Controvérsias Jurídicas

Nova Lei do Superendividamento: uma rápida visão

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

21 de outubro de 2021, 8h00

A Lei nº 14.181/21, responsável por alterar dispositivos do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) e do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03), constitui-se em um dos mais significativos avanços na defesa cidadania e dignidade da pessoa humana. Seu objeto principal é resguardar as condições mínimas de subsistência das pessoas que se encontram em situação de superendividamento, ou seja, daquelas que não conseguem pagar suas dívidas sem comprometer o mínimo existencial.

No que tange ao Estatuto do Idoso, a mudança foi pontual no sentido de explicitar que a negativa de crédito do idoso, fundada em superendividamento não constitui crime (cf. artigo 96, §3º). Os acréscimos ao CDC são mais estruturais, tanto do ponto de vista axiológico e teleológico quanto normativo, inaugurando uma nova fase conciliatória no iter procedimental da repactuação das dívidas.

Partindo do pressuposto de que a pessoa em situação de superendividamento necessita de proteção especial, a lei buscou garantir ao consumidor novos mecanismos de equalização e repactuação das dívidas por meio de um plano de pagamento que satisfaça o direito dos credores sem levar o devedor à humilhação e à indignidade.

Sua edição foi até tardia ante a constante instabilidade econômica em nosso país. A retomada das atividades econômicas após as medidas de contingenciamento provocadas pela pandemia da Covid-19 anuncia tempos difíceis. O índice de desemprego, que mostrava perder força de 2016 a 2019, teve aumento exponencial em 2020. O PIB nacional (conjunto de riquezas produzidas pelo país) negativo caiu ainda mais, cerca de 4%, isso sem levar em conta o aumento dos gastos públicos no biênio 2020/2021 com a reestruturação do sistema de saúde, compra de vacinas, equipamentos de proteção individual, respiradores, máscaras, luvas e congêneres.

Tal cenário provocou descontrole no processo inflacionário e valorização do dólar frente ao real. A perda de valor da moeda brasileira ante a americana pode parecer desimportante para o cidadão médio, contudo, todos os consumidores são diretamente afetados por essa relação. A cotação do preço do barril de petróleo é internacional e em dólar, de forma que qualquer oscilação no seu valor ou na cotação da moeda impactará o preço da gasolina. O aumento do combustível é repassado por distribuidores ao custo geral da operação e, por fim, pelo vendedor ao consumidor final.

Preço dos produtos em elevação e salários e empregos em queda criam a situação perfeita para que cidadãos busquem crédito em financeiras, sem se atentar ao comprometimento de suas finanças pessoais ao longo dos anos. Não são raras as vezes em que nos deparamos com consumidores que tomaram créditos sucessivos na esperança de saldar dívida passada. Diferentemente do que se esperava, ao invés de diminuir suas obrigações, a pessoa se vê envolta de um emaranhado de contas que impossibilita seu pagamento.

Não seria por outra razão que a Lei do Superendividamento adicionou ao artigo 4º do CDC os incisos IX e X, referentes a educação financeira e ambiental aos consumidores e prevenção e tratamento ao superendividamento, respectivamente, como princípios que devem regrar as relações de consumo.

De igual forma, foram acrescidos ao artigo 6º do CDC, que trata dos direitos básicos do consumidor, os incisos "XI – Crédito responsável, educação financeira, e prevenção e tratamento ao superendividamento, preservando o mínimo existencial, por meio de recuperação de dívidas; XII – Prevenção do mínimo existencial na repactuação de dívidas e concessão de crédito; e XIII – Informação do preço dos produtos por unidade de medida".

Os novos incisos XVII e XVII do artigo 51 do CDC consideraram cláusulas abusivas "condicionar e limitar o acesso aos órgãos do Poder Judiciário; e estabelecer prazos de carência para mora nas prestações mensais e impedir o restabelecimento integral dos direitos do consumidor e de seus meios de pagamento a partir da purgação da mora ou do acordo com o credor".

O novo artigo 54-B trouxe novas obrigações ao fornecedor na concessão de crédito ou na venda a prazo, entre as quais: "I – Informar o custo efetivo total; II – Informar os juros mensais, de mora e os encargos para atraso; III – Informar o montante das prestações e o prazo da oferta (mínimo de 2 dias); IV – Identificação do fornecedor; e V – Informar da liquidação antecipada e não onerosa do débito (artigo 52, §2º)". Seus §§ 1º, 2º e 3º se referem à necessidade de informações claras e inequívocas no contrato de concessão de crédito; ao conceito de custo efetivo total da operação e informações obrigatórias que não poderão deixar de constar na avença, entre as quais: custo total, identificação do agente financiador e soma total do valor a ser pago.

Seguindo a lógica do dever de informação e transparência do artigo 54-B, o artigo 54-C veda aos fornecedores, em seus incisos I, II e II: "indicar que a operação poderá ser feita sem consulta aos serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação financeira; ocultar ou dificultar a compreensão dos riscos; e assediar o consumidor idoso, analfabeto, doente, vulnerável ou com promessa de prêmio".

Além das práticas abusivas do CDC, artigo 39, a nova lei trouxe em seu artigo 54-G práticas abusivas específicas do fornecedor de crédito, consistentes em: "I – Cobrar qualquer quantia contestada em compra com cartão de crédito até que a dúvida seja solucionada, desde que o consumidor tenha notificado a administradora em até 10 dias do vencimento da fatura; II – Não entregar cópia física do contrato; e III- Dificultar o direito do consumidor de pedir o bloqueio e anulação do pagamento em caso de utilização fraudulenta do cartão".

Ponto que merece destaque é o procedimento construído pelo CDC, artigos 104-A, 104-B e 104-C, no que tange ao pedido de repactuação de dívidas para realização de futura audiência de conciliação com todos os credores, presidida por juiz ou conciliador, com a apresentação de um plano de pagamento com prazo máximo de cinco anos. A possibilidade de repactuação das dívidas não se aplicará, contudo, àquelas adquiridas dolosamente, sem propósito de pagamento por parte do consumidor; e aos contratos com garantia real, financiamento imobiliário e crédito rural.

O plano de pagamento apresentado deverá conter proposta de dilação de prazo para pagamento e redução de encargos; suspensão ou extinção de eventuais ações judiciais de cobrança que estiverem em curso; data de exclusão do nome do consumidor do cadastro de inadimplentes e o compromisso de que o consumidor tomará todas as cautelas necessárias para não agravar sua situação financeira (artigo 104-A, §4º). Em caso de não comparecimento injustificado de quaisquer dos credores, poderá ser declarada a suspensão da exigibilidade de seu crédito, a interrupção dos encargos de mora; sujeição compulsória ao plano e este ficará por último na fila de pagamento (artigo 104-A, §2º).

A homologação do acordo de repactuação e pagamento das dívidas terá força de título executivo judicial transitado em julgado (artigo 104-A, §3º) e não importará em reconhecimento de insolvência civil, podendo ser repetida depois de dois anos, contados da liquidação das obrigações adquiridas no plano anteriormente homologado (artigo 104-A, §5º).

Não havendo conciliação com algum dos credores, a pedido do consumidor, o juiz instaurará processo de superendividamento com o objetivo de revisar e integrar os contratos, repactuar as dívidas remanescentes por plano compulsório e citar todos os credores que estiverem fora do acordo celebrado (artigo 104-B). Será assegurado prazo de 15 dias para o fornecedor justificar sua não aceitação ao plano de pagamento voluntário (artigo 104-B, §2º), podendo o juiz nomear administrador, que em até 30 dias deverá apresentar plano complementar de alongamento de prazos e redução de encargos (artigo 104-B, §3º).

A liquidação total da dívida no plano voluntário terá prazo máximo cinco anos, sendo a primeira parcela paga em no máximo 180 dias contados da homologação do acordo, com o restante das parcelas iguais e sucessivas. Poderão promover a conciliação voluntária os órgãos que integram o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (Decreto nº 2.181/97), desde que conveniados com as instituições credoras ou associações (artigo 104, C).

Essas são algumas das importantes modificações visando a resgatar a dignidade de pessoas que foram alijadas do mercado de consumo, por ignorância, imprudência ou incontinência de gastos, concedendo-lhe uma segunda chance, e auxiliar os credores a resgatar uma parcela do crédito que já consideravam perdido. Resta agora aos Procons a tarefa de auxiliar o Poder Judiciário a enfrentar com eficácia esse desafio.

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