Direito Eleitoral

A integridade das eleições nacionais, entre o charco e as estrelas

Autor

18 de outubro de 2021, 12h33

Havidos como animais simbólicos [1], reagentes a tudo o que é abstrato, os indivíduos compreendem a realidade de modo muito particular, a partir de um sistema de decodificação de significados que processa, segundo a expressão de Steven Pinker, a engenharia reversa da psique [2].

Dentro desse quadro, é natural que as questões sociais estejam sujeitas a interpretações e valorações muitos distintas, sendo essa, de um lado, a base para a fixação do pluralismo como pilar da estrutura constitucional e, de outro, a razão para a adoção das eleições como método para o equacionamento das divergências políticas.

A legitimidade a priori das percepções individuais, sem embargo, não elimina a perspectiva de falhas. É que o cardápio das opiniões políticas arrola, ao lado de questões essencialmente opináveis, com valor inerente inescrutável (como é o caso da decisão sobre o voto), juízos sobre dados objetivos, ligados a circunstâncias cuja negação é promessa de erro. Eis onde jaz o debate sobre a integridade das eleições nacionais.

A certa altura do romance "Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra", de Mia Couto, Ultímio é advertido com uma analogia poética sobre a lógica falaz da ilusão: "No charco onde a noite se espelha, o sapo acredita voar entre as estrelas" [3].

No caso brasileiro, a desinformação busca a aplicação da lição com sentido invertido: como prática intencional, lança sucessivas infâmias sobre as mecânicas eletivas, com o fim de debilitar o seu valor e comprometer a sua essência. Basicamente, pretenda que vejamos lama no céu limpo.

A integridade das eleições celebradas no país, não obstante, constitui, em definitivo, um exemplo de dado objetivo.

Extrai-se, em primeiro lugar, por negativa factual, da verdade incontestável de que o processo eletrônico de votação segue há mais de duas décadas isento de fraudes comprovadas, e também de indícios no mesmo sentido, a despeito da existência de canais jurídicos para a apresentação de denúncias e formalização de reclamações.

Haure-se, por outro lado, da presença de um arranjo garantista, farto na oferta de possibilidades de acompanhamento, auditoria e fiscalização, seja por parte dos partidos políticos envolvidos, seja por parte de instituições legitimadas, como o Ministério Público, a Polícia Federal e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Apura-se, mais, da reiterada (e unívoca) certificação externa de sua validade, realizada por numerosos organismos nacionais e internacionais com credibilidade e expertise no campo da observação eleitoral, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), a União Interamericana de Organismos Eleitorais (OEA) e a Transparência Eleitoral, bem ainda do constante e infalível desmascaramento de acusações infundadas por agências de checagem de fatos e veículos tradicionais de comunicaço [4].

A plena legitimidade dos pleitos brasileiros é também atestada, à unanimidade e, a propósito, com crédito sobressalente , por todas as investigações científicas centradas na avaliação da qualidade das eleições pelo mundo, cabendo ilustrar com os relatórios apresentados pelo Projeto Integridade Eleitoral [5], baseado no Royal Military College of Canada e liderado, entre outros, por pesquisadores das Universidades de Harvard, Paris e Genebra, e pelo projeto Nelda (National Electoral Across Democracy And Autocracy[6], capitaneado por especialistas da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e da Universidade de Houston.

Irene Lozano ensina que, no contexto atual, a desinformação busca promover a divisão da sociedade, mergulhando a esfera pública em discussões acaloradas sobre fatos inexistentes. Nesse sentido, escreve que a polarização espanhola, entre 2019 e 2020, recrudesceu por força de um debate em torno da inserção da educação sexual nas escolas, disparado a partir da circulação maliciosa de um vídeo produzido em um contexto artístico e totalmente dissociado da agenda pedagógica, por ocasião de uma mostra de arte que sequer ocorrera na Espanha, mas num museu brasileiro [7].

Em nosso território, algo semelhante ocorreu com o uso da desinformação para mobilizar setores populares a favor do voto auditável, designadamente porque, em termos objetivos e, portanto, inegáveis, as eleições brasileiras, ademais de íntegras, são auditadas de fio a pavio [8].

Para além da concorrência de 30 (!) camadas de segurança tecnológica [9], o processo eletrônico de votação é concebido de forma colaborativa, transparente e supervisionada, aberta à participação voluntária de membros de toda a sociedade (via teste público de segurança [10]) e submetida ao olhar atento e especializado de especialistas designados por um cabedal entes fiscalizadores que envolve, entre outros, a Controladoria-Geral da União (CGU), o Tribunal de Contas da União (TCU), a Sociedade Brasileira de Computação (SBI) e as Forças Armadas, além de Ministério Público, Polícia Federal e os próprios partidos participantes da competição[11].

Dentro dessa atmosfera de ampla vigilância, em 25 anos a votação eletrônica segue absolutamente ilesa, não havendo sequer um único caso de violação demonstrada fora do campo paranoico das teorias da conspiração.

É certo que a integridade eleitoral, como um conceito gradativo e não binário, constitui uma meta administrativa sempre passível de aperfeiçoamento. O princípio constitucional da eficiência, nesse particular, impõe à Justiça Eleitoral a busca contínua por eleições melhores, independentemente dos já elevados índices de qualidade intrínseca, sendo essa a razão pela qual o Tribunal Superior Eleitoral, sem obrigação legal e por iniciativa própria, instituiu para o próximo ano uma comissão destinada a elevar (ainda mais) o (alto) grau de transparência das eleições.

De todo modo, o ponto é que, muito além das narrativas falsas, a realidade dos fatos, alheia à epistêmica tribal, descortina um quadro claro, inequívoco e assertivo: a Justiça Eleitoral realiza eleições confiáveis e honestas, e deficiências que afetam os pleitos brasileiros residem em campos não relacionados com o processo eletrônico de votação.

Nesse quesito, sem nenhuma dúvida, o estado real das coisas dista as eleições do charco, situando-as bem mais perto das estrelas.

 


[1] SARTORI, Giovanni. A política. 2. ed. Brasília: Editora UNB, 1997 p. 48.

[2] PINKER, Steven. Como a mente funciona. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 32.

[3] COUTO, Mia. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. Lisboa: Editoria Caminho, 2002.

[7] LOZANO, Irene. Son molinos, no gigantes. Cómo las redes sociales y la desinformación amenazan a nuestra democracia. Barcelona: Editorial Península, 2020, p. 13-14.

[8] Cumpre apontar que o marco de abertura do processo eleitoral, já mais do que satisfatório, alcançará em 2022 um patamar recorde, graças a iniciativa levada a efeito pelo Tribunal Superior Eleitoral que, por meio da Portaria nº 579/2021, institui a Comissão de Transparência das Eleições, composta por uma extensa gama de representantes oriundos de instituições públicas, entre as quais o Congresso Nacional, a Procuradoria-Geral Eleitoral, o Comando de Defesa Cibernética das Forças Armadas e a Direção Técnico-Científica (Serviço de Perícias em Informática) da Polícia Federal, além de membros procedentes de departamentos da área de tecnologia de Universidades públicas e privadas. https://sintse.tse.jus.br/documentos/2021/Set/9/diario-da-justica-eletronico-tse/portaria-no-579-de-8-de-setembro-de-2021-torna-publica-a-composicao-da-comissao-de-transparencia-das.

Autores

  • é professor de pós-graduação em Direito Eleitoral, doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino, Especialista em Direito Eleitoral pela UFG e pela Universidad Nacional Autónoma de México. É membro fundador da Abradep

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!