Opinião

A decisão coordenada na Lei de Processo Administrativo Federal

Autor

  • Farlei Martins Riccio de Oliveira

    é professor titular de Direito Administrativo do IBMEC-Rio pós-doutor em Administração Pública (Univ. Ca'Foscari de Veneza Italia) doutor em Direito (PUC-Rio) e advogado da União em exercício na Procuradoria Regional da União no Rio de Janeiro.

19 de outubro de 2021, 6h03

Recente inovação legislativa entrou em vigor no ordenamento jurídico brasileiro. Trata-se da denominada "decisão coordenada", instituída pela Lei 14.210, de 30 de setembro, que acrescentou o Capítulo XI-A à Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal.

De acordo com a definição legal, considera-se decisão coordenada a instância de natureza interinstitucional ou intersetorial que atua de forma compartilhada com a finalidade de simplificar o processo administrativo mediante participação concomitante de todas as autoridades e agentes decisórios e dos responsáveis pela instrução técnico-jurídica, observada a natureza do objeto e a compatibilidade do procedimento e de sua formalização com a legislação pertinente (artigo 49-A, §1º).

O novo instrumento de coordenação administrativa encontra inspiração na "conferência de serviço", prevista no artigo 14 da Lei nº 241, de 7/8/1990, que regula o processo administrativo no Direito italiano.

É de se recordar que iniciativa anterior de positivar a conferência de serviço no direito brasileiro constou do anteprojeto de lei da Nova Organização Administrativa, que pretendia derrogar o Decreto-Lei nº 200/1967 [1]. De igual modo, instituto semelhante à conferência de serviço já havia sido recepcionado pelo legislador brasileiro no artigo 17 da Lei 13.334/16, que cria o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), com a denominada liberação conjunta de empreendimento [2].

No Direito italiano a conferência de serviço pode ser descrita como a reunião realizada pelos representantes dos órgãos públicos competentes e interessados, que são convocados a confrontar-se e a exprimirem o próprio ponto de vista ou a deliberar sobre o processo administrativo em curso [3].

A lei italiana distingue três tipos de conferência de serviço: instrutória (artigo 14.1), decisória (artigo 14.2) e preliminar (artigo 14.3). A primeira, que é sempre facultativa, tem a finalidade de promover um exame contextual dos vários interesses públicos envolvidos no processo e se conclui com uma ata, na qual estarão assentadas as posições expressas, e que servirá de base para a tomada de decisão pública de um órgão competente. A segunda, que é obrigatória, tem a finalidade de substituir as várias manifestações de vontade dos órgãos envolvidos, pela manifestação final de um único órgão, e se conclui com uma ata na qual serão reportadas as manifestações de cada órgão participante. Na terceira, o particular interessado na realização de um projeto de relevante complexidade e que depende de um ato liberatório da Administração Pública, submete o projeto ao órgão competente para uma análise preliminar, antes mesmo de dar início ao processo administrativo.

Conforme sustentei em artigo publicado sobre os vinte anos da Lei nº 9.784/99 [4], embora a norma brasileira tenha previsto a possibilidade de "reunião conjunta” (artigo 35) [5], instrumento de coordenação entre órgãos públicos, também inspirado na conferência de serviço do Direito italiano, esse instrumento mostrou-se de pouca utilidade na gestão de múltiplos interesses públicos, inexistindo no Direito Positivo brasileiro um instituto com a mesma natureza jurídica da conferência de serviço do Direito italiano.

No entanto, pela análise da inovação legislativa, percebe-se que a recepção do instituto foi parcial. O legislador brasileiro recepcionou apenas a conferência de serviço instrutória, ou seja, aquela que é sempre facultativa e que tem por objetivo promover um exame contextual dos vários interesses públicos envolvidos no processo e que servirá de base para a tomada de decisão pública.

De acordo com a nova disposição legal, a decisão administrativa a ser tomada por três ou mais setores, órgãos ou entidades, poderá ser coordenada quando for justificável pela relevância da matéria e houver discordância que prejudique a celeridade do processo administrativo decisório (artigo 49-A, incisos I e II). Estão excluídas da decisão coordenada os processos administrativos de licitação; aqueles relacionados ao poder sancionador; ou que estejam envolvidas autoridades de poderes distintos (artigo 49-A, §6º). A norma estabelece ainda um importante direito de participação àqueles qualificados como interessados na forma do artigo 9º. Por sua vez, os artigos 49-E e 49-F estabelecem os requisitos formais e materiais para participação dos órgãos e entidades na reunião de coordenação. E, por fim, o artigo 49-G estabelece os requisitos formais para a elaboração da ata de reunião.

Não obstante a recepção parcial da conferência de serviço, revela-se alvissareira a intenção do legislador na medida em que incorpora na norma geral do procedimento administrativo federal um importante instrumento de colaboração paritária entre órgãos administrativos, maximizando a processualidade como modo ordinária de atuação, bem como ampliando a democratização e a eficiência administrativa.

 


[1] "Artigo 43 – No exame de matéria que envolva diferentes interesses setoriais, o Chefe do Executivo poderá convocar conferência de serviço, que reúna os órgãos e entidades competentes para decisão célere e concertada. §1º Sempre que possível, a conferência será realizada em sessão única de instrução ou deliberação. §2º Em casos de urgência, o Chefe do Executivo pode estabelecer prazo máximo para a providência ou decisão de cada órgão ou entidade, sob pena de responsabilização funcional das autoridades que se omitirem. §3º Ultrapassado o prazo, caso a demora possa causar prejuízos graves ao interesse público, o Chefe do Executivo avocará a competência do órgão ou entidade omissa".

[2] "Artigo 17 – Os órgãos, entidades e autoridades estatais, inclusive as autônomas e independentes, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, com competências de cujo exercício dependa a viabilização de empreendimento do PPI, têm o dever de atuar, em conjunto e com eficiência, para que sejam concluídos, de forma uniforme, econômica e em prazo compatível com o caráter prioritário nacional do empreendimento, todos os processos e atos administrativos necessários à sua estruturação, liberação e execução. § 1º Entende-se por liberação a obtenção de quaisquer licenças, autorizações, registros, permissões, direitos de uso ou exploração, regimes especiais, e títulos equivalentes, de natureza regulatória, ambiental, indígena, urbanística, de trânsito, patrimonial pública, hídrica, de proteção do patrimônio cultural, aduaneira, minerária, tributária, e quaisquer outras, necessárias à implantação e à operação do empreendimento. § 2º Os órgãos, entidades e autoridades da administração pública da União com competências setoriais relacionadas aos empreendimentos do PPI convocarão todos os órgãos, entidades e autoridades da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, que tenham competência liberatória, para participar da estruturação e execução do projeto e consecução dos objetivos do PPI, inclusive para a definição conjunta do conteúdo dos termos de referência para o licenciamento ambiental".

[3] CLARICH, Marcello. Manuale di diritto amministrativo. Bologna: Il Mulino, 2013, p. 254.

[4] O processo administrativo brasileiro e italiano sob uma perspectiva comparada: recepção de modelos e tendências contemporâneas. In: Rafael Carvalho Rezende Oliveira; Thaís Marçal. (Org.). Temas relevantes de processo administrativo: 20 anos da Lei 9.784/1999. Salvador: JusPodivm, 2019, v. , p. 139-166.

[5] "Artigo 35 – Quando necessária à instrução do processo, a audiência de outros órgãos ou entidades administrativas poderá ser realizada em reunião conjunta, com a participação de titulares ou representantes dos órgãos competentes, lavrando-se a respectiva ata, a ser juntada aos autos".

Autores

  • é professor titular de Direito Administrativo do IBMEC-Rio, pós-doutor em Administração Pública (Univ. Ca'Foscari de Veneza, Italia), doutor em Direito (PUC-Rio) e advogado da União em exercício na Procuradoria Regional da União no Rio de Janeiro.

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