ao contexto estadunidense ainda na fase colonial, o impeachment tornou-se, com a elaboração de sua Constituição, o mais sério método de controle de responsabilidade do chefe do executivo nos Estados Unidos. Dali ganhou o mundo, percebendo-se a sua integração em textos constitucionais nos diversos continentes.

Nesse ponto, é digno de nota a hipótese do Brasil, que, caso único do mundo, já levou a cabo por duas vezes o procedimento, removendo de suas funções dois ex-presidentes. Já agora, com mais de cem pedidos de impeachment, todos aguardando análise pelo presidente da Câmara, volta-se mais uma vez o debate sobre a possibilidade de alteração do atual regime presidencialista por algum outro que possa se mostrar menos instável.

Dificultado o caminho ao parlamentarismo face a rejeição pretérita pelo povo brasileiro, ora apontam-se os holofotes para o regime semipresencial, presente em países como Portugal e França, e que conta com o apoio de figuras de peso nestas bandas, tais como os ex-presidentes José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer, além dos ministros da Suprema Corte brasileira Luís Roberto Barroso e Gilmar F. Mendes.

Assim, face a relevância do tema, passaremos a analisar o impeachment no regime semipresidencialista. Importa destacar que o presente trabalho não ingressa na análise de eventuais vantagens ou desvantagens da adesão ao referido regime, limitando-se a perquirir: a) sobre a compatibilidade entre o impeachment e o regime semipresidencialista; e b) se positivo, quais são as suas consequências políticas. 

2) Breve histórico
Parece uníssono dentre os historiadores que o impeachment surgiu na Inglaterra do século 14, mais precisamente no ano de 1376, como forma de controle indireto dos atos do rei, face a sua irresponsabilidade legal.

Com características distintas das atuais, o instituto era utilizado pelo Parlamento em face de qualquer pessoa e por qualquer razão, não havendo nenhuma restrição à sanção imposta, incluindo-se até a pena de morte. Destaca Cass R. Sunstein [1] que, ainda que visando a quase todas as pessoas, na prática o procedimento centrava-se preponderantemente em oficiais do reino.

Alternando-se para o contexto colonial, o impeachment surgiu em terras americanas logo no início do século 17, coincidindo com o período de maior uso na metrópole inglesa. Ainda que nos mesmos moldes ingleses, o impeachment colonial tinha franca oposição da metrópole, vez que era usualmente utilizado com o escopo de tentar remover oficiais do reino.

De todo modo, o instituto passou a fazer parte do texto das constituições estaduais, variando o objeto do impeachment de um Estado para outro, com certo consenso tão somente quanto a dirigir-se a ocupantes de cargos públicos, além da limitação às sanções de perda do cargo e desqualificação.

Com a pretérita experiência inglesa e colonial, além de sua incorporação aos textos das constituições estaduais, fora natural a sua incorporação ao texto da novel Constituição americana de 1787.

Assim, de uma só vez, se criou uma Constituição Federal, e inserida nesta, incluiu-se a figura do presidente da República e, visando ao seu controle, adotou-se o impeachment. Ou seja: decidiu-se entregar parcela importante de poder a uma única pessoa, mas, como contraponto, tal poder estava vinculado a um dever perante o povo, que em seu nome deveria ser exercido, e, em seu abuso, poderia ele ser afastado e impedido de voltar a exercer qualquer função pública.

Assim, tinha-se agora o primeiro modelo republicano de impeachment.

Fato é que muitas vezes já se tentou dar início ao processo de impeachment em face de presidentes americanos, sendo que apenas em quatro hipóteses o pedido fora aceito pela Câmara dos Representantes.

O primeiro caso foi do ex-presidente Andrew Johnson, ainda no século 19, que ficou por um voto no Senado para ser efetivamente removido.

Após mais de cem anos, houve o processo de Richard Nixon, com o famoso "caso Watergate". Ciente de que seria afastado das funções pela gravidade da conduta a ele atribuída e com indícios muitos fortes de autoria, terminou por renunciar.

Depois, teve Bill Clinton e, por duas vezes, Donald Trump.

Deve ser destacado que em nenhuma dessas hipóteses o presidente americano chegou a ser destituído de seu cargo.

Fruto de uma revolução contra a metrópole e inspirada em valores isonômicos, o projeto americano repetiu-se em boa parte do mundo, transformando muitas colônias europeias em repúblicas presidencialistas, com grande predominância na América Latina.

Tal como o próprio presidencialismo, o impeachment também se expandiu, seja incorporado a textos constitucionais, seja plasmado em legislação ordinária. E, distintamente do EUA, vem se notando o seu efetivo uso em diversos países, com a remoção de seus presidentes, tal como já ocorreu em Brasil (duas vezes), Venezuela, Equador, Filipinas, Paquistão, Paraguai, Coreia do Sul e Peru.  

3) Presidencialismo e impeachment
Antes de avançarmos, precisamos compreender melhor a dimensão da figura do presidente da república no sistema presidencialista.

Canotilho [2] traz as características principais do sistema no molde americano, declinando que seriam seus traços fundamentais: a) sistema de divisão de poderes; b) legitimidade democrática do chefe de Estado; c) concentração das chefias de Estado e governo na figura do presidente; d) Poder Judiciário ativo; e) controle mútuo entre os poderes constituídos.

Por outro lado, lembra George C. Edward III que os poderes presidenciais nos EUA, na prática, desbordam daqueles previstos em lei, sendo que a maior parte do relacionamento do presidente com o público, o Congresso, a assessoria da Casa Branca e a burocracia do Estado não se encaixa facilmente no âmbito da perspectiva legal. Ou seja, parte relevante do poder do presidente se revela através de suas habilidades pessoais, algo que ultrapassa os limites estritos da lei. 

O ministro Gilmar F. Mendes [3], ratificando a posição acima, mas não se limitando ao regime americano, faz a seguinte ponderação:

"Como se pode depreender, a designação Poder Executivo acaba por descrever, de forma acanhada, as funções desempenhadas, que, por óbvio, transcendem a mera execução da lei. Daí anota Konrad Hesse que a expressão Poder Executivo acabou por transformar-se numa referência geral daquilo que não está compreendido nas funções do Poder Legislativo e do Poder Judiciário".

Por sua vez, Canotilho [4] lembra não existir um único sistema presidencial no mundo, preferindo falar em presidencialismos, com importantes distinções do modelo americano, utilizando como exemplo o sistema latino-americano.

"Embora com especificidades nos vários estados latino-americanos, o sistema presidencialista destes estados acentua disfunções político-organizativas: 1) os amplos poderes do presidente, ordinários e extraordinários, derivados do facto de o presidente ser, ao mesmo tempo, chefe de Estado e chefe do governo, alicerçam uma confusão e concentração de poderes executivos e legislativos (ex: as medidas provisórias no sistema presidencialista brasileiro); 2) esta confusão e concentração perturba o sistema de checks and balances, o que conduz à insuficiência notória de controlos institucionais (por parte, por exemplo, do parlamento ou do poder judiciário sobre os actos presidenciais)".

De todo modo, nota-se que o sistema presidencial traz como regra uma quantidade de poder muito grande nas mãos de uma única e mesma pessoa. A par disso, observa-se pela experiência histórica uma tendência em muitos presidentes em ampliarem ainda mais o alcance de seu poder, gerando certo desequilíbrio na estrutura de divisão de poderes e muitas vezes levando a sérias crises institucionais entre os poderes constituídos, e, no seu limite, a tentativa de verdadeiros golpes de Estado.

Foi, pois, o impeachment pensado exatamente para demover da função presidencial aquele que abuse do poder a ele conferido, preferindo-se um instrumento constitucional/legal, e, evitando-se, por conseguinte, eventuais tentativas de golpes de Estado, ou, mesmo (como bem lembrado por Benjamin Franklin), eventual atentado à vida de um chefe de uma nação ou, mesmo, uma revolução.

Restando estabelecida a existência e aplicação do impeachment em países com base presidencialista, passemos ao tema central deste estudo, o impeachment em face a regimes semipresidencialistas.

4) Regime semipresidencialista e impeachment
O poder do presidente no regime semipresidencialista possui, por óbvio, peculiaridades distintas daquele presente no regime presidencial, contando simultaneamente com um presidente e um primeiro-ministro, dividindo ambos parcelas do poder executivo.

Jorge Miranda [5] inclui o regime semipresidencialista dentre as hipóteses dos denominados sistemas semiparlamentares. Afirma o autor que num sistema semiparlamentar são três os órgãos políticos ativos: o parlamento, o governo e o chefe de Estado. E segue:

"O sistema juridicamente semiparlamentar tem duas manifestações históricas. No século 19, é a monarquia orleanista (de Luiz Felipe de Orleans) ou monarquia constitucional de relativo equilíbrio entre o rei e o Parlamento, a meio caminho entre a monarquia limitada e a monarquia parlamentar. Nos séculos 20 e 21, em República, é o semipresidencialismo – ou melhor, os semipresidencialismos (tão variados eles são, em resposta a problemas políticos bem diversos)".

Quanto à concentração de poderes, o presidente encontra-se situado intermediariamente entre os sistemas presidencialistas (em regra, com alta concentração) e parlamentaristas (em regra, com baixa concentração).

Nada obstante, como dito acima, e tal como já referimos ao presidencialismo, podemos aqui também falar em semipresidencialismos, percebendo-se, inclusive, grande variação no que se refere à concentração de poderes do presidente, desde países com baixo poder (Croácia e Lituânia), médio poder (Portugal) ou muito poder (França).

5) Eleições de primeira e segunda ordens
Aproveitando distinção estabelecida por Karlheinz Reif e Hermann Schmitt entre eleições de primeira e segunda ordens, Braulio Fortes e Pedro Magalhães [6]
publicaram relevante artigo no qual sugerem que as eleições presidenciais em regimes semipresidencialistas também podem ser de primeira ou segunda ordem, a depender do nível de concentração de poderes nas mãos do presidente. Vejamos.

"Num artigo seminal sobre as eleições de 1979 para o Parlamento Europeu, Karlheinz Reif e Hermann Schmitt sugeriam que é possível fazer uma distinção entre tipos de eleições com base na importância que os eleitores lhes atribuem e que essa distinção tem implicações previsíveis relativamente aos tipos de continuidades e desvios dos padrões de comportamento eleitoral e de resultados globais que deverão ser observados (Reif e Schmitt, 1980). As eleições de «primeira ordem» são aquelas cujos resultados têm consequências directas na distribuição de cargos políticos a nível nacional e, por conseguinte, no controlo do aparelho governamental. Têm, portanto, muito mais relevo para os eleitores, especialmente quando são altamente competitivas e as diferenças políticas entre os principais adversários são claras e contrastantes (Schmitt, 2005). Pelo contrário, nas eleições de «segunda ordem» prevalece a ideia de que há menos em jogo, tal como sucede, por exemplo, nas eleições para o Parlamento Europeu, assim como em todas as outras que não servem para determinar quem irá controlar o executivo".

E completam:

"O facto de as eleições presidenciais em sistemas semipresidenciais seguirem os padrões de segunda ordem esperados em termos de participação eleitoral parece depender, de forma previsível, dos poderes conferidos à presidência. (…) os presidentes fortes que se candidatam à reeleição e que contam com uma maioria no parlamento parecem resolver os problemas da responsabilização política, dado que os eleitores parecem prontos a responsabilizá-los pelo desempenho económico".

Desse modo, partindo de tais conclusões, apoiado em rigor lógico, revela-se razoável afirmar que o processo de impeachment, em sistemas semipresidencialistas, tenderá a ser mais ou menos gravoso à nação a depender da dimensão de poder concentrado nas mãos do presidente. Ou seja, em países nos quais o presidente sustente maiores poderes, tal como a França, maior será a possibilidade de ocorrer crises institucionais e um possível aumento na polarização entre grupos ideologicamente distintos.

Infelizmente não podemos realizar maiores considerações de ordem prática, vez que, além de pouquíssimo comum, o impeachment em sistema semipresidencial ocorreu em países nos quais os seus presidentes possuíam poderes demasiadamente limitados, como foi o caso da Croácia e da Lituânia.

6) Conclusão
Desse modo, pode-se concluir primeiramente que não existe qualquer incompatibilidade entre o sistema semipresidencialista e o impeachment.

Demais disso, o reflexo político decorrente do impeachment tenderá a depender da distribuição do poder executivo entre o presidente da república e o primeiro-ministro. Havendo grande concentração nas mãos do presidente, a tentativa de sua destituição poderá trazer os mesmos prejuízos políticos observados em países presidencialistas, tal como a polarização no seio da sociedade.

Assim, eventual adoção no Brasil de um regime semipresidencialista não exclui, por si só, a possibilidade da existência do impeachment, nem tampouco garante que seu trâmite seja menos gravoso, vez que tudo dependerá da distribuição de poderes que se pretenda no regime.    

 


[1] SUNSTEIN, Cass R. Impeachment: a citizens’s guide, Penguin Books. Junho 2019. ISBN 9780525506843. Ebook. Pág.40.

[2] CANOTILHO. J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Ed. Almedina. 7ª ed. ISBN 978-972-40-2106-5. P.586-587.

[3] MENDES, Gilmar. F, COELHO, Inocêncio M. e BRANCO, Paulo Gustavo G. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva.2007. ISBN 978-85-02-06468-3. P.858.

[4] CANOTILHO, ref.17, p.588.

[5] MIRANDA, Jorge. Curso de direito constitucional – vol.1. Lisboa: Univ. Católica Ed. 2ª ed. Março 2020. Ebook kindle. ISBN e-book 9789725407134.

[6] FORTES, Bráulio G., MAGALHÃES, Pedro. As eleições presidenciais em sistemas semipresidenciais: participação eleitoral e punição dos governos. Análise Social: Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Lisboa, v. 40, n. 177, p. 891-922, 2005 [consult.09 JUNHO 2021]. Disponível em: https://bibliotecadigital.tse.jus.br/xmlui/handle/bdtse/390.

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