Opinião

O Direito Intertemporal e a nova Lei de Improbidade Administrativa

Autores

  • Luiz Manoel Gomes Junior

    é advogado doutor e mestre em Direito pela PUC-SP professor nos programas de doutorado e mestrado em Direito da Universidade de Itaúna (UIT-MG) de mestrado da Universidade Paranaense (Unipar-PR) dos cursos de pós-graduação da PUC-SP e da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Mato Grosso (FESMP-MT).

  • Diogo de Araujo Lima

    é mestre em Direito Processual Civil e Cidadania na Unipar (Universidade Paranaense) especialista em Direito Tributário pelo Ibet (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários) promotor de Justiça coordenador do Grupo Especializado na Proteção do Patrimônio Público e no Combate à Improbidade Administrativa (Gepatria) — Regional de Umuarama.

  • Rogerio Favreto

    é desembargador federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região mestre em Direito de Estado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul ex-procurador-geral do município de Porto Alegre e secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça.

18 de outubro de 2021, 18h01

Encerrada a tramitação bicameral, a Câmara dos Deputados concluiu, no último dia 6, a votação do Projeto de Lei n° 2.505/2021, que altera a Lei nº 8.429/92, que dispõe sobre improbidade administrativa. O projeto agora segue para sanção presidencial.

Se vier a ser promulgado nos termos em que aprovado, o novel diploma trará substanciais modificações na Lei de Improbidade Administrativa (LIA). Destaque, por exemplo, para supressão da modalidade culposa do artigo 10 da Lei nº 8.429/92, e, no tocante a normas de natureza processual, a supressão da fase de defesa prévia ao recebimento da petição inicial, algo sempre por nós defendido, pela sua virtual inutilidade e atraso no procedimento.

Em matéria de Direito Intertemporal, é de se indagar como se dará a aplicação da inovação legislativa aos processos de improbidade administrativa em curso e aos casos já julgados, inclusive com trânsito em julgado.

Em relação às normas de natureza processual, parece não remanescer maiores dúvidas quanto à aplicabilidade imediata, aos processos em curso, das inovações normativas, em razão da inteligência do artigo 14 do CPC, e, por analogia, do artigo 2º do CPP, que preveem a aplicação imediata de norma processual aos processos em curso.

A questão que certamente suscitará maiores discussões diz respeito à aplicabilidade das normas de natureza material, especialmente no tocante ao caráter retroativo daquelas consideradas mais benéficas em relação à disciplina atual da matéria.

A LIA, enquanto produto do poder punitivo estatal, integra o chamado Direito Administrativo sancionador 1. Como manifestação do Direito punitivo que é, esse ramo do Direito submete-se um núcleo básico de direitos individuais consagrados na CF, que se colocam como uma proteção do cidadão contra o exercício arbitrário e/ou ilegal do ius puniendi do Estado.

Parte da doutrina defende que não há maiores diferenças entre normas penais e normas administrativas sancionadoras, uma vez que ambas constituem expressões do poder punitivo estatal 2 3.

A semelhança, é bem verdade, não exclui o fato de que tanto o Direito Penal como o Direito Administrativo sancionador submetem-se a regimes jurídicos próprios, regidos por normas e princípios que não se confundem entre si. Porém, não há como negar a possibilidade de "núcleos duros" aos quais determinadas realidades normativas devem reportar-se, em uma perspectiva unitária. Ele é composto de cláusulas constitucionais, decorrentes da opção constitucional por um Estado de Direito, que veiculam conteúdos mínimos a serem observados em qualquer forma de exercício do poder punitivo estatal, seja de ordem administrativa, seja penal.

Dentro desse espectro de garantias do cidadão, além das cláusulas do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, LIII, LIV e LV, da CF), inserem-se os princípios da legalidade, sob o viés da tipicidade (artigo 5º, II e XXXIX, e artigo 37, caput), da culpabilidade e da pessoalidade da pena (artigo 5º, XLV), da individualização da sanção (artigo 5º, XLVI), da razoabilidade e da proporcionalidade (artigos 1º e 5º, LIV) e, no que interessa ao presente estudo, da retroatividade da lei mais benéfica (artigo 5º, XL) 4.

É inegável que o Projeto de Lei nº 2.505, tal como está redigido, contempla uma série de normas de natureza material que podem ser interpretadas como mais benéficas ao réu. Isso afetará diretamente as ações de improbidade em curso. Pense, por exemplo, na hipótese de uma demanda que tenha como causa de pedir a conduta culposa prevista no artigo 10 da Lei nº 8.429/92. Com a extinção dessa figura no novel diploma normativo, abre-se espaço para perda superveniente do interesse de agir, pelo fato de a nova lei ter deixado de considerar ilícita a conduta com base na legislação revogada, atraindo, por analogia, a causa de extinção da punibilidade capitulada no artigo 107, III, do CP.

Semelhante raciocínio se aplica ao caso de absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, conforme inteligência do novel §4º do artigo 21, com a redação dada pelo Projeto de Lei nº 2.505.

A orientação poderá alcançar os casos já julgados, inclusive com a possibilidade de reversão das sanções aplicadas, a exemplo da perda de cargos ou da suspensão dos direitos políticos. A questão poderá ser ventilada por meio de embargos à execução ou de impugnação ao cumprimento de sentença, a depender da fase processual que o feito se encontre, por inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação (artigos 525, §1º, III, 535, III, e 917, I, todos do CPC), ou mediante ajuizamento de ação rescisória por violação da norma jurídica (artigo 966, V, do CPC), dentro do prazo decadencial de dois anos após o trânsito em julgado da decisão de mérito, em uma interpretação mais conservadora e estritamente processual.

Contudo, temos de ir além. Entendemos ser o caso de haver dispensa do ajuizamento da ação rescisória, bastando manifestação, com o contraditório do Ministério Público, com futura decisão. A regra mais benéfica deve ser aplicada e aqui prevalece até sobre a coisa julgado. Há realidade normativa mais benéfica que deve ser obrigatoriamente considerada, sob pena de violação aos postulados da proporcionalidade, razoabilidade e o da igualdade.

Tangenciam essa mesma hipótese os casos de penas que tenham sido revogadas pela novel legislação, como a perda da função pública para os casos de improbidade previstos no artigo 11 da Lei nº 8.429/1992.

De igual modo a novel previsão do artigo 12, §1º, do Projeto de Lei nº 2.505, de 2021, de acordo com o qual a sanção de perda da função pública, nas hipóteses dos incisos I e II do artigo 12 da Lei nº 8.429/92, atinge apenas o vínculo de mesma qualidade e natureza que o agente público ou político detinha com o poder público na época do cometimento da infração.

A aplicação do princípio da retroatividade da norma mais benéfica no Direito Administrativo sancionador radica-se nas mais variadas razões. Embora o artigo 5º, XL, da CF, faça referência apenas à "lei penal", entende-se que o dispositivo deve ser interpretado como um princípio jurídico geral, aplicável não apenas ao Direito Penal, mas a toda manifestação do jus puniendi 5.

No cerne da questão está a ideia de que a mesma razão que subsidia a aplicação da retroatividade da lei mais benéfica no Direito Penal deve se estender aos demais ramos do Direito que veiculam semelhante expressão do poder punitivo, tal como o Direito Administrativo Sancionador (ubi eadem ratio ibi idem jus6.

Com isso, evita-se que sujeitos de direito sejam prejudicados com a aplicação ou cumprimento de sanção por fato que norma posterior deixou de considerar ilícitos que haja uma pena diferenciado de menor extensão. Por igual modo, privilegia-se, como adiantado, o princípio da razoabilidade e o dever de coerência que deve nortear as ações da Administração Pública e, de forma geral, o próprio Estado, afinal como manter a aplicação de punição posteriormente reconhecida como desnecessária ou desarrazoada pelo próprio ente público normatizador 7?

Pensar de forma diversa poderia criar situações no mínimo inusitadas, como, por exemplo, alguém figurar no polo passivo de uma ação de improbidade e poder vir a ser condenado na figura culposa do artigo 10 da Lei nº 8.429/92, tão somente porque a demanda foi distribuída momentos antes da entrada em vigor da nova lei. Note-se que, a depender das circunstâncias, algumas horas ou minutos poderão definir a situação jurídica de um cidadão, o que não soa nada coerente para uma sociedade que se quer ver ornamentada por um semblante de Estado democrático de Direito. Desse cenário decorreria grave ofensa ao princípio da isonomia, ante a potencial chance de tratamento distinto a quem se encontra em semelhante posição fática-jurídica.

A extensão da aplicação do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica para o Direito Administrativo sancionador já foi reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça 8. No mesmo sentido, há diversos outros julgados 9 e doutrina estrangeira 10.

Sem embargo do acerto ou desacerto dessa tendência interpretativa, não há como deixar de consignar o posicionamento daqueles que mostram contrários à aplicação do princípio da retroatividade da lei mais benignas no âmbito do Direito Administrativo sancionador, cujos fundamentos podem se colocar como óbice à retroatividade das inovações implementadas pelo Projeto de Lei nº 2.505.

O primeiro deles radica-se na aplicação do princípio geral do direito do tempus regit actum, consagrado no artigo 6º, caput, da LINDB, segundo o qual se deve aplicar a norma vigente à época da infração. A regra é que as normas jurídicas são irretroativas, sendo editadas para regular situações futuras. Apenas de maneira excepcional, em casos expressamente contemplados na norma, é que as relações jurídicas serão regidas por lei distinta daquela vigente ao tempo da ocorrência dos fatos que deram causa à sua incidência.

Assim, para os adeptos desse pensamento, considerando que o artigo 5º, inciso XL, da CF trata de forma específica da retroatividade apenas da lei "penal", sem qualquer referência às normas sancionatórias de outra natureza, associado ao fato de que a Constituição não contém palavras inúteis, conclui-se que o constituinte pretendeu excluir do espectro de aplicação do princípio da retroatividade outras normas que não fossem de Direito Penal, pois, do contrário, o teria feito explicitamente.

A razão é que o referido dispositivo constitucional que estabelece a retroatividade da lei penal mais benéfica funda-se em peculiaridades únicas do Direito Penal, inexistentes no Direito Administrativo sancionador, como, e.g. razões humanitárias, relacionadas à liberdade do criminoso, bem jurídico diretamente atingido pela sanção criminal, sem equivalente no Direito Administrativo sancionador 11.

A respeito do tema, colhem-se diversos precedentes baseados na ausência de norma que autorize a retroatividade benéfica para as normas de Direito Administrativo sancionador para afastá-la desse ramo do direito, a exemplo do que ocorre com o Direito Penal e com o Direito Tributário sancionador (artigo 106, II, "a", "b" e "c", do CTN) 12.

Embora ainda não tenha sido sancionado, é possível antever, em juízo prospectivo, as possíveis contraposições de interpretações e respectivos fundamentos acaso o Projeto de Lei 2.505/2021 venha a ser sancionado.

Finalizamos no sentido de que a diretriz interpretativa da reforma é a adoção de posições mais benéficas ao réu, certo ou errada, a opção legislativa tem respaldo constitucional e jurisprudencial, não podendo ser ignorada.

Deve prevalecer a vontade daqueles incumbidos pela Constituição de elaborar as eles, a menos enquanto não houver decisão em sentido contrário do Supremo Tribunal Federal, pois esta é a essência do Estado democrático de Direito: respeitar leis e poderes constituídos.

Aqui não se pode afastar a antiga diretriz interpretativa: amplie-se o favorável e restrinja o odioso.

A repercussão direta nas ações de improbidade em curso e nos casos julgados, por certo, exigirá a eficiente intervenção dos tribunais superiores, com o objetivo de uniformizar o tratamento da matéria e, por conseguinte, preservar o tratamento equânime e objetivo da questão.

 


1 SANTOS, Carlos Frederico Brito dos. Improbidade Administrativa: Reflexões sobre a Lei n° 8.429/92. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 2.

2 Adotando a mesma posição, Gustavo Binenbojm (O direito administrativo sancionador e o estatuto constitucional do poder punitivo estatal possibilidades, limites e aspectos controvertidos da regulação do setor de revenda de combustíveis”. “In”: Revista de Direito da Procuradoria Geral. Rio de Janeiro. (EDIÇÃO ESPECIAL): Administração Pública, Risco e Segurança Jurídica, 2014, p. 468.)

3 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 8 ed. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2012, p. 571.

4 BINENBOJM, Gustavo, op. cit., p. 470.

5 Nesse sentido, o voto-vista do Min. Carlos Ayres Britto no RE 600.817, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, pleno, DJe 30/10/14.

6 Nessa linha, Celso Antônio Bandeira de Mello, em Curso de Direito Administrativo, 32ª ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2015, p. 871.

7 MARINHO, Rogério. Retroatividade da norma mais benéfica no Direito Administrativo Sancionador. Conjur. 2021, on line (Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-ago-19/marinho-norma-benefica-direito-administrativo-sancionador#_ftn4>. Acesso em: 12 out. 2021).

8 STJ, 1ª T., RMS 37.031/SP, Rel. Min.ª Regina Helena Costa, j. em 08/02/2018.

9 Por todos: TRF da 3ª Região, 3ª T., AC 50063825020184036182-SP, Rel. Des. Fed. Luiz Carlos Hiroki Muta, j. em 09/11/2020.

10 ENTERRÍA, Eduardo García de; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón, Curso de Derecho Administrativo. I. 2013, Thomson Reuters (legal) Limited.

11 Nesse sentido a doutrina de Rafael Munhoz de Mello: “Como ensinam Carlos Enrico Paliero e Aldo Travi, é o princípio do favor libertatis que justifica a retroatividade da lei penal mais benigna, considerando-se a gravidade da pena de prisão e os efeitos que tal medida produz sobre o condenado, só superados pelos efeitos da pena de morte. No direito administrativo sancionador não há espaço para o argumento, sendo certo que a sanção administrativa não pode consistir em pena de prisão. (…) Por tais fundamentos, não se pode transportar para o direito administrativo sancionador a norma penal da retroatividade da lei que extingue a infração ou torna mais amena a sanção punitiva.”(“In” Temas de Direito Administrativo, vol. 17, “Princípios Constitucionais do Direito Sancionador”. Editora Malheiros, 2007. p. 153-6).

12 Por todos: TRF da 2ª Região, 8ª T., AC 0154434-84.2014.4.02.5101, Rel.ª Desª Fed. Vera Lúcia Lima, j. em 25/08/2020; TRF da 4ª Região, 4ª T., AC 5024681-48.2020.4.7000/PR, Rel. Des.ª Fed. Vivian Josete Pantaleão Caminha, j. em 21.09.2021.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito pela PUC-SP, professor nos programas de doutorado e mestrado em Direito da Universidade de Itaúna (UIT-MG), de mestrado da Universidade Paranaense (Unipar-PR), dos cursos de pós-graduação da PUC-SP e da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Mato Grosso (FESMP-MT) e advogado.

  • é mestrando em Direito Processual Civil e Cidadania na Universidade Paranaense (Unipar-PR), especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), promotor de Justiça, coordenador do Grupo Especializado na Proteção do Patrimônio Público e no Combate à Improbidade Administrativa (Gepatria) – Regional de Umuarama.

  • é desembargador do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, mestre em Direito pela PUC-RS, especialista em Direito Político pela Unisinos-RS, ex-procurador do município de Porto Alegre e ex-secretário nacional de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça.

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