Opinião

Notas sobre a (in)constitucionalidade do artigo 13 do Decreto estadual 47.749

Autores

  • Paula Angélica Reis Carneiro

    é bióloga advogada especialista em Direito Ambiental e Gestão da Sustentabilidade sócia fundadora no escritório Reis Carneiro Sociedade de Advogados e membro associada à União Brasileira da Advocacia Ambiental (Ubaa).

  • Regina Gonçalves Barbosa Caixeta

    é advogada especialista em Direito Público Ambiental e Minerário Membro e associada à União Brasileira da Advocacia Ambiental (Ubaa) e à Comissão Nacional de Direito Minerário da Associação Brasileira de Advogados (ABA).

  • Simone Paiva

    é advogada especialista em Direito Ambiental e pós-graduanda em Engenharia Ambiental Gestão Ambiental e Sustentabilidade.

20 de outubro de 2021, 6h03

O presente artigo tem por objeto a defesa da inconstitucionalidade do artigo 13 do Decreto estadual 47.749/19, que trata dos processos de autorização para intervenção ambiental e sobre a produção florestal no âmbito do estado de Minas Gerais e dá outras providências. Discute-se a inconstitucionalidade do artigo vez que sua aplicação resulta em claro cerceamento do direito à ampla defesa e macula os princípios do contraditório e da livre iniciativa, como será explanado a seguir.

A título de definição, entende-se por intervenção ambiental, nos termos do inciso X do artigo 2º do Decreto 47.749/19, "qualquer interferência sobre a cobertura vegetal nativa ou sobre área de uso restrito, ainda que não implique em supressão de vegetação".

O artigo 3º do mesmo diploma relaciona as intervenções ambientais passíveis de autorização no estado de Minas Gerais.

"Artigo 3º — São consideradas intervenções ambientais passíveis de autorização:
I — supressão de cobertura vegetal nativa, para uso alternativo do solo;
II — intervenção, com ou sem supressão de cobertura vegetal nativa, em Áreas de Preservação Permanente (APP);
III — supressão de sub-bosque nativo, em áreas com florestas plantadas;
IV — manejo sustentável;
V — destoca em área remanescente de supressão de vegetação nativa;
VI — corte ou aproveitamento de árvores isoladas nativas vivas;

VII — aproveitamento de material lenhoso".

A realização da tratada intervenção fica subordinada à obtenção de uma autorização, que poderá ser concedida através de um documento autorizativo, o Daia [1]. Esse documento poderá também ser concedido após a conduta que se deu de forma irregular, nesse caso, o Daia terá o condão corretivo. O pedido de análise da regularização da intervenção, junto ao órgão ambiental competente, nesse caso, o Instituto Estadual de Florestas (IEF), é condicionado ao preenchimento cumulativo de alguns requisitos, elencados no artigo 12 do Decreto 47.749/19.

Para a análise do processo de Daia, o IEF impõe ao infrator sanções administrativas estabelecidas nos incisos de I a IV, podendo fazê-lo, alternativamente, conforme determina o artigo 13 do Decreto 47.749/19:

"Artigo 13 — A possibilidade de regularização, por meio da obtenção da autorização para intervenção ambiental corretiva, não desobriga o órgão ambiental de aplicar as sanções administrativas pela intervenção irregular.
Parágrafo único — O infrator deverá, em relação às sanções administrativas aplicadas, comprovar, alternativamente:
I
 desistência voluntária de defesa ou recurso apresentado pelo infrator junto ao órgão ambiental competente e recolhimento do valor da multa aplicada no auto de infração;
II
 conversão da multa em serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente;
III
 parcelamento dos débitos devidos a título de multa aplicada em auto de infração;
IV
 depósito do valor da multa em conta específica que, após o trânsito em julgado do auto de infração, será revertido ao Estado, caso a penalidade seja mantida" (grifo das autoras).

O ponto a ser aqui enfrentado refere-se ao teor do artigo 13, com destaque para o seu inciso I, que condiciona a continuidade da análise do processo de Daia corretivo à desistência voluntária do direito de defesa ou do recurso administrativo, a depender do momento processual, bem como ao pagamento integral da multa expressa no auto de infração.

Não raras vezes, autos de infração apresentam erros insanáveis, a exemplo de situações nas quais o cálculo do valor da infração é realizado de forma inadequada/incorreta, resultando em valores distorcidos. Inadmissível, portanto, vincular a análise de Daia corretivo ao pagamento integral do valor do auto de infração, circunstância que impede o direito de defesa ou recurso, ou o simples, e assegurado pela Constituição Federal, direito de questionar o auto de infração por parte do administrado.

Resta clara, assim, a inconstitucionalidade do inciso I do artigo em comento, que incorre em grave violação ao direito da ampla defesa e do contraditório, elencado no inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, in verbis, e amplamente defendido pela doutrina e jurisprudência.

"Artigo 5º  Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
LV
 aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".

Nesse sentido, conforme bem explica Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

"O princípio do contraditório, que é inerente ao direito de defesa, é decorrente da bilateralidade do processo: quando uma das partes alega alguma coisa, há de ser ouvida também a outra, dando-lhe a oportunidade de resposta. Ele supõe o conhecimento dos atos processuais pelo acusado e o seu direito de resposta ou de reação. (DI PIETRO, 2020, p. 826)" [2].

Ainda com relação à base do princípio da ampla defesa, prossegue a doutrinadora:

"É o que decorre do artigo 5º, LV, da CF e está também expresso no artigo 2º, parágrafo único, inciso X, da Lei nº. 9.784/99, que impõe, nos processos administrativos, sejam assegurados os direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção de provas e à interposição de recursos, nos processos de que possam resultar sanções e nas situações de litígio" (Di Pietro, 2020, p. 826) [3].

Em análise ao contraditório, o doutrinador José Afonso da Silva afirma que tal princípio é:

"Pressuposto indeclinável de realização de um processo justo, sem o qual a apreciação judicial é ausente de valor. Pondera ainda que a natureza processual do contraditório encontra-se na regra audiat altera pars. Segundo tal regra, deve-se dar ciência a cada litigante dos atos praticados pelo contendor, para serem contrariados e refutados" (SILVA, 2009, p. 154) [4].

Nota-se que, quando há uma limitação ao direito de defesa do infrator, abre-se a brecha para abuso de poder por parte do órgão ambiental, que poderá impor uma multa com valores exorbitantes sem que esta possa ser atacada ou discutida.

Nesse contexto, na prática, vários são os desafios dos operadores do Direito Ambiental com relação à regularização das intervenções no Estado, sobretudo no que diz respeito às intervenções corretivas. Alguns aspectos, como exemplo: a classificação da área objeto da intervenção (de uso comum, protegida, de uso restrito), da sua extensão e do rendimento lenhoso reflete diretamente no cálculo do valor da infração, podendo, ainda, alterar o tipo de infração nos casos de supressão. Por óbvio, tais aspectos devem ser rigorosamente detalhados e analisados pelo órgão ambiental competente pela análise da intervenção.

Além dos aspectos supramencionados, nos casos de intervenção corretiva por supressão de vegetação enfrenta-se ainda ampla dificuldade com relação à classificação da fitofisionomia e seu respectivo estágio sucessional no estado de Minas Gerais, posto que o estado abriga três biomas (Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga), cada qual com suas respectivas especificidades. Nessa situação, destaca-se que o órgão ambiental nem sempre considera os dados técnicos, a exemplo de rendimento lenhoso e fitofisionomia, obtidos por meio dos inventários florestais realizados pelo empreendedor (in loco), preferindo, por outro lado, considerar um rendimento lenhoso diverso daquele apurado no inventário, opção que afeta diretamente no cálculo da volumetria e, consequentemente, no valor da multa aplicada.

Nesse raciocínio, o mínimo esperado do órgão ambiental seria a apuração assertiva da classificação da área objeto da intervenção e de sua extensão, realizada por meio de estudos ambientais como laudos técnicos e inventários florestais, com dados levantados diretamente do local da intervenção (efetiva ou futura), capazes de aumentar a segurança da análise.

Com relação ao cerceamento do direito à ampla defesa, o inciso IV do artigo 13 em comento condiciona a análise do processo de intervenção ambiental ao depósito judicial do valor da multa, todavia, cumpre esclarecer que, a depender do montante, a antecipação do pagamento é muitas vezes inviável ou impossível. Nessa esteira, é certo que a exigência de pagamento prévio para a interposição de recurso administrativo viola o direito fundamental dos administrados de verem suas decisões revistas pela própria Administração e, consoante conteúdo da Súmula Vinculante 21 [5], tal exigência é inconstitucional [6].

Nítida, portanto, a incongruência entre os princípios constitucionais ora referenciados e os incisos I e IV do artigo 13 do Decreto 47.749/2019. Nesse caso, o princípio do contraditório está diretamente ligado ao princípio da igualdade, ao passo em que:

"A própria posição específica de cada um já lhe confere vantagens e ônus processuais. O autor pode escolher o momento da propositura da ação. Cabe-lhe, pois o privilégio da iniciativa, e é óbvio que esse privilégio não pode ser estendido ao réu, que há de acatá-lo e a ele submeter-se. Daí a necessidade de a defesa poder propiciar meios compensatórios da perda da iniciativa. A ampla defesa visa, pois, a restaurar um princípio da igualdade entre as partes que são essencialmente diferentes" (Tavares apud Bastos, 2021) [7].

É certo que o administrador possui estrita vinculação com as normas e os princípios constitucionais, não devendo, portanto, basear-se apenas no texto da norma infraconstitucional, em especial quando há evidente afronta às garantias e aos princípios constitucionalmente assegurados. Partindo desse pressuposto, como bem discorre Barroso [8], o princípio da legalidade transmuda-se, assim, em princípio da constitucionalidade ou, talvez mais propriamente, em princípio da juridicidade, compreendendo sua subordinação à Constituição e à lei, nessa ordem.

Outrossim, destaca-se a violação ao direito da livre iniciativa, ao passo em que o administrado só poderá retornar às suas atividades com a devida autorização corretiva, estando, assim, obrigado ao cumprimento compulsório de uma das condições estabelecidas no artigo 13.

Por todas as razões aqui discutidas, conclui-se que, no ponto em que o legislador condiciona o prosseguimento das atividades do infrator ao cumprimento de determinadas condições, violando seu direito de discutir o valor da multa a ele imposta, multa esta que não possui caráter de proteção ambiental e defesa ao meio ambiente, princípio intrínseco à ordem econômica, lesam-se não somente os princípios da ampla defesa e do contraditório administrativos, conforme explanado anteriormente, como também o da livre iniciativa. Inquestionável, portanto, a inconstitucionalidade material do artigo 13 do Decreto 47.749/19, haja vista sua contrariedade aos aludidos princípios constitucionais.

* Nossos sinceros agradecimentos à Ana Clara Paiva, graduanda do curso de Direito e estagiária no escritório Reis Carneiro Advogados, pelo auxílio na pesquisa do presente artigo.

 


[1] Documento Autorizativo para Intervenção Ambiental

[2] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

[3] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

[4] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

[5] É inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo.

[7] TAVARES, A. R. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2021. E-book. Disponível em: <https://bibliotecadigital.saraivaeducacao.com.br/epub/752862?title=Curso%20de%20direito%20constitucional>. Aceso em: 27 de ago. de 2021.

[8] BARROSO, L. R. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2020. E-book. Disponível em: <https://bibliotecadigital.saraivaeducacao.com.br/epub/721245?title=Curso%20de%20direito%20constitucional%20contempor%C3%A2neo>. Aceso em: 27 de ago. de 2021.

Autores

  • é advogada ambiental no escritório Reis Advogados de Uberlândia-MG, bióloga, especialista em Direito Ambiental e Gestão da Sustentabilidade pela PUC-SP, especialista em Governança Corporativa pelo IBGC e membro da União Brasileira da Advocacia Ambiental (UBAA).

  • é advogada, especialista em Direito Público, Ambiental e Minerário Membro e associada à União Brasileira da Advocacia Ambiental (Ubaa) e à Comissão Nacional de Direito Minerário da Associação Brasileira de Advogados (ABA).

  • é advogada, especialista em Direito Ambiental e pós-graduanda em Engenharia Ambiental, Gestão Ambiental e Sustentabilidade.

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