Opinião

A responsabilidade do Facebook pela inoperabilidade de Instagram e WhatsApp

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16 de outubro de 2021, 7h12

A pandemia da Covid-19 fez com que as pessoas evitassem o convívio social. Desde então, o contato físico foi substituído por um intenso contato digital. Empresas inteiras se tornaram remotas da noite para o dia. Alunos e professores passaram a frequentar salas virtuais. A vida social, mais do que nunca, foi parar na rede social.

Nesse cenário, aplicativos como WhatsApp e Instagram, da empresa Facebook, passaram a proporcionar quase a totalidade das interações pessoais e profissionais. São redes com diversas funcionalidades, que servem para falar com amigos, familiares, colegas de trabalho e clientes. Muitos negócios, inclusive, são 100% sediados nessas plataformas, sendo esse o único canal de contato com o consumidor. O WhatsApp passou até a servir como meio de pagamentos. Sem dúvida, confiamos cada vez mais aspectos da nossa vida a essa gigante da tecnologia mundial.

Como se sabe, no último dia 4, por volta das 12h (horário de Brasília), o WhatsApp começou a apresentar falhas e, em seguida, o Facebook e o Instagram ficaram indisponíveis. Segundo o Down Detector, site que monitora o funcionamento de serviços digitais, o problema atingiu grande parte da América do Sul, bem como algumas cidades de outros países, como Paris e Washington. Sem aviso prévio, milhares de pessoas perderam acesso a recursos que se tornaram praticamente vitais durante esse período pandêmico.

Mesmo com diversas manobras, o Facebook não conseguiu solucionar a falha de forma rápida, resultando em horas de indisponibilidade em plena segunda-feira. O caso escancara a dependência que todos temos, em maior ou menor grau, dessas plataformas e propõe o questionamento jurídico: o Facebook pode ser responsabilizado civilmente pelas falhas?

Antes, é importante destacar que é imprescindível a presença dos elementos da responsabilidade civil, quais sejam, ação ou omissão do Facebook, dano ao usuário e nexo de causalidade (defeito no serviço que podia ser evitado). Com isso, a maioria das pessoas não sofreu qualquer tipo de dano ou prejuízo, tendo a indisponibilidade gerado um mero dissabor, ainda mais considerando que existem outras plataformas que podem substituir as funções mais básicas e comuns.

Não é a primeira vez que o sistema do Facebook entra em colapso e uma de suas empresas tem as atividades suspensas. Neste ano, no dia 19 de março, WhatsApp e Instagram ficaram 40 minutos fora do ar no Brasil, nos Estados Unidos e na Espanha. Nesse e em outros casos, não há notícia de ações buscando responsabilizar a empresa por eventuais danos ou perdas ocasionadas pelo período de indisponibilidade.

Os termos de uso dos aplicativos envolvidos apresentam cláusulas isentando a empresa de qualquer responsabilidade em razão de falhas técnicas ou pela indisponibilidade dos serviços. Também preveem que os serviços podem se tornar indisponíveis a qualquer tempo, a critério do Facebook, sendo que a big tech não garante o funcionamento constante da plataforma nem que atenderá aos interesses do usuário.

Assim, em tese, os usuários encontram-se desamparados na presente situação. Lojistas que não conseguiram vender seus produtos durante horas não podem buscar qualquer tipo de reparação. Criadores de conteúdo nada podem fazer em face do tempo perdido de engajamento. Pessoas que não conseguiram se comunicar com familiares ou colegas de trabalho, motivo pelo qual sofreram algum tipo de prejuízo ou dano, não terão ressarcimento do Facebook. Será mesmo? Ou será que a posição econômica e social que hoje ocupa o Facebook pode levar à responsabilização, considerando a legislação brasileira?

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabelece, em seu artigo 51, que são nulas de pleno direito as cláusulas contratuais abusivas. Segundo o inciso I, são abusivas as cláusulas que "impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos". Já o inciso XV determina o mesmo para as cláusulas que "estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor". Nesse sentido, devem-se considerar a vulnerabilidade e a dependência dos usuários em relação ao Facebook, gigante da tecnologia.

Assim, as cláusulas dos termos de uso do Facebook podem ser consideradas abusivas e, portanto, nulas. Isso principalmente em face do artigo 14, do CDC, norma de ordem pública que prevalece sobre o instrumento privado, o qual determina a responsabilidade objetiva do fornecedor pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços. O §1º prevê que o serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar.

Nesse ponto, a falha nos aplicativos pode ser considerada um defeito no serviço do Facebook? Pelo que se sabe do presente caso, as falhas não ocorreram por uma ação ou omissão do Facebook, mas por um problema até então desconhecido. Resta saber se o Facebook sabia ou poderia saber desse problema.

Se o Facebook sabia ou, com esforços razoáveis, tinha como saber, deverá responder por defeito no serviço, uma vez que a indisponibilidade poderia ter sido evitada. Eventuais danos causados diretamente pela indisponibilidade deverão ser indenizados pelo Facebook, uma vez que os usuários confiaram na operação da plataforma para desenvolver as mais diversas atividades.

Por outro lado, se fosse impossível ao Facebook saber a respeito do problema, seria preciso considerar a teoria do risco do desenvolvimento. Esse seria o risco que não podia ser conhecido cientificamente no momento de lançamento do produto/serviço no mercado, sendo descoberto após certo período de uso. Não há culpa do fornecedor, mas, sim, a completa impossibilidade de conhecer e prevenir o problema.

Nesse cenário, a doutrina inicialmente se posicionava pela não responsabilização do fornecedor, sendo o caso tratado como fortuito externo. Entretanto, atualmente a maioria dos doutrinadores se posiciona pelo reconhecimento da responsabilidade pelo risco do desenvolvimento, como Benjamin Herman, Paulo de Tarso Vieira Sanseverino e Sérgio Cavalieri Filho.

Para a doutrina majoritária, o CDC adotou a responsabilidade objetiva pelos danos causados ao consumidor por defeito do produto/serviço, na forma do seu artigo 12. Nesse sentido, o risco do desenvolvimento é enquadrado como defeito de concepção do produto/serviço (isto é, relativo à fase de planejamento e idealização), uma vez que o produto/serviço já contém o defeito desde sua concepção ou projeto, mas o agente o desconhecia em razão de seu caráter não cognoscível à época.

Nessa linha, em julgamento do REsp 1.774.372/RS ("caso Sifrol"), a ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça, acolheu entendimento no sentido de o risco do desenvolvimento de medicamento ser inerente à atividade desenvolvida pelas farmacêuticas, sendo caso de fortuito interno, isto é, de situação que foge do controle da empresa, mas que é esperada e faz parte do risco do negócio.

Assim, é possível interpretação no sentido de o risco de falhas nas plataformas digitais serem inerentes à atividade desenvolvida pelo Facebook, que conta com milhões de usuários que diariamente confiam na prestação dos serviços para desenvolver as mais variadas atividades. Por essa linha, o Facebook responderia pelas indisponibilidades do último dia 4 de outubro.

Por outro lado, deve-se pesar que a indisponibilidade de sistemas é um problema esperado pelo usuário médio. Não é novidade que sistemas e plataformas são mantidos por complexas redes de códigos e de computadores que, em última análise, são operadas por seres humanos, sujeitos a falhas e a erros. Ademais, os serviços prestados pelo Facebook são gratuitos para o público em geral, o que, em tese, reduz a prerrogativa do usuário de exigir a prestação contínua. Contudo, eles cobram para realizar o marketing digital, e os usuários desse tipo de serviço podem ter sido prejudicados pela indisponibilidade de seus anúncios, o que poderia ser um argumento para provar a responsabilidade civil.

É notório que empresas como o Facebook lucram com os dados pessoais de seus usuários quando da utilização das plataformas. Por isso, talvez o grande prejudicado pelo período de indisponibilidade tenha sido o próprio Facebook. Estimativas realizadas a respeito desse último evento apontam para prejuízos de, no mínimo, US$ 57 milhões por hora off-line para o Facebook, o que demonstra que a empresa tem o maior dos interesses em manter as plataformas no ar [1].

Não se sabe até o momento qual seria a resposta dos tribunais sobre uma possível responsabilização do Facebook. Todavia, é notável a dependência da nossa sociedade tecnológica e da economia em relação a essas plataformas, o que as colocam em uma posição diferenciada que merece consideração pelo Direito e pelos legisladores. Os usuários não podem ficar reféns das plataformas, tampouco devem suportar sozinhos os danos eventualmente causados pelas indisponibilidades. O Direito atua para equilibrar essa relação, devendo ser reconhecido e destacado o papel social e econômico de empresas como o Facebook.

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