Opinião

Uma discussão sobre a existência de direitos dos animais

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14 de outubro de 2021, 12h08

1) O evolucionismo
A evolução das instituições sociais, filosóficas e jurídicas é decorrência de mutações na compreensão humana a respeito de velhos conceitos que são superados por novas descobertas capitaneadas, especialmente, pela ciência. Não é sem razão que se diz que o cientista não pode prender-se a verdades tidas como absolutas por uma sociedade ou consolidada em determinada época, pois foi justamente a ditadura dos valores que, por muitas vezes, impediu o crescimento da humanidade em diversos setores.

Da visão antropocêntrica do mundo deflagraram-se concepções, teorias, instituições e ideias que já nasceram contaminadas com a ideologia que traz o homem para o centro do mundo, conduzindo todas as análises sociais, científicas, filosóficas, jurídicas e outras que excluem desse conjunto a igual consideração moral atribuída às demais espécies vivas.

Nesse contexto, aparece o que a doutrina denomina de especismo. O termo foi construído pelo britânico Richard Ryder para designar e o tratamento injustificado dispensado pelos seres humanos aos animais de outras espécies. É o costume de atribuir ao ser humano uma posição de superioridade em relação aos animais de outras espécies. A injustiça configurada nesse preceito é perceptível na medida em que se observa a fraqueza dos argumentos antropocentristas constatada com a derrubada de velhos dogmas científicos.

Os dogmas antropocêntricos foram naturalmente transportados para o Direito, acarretando centralização dos interesses do homem em todas as discussões, o que levou a um desprezo duradouro da importância da relação dos homens com o meio ambiente e com os animais.

A maneira como aprendemos a enxergar todas as coisas em nossa volta é determinante para a construção de nossas opiniões e conclusões. Desde que nascemos recebemos diversas informações que vão nos guiar em todo o desenvolvimento posterior, que lentamente vai determinando a nossa forma de falar, amar, selecionar, pensar, excluir e até mesmo odiar. O ser humano não nasce com preconceitos; ele os adquire por meio do ambiente em que vive.

Tudo isso é construído em uma complexa conjuntura de sistemas que são capazes de influenciar uns aos outros, sendo que uns mais, outros menos, a depender de uma combinação de fatores que vai determinar que sistema mais influenciará em um determinada ocasião histórica.

Ressalta Heron Gordilho que a maneira como a maioria dos indivíduos trata os animais possui relação com "bloqueios psicológicos e conceituais inculcados através de uma longa tradição religiosa e filosófica, partindo do pressuposto de que os animais, destituídos de alma intelectual ou qualquer espiritualidade, existem apenas para o benefício da espécie humana" [1]. Todavia, com o enfraquecimento do poder da Igreja, o desgaste do antropocentrismo era uma questão de tempo. Nesse panorama, conforme aponta o autor, essa instituição vai sofrer três duros golpes:

Primeiro, quando Copérnico demonstrou que a terra não era centro do universo, mas apenas um pequeno fragmento de um vastos sistema cósmico. Segundo, quando Charles Darwin provou que a espécie humana não surgiu pronta, como diz a Bíblia, e que ela possui um ancestral comum com os grandes primatas. E, por fim, quando Freud demonstrou a irracionalidade humana e que o ego não é o senhor dentro de sua própria casa, uma vez que a maior parte das nossas ações são inconscientes [2].

Ainda na linha dos ensinamentos do professor, o importante passo dado por Darwin foi no sentido de provar que as diferenças entre os homens e os animais não são ontológicas, mas, sim, circunstanciais, o que vai derrotar os fundamentos da doutrina de Aristóteles, que defendia a imutabilidade das espécies vivas, para concluir que não existe diferença categórica entre homens e animais não humanos quando se trata de atributos mentais e espirituais [3]. Assim, a teoria da evolução natural prova que todos os seres humanos possuem a mesma origem, inclusive com os homens e grandes primatas possuindo antepassado comum.

Por isso, não encontramos justificativa plausível para desconsiderar a existência de uma dignidade animal, fundamentada em seus direitos morais. Aliás, uma dignidade inerente aos animais vai servir como umas das importantes bases para a busca do direito subjetivo dessas espécies.

2) Do utilitarismo ao abolicionismo animal
Os posicionamentos defendidos por Peter Singer e Tom Regan constituíram-se em passos decisivos para a formulação mundial de teorias de defesa dos animais. Enquanto Singer utiliza a via utilitarista para a defesa dos interesses dos animais, Tom Regan apregoa o abolicionismo animal.

Seguindo na vertente clássica utilitarista de escolher sempre a melhor alternativa para beneficiar o maior número de pessoas possível, Peter Singer apresenta uma versão diferente ao utilitarismo clássico, direcionando suas ideias para a versão do utilitarismo baseado no princípio de igual consideração de interesses, que vai incluir no somatório total, não só os interesses dos seres humanos, mas também outros serem sensíveis com interesses próprios de não sofrer.

Peter Singer defende a inclusão dos animais sencientes no âmbito da consideração moral na avaliação utilitarista, levando em conta a quantidade de dor e sofrimento dos animais com o objetivo de orientar as decisões éticas na busca do bem-estar geral. Assim, fazendo um cálculo utilitarista, não encontramos justificativa moral para matar animais se dispusermos de outros meios de alimentação, a não ser diante de situações extremas. A ingestão de carne, por exemplo, não parece ser tão necessária assim, pois a mera satisfação do paladar não justifica a provocação da dor em animais.

Peter Singer entende que "o facto de certos seres não pertencerem à nossa espécie não nos dá o direito de os explorar e, do mesmo modo, o facto de outros animais serem menos inteligentes que nós não significa que os sus interesses possam ser ignorados" [4].

Destarte, nessa linha de raciocínio, ao defender o princípio fundamental de igual consideração de interesses, que é o único critério moral básico que pode garantir a igualdade de todos os seres sensíveis, Singer apregoa que se deve respeitar os interesses fundamentais dos seres sensíveis que pertencem a outra espécie e que tenham um quociente intelectual inferior ao nosso.

O autor não apregoa que todos os seres sensíveis possuam direto à vida, já que, pelo cálculo utilitarista, esse direito pode desaparecer, ressaltando, porém, que, pelo menos, os animais têm interesse em não sofrer. Portanto, o interesse levantado por Singer diz respeito à capacidade de sofrer, de forma que as pedras, por exemplo, não sofrem e nem sentem prazer, não possuindo então interesses.

Assim, independentemente da espécie a que pertença o ser vivo, o princípio de igual consideração de interesses exige que seu sofrimento deva receber a mesma consideração moral que o sofrimento de qualquer outro ser, pois "a capacidade para sentir é o único limite adequado para determinar a extensão do amparo moral que provém do princípio de igual consideração de interesses" [5].

Portanto, na visão de Peter Singer é dificilmente justificável nas sociedades industrializadas o uso dos animais para a alimentação dos seres humanos.

Assim, "o princípio de igual consideração de interesses exige que os cidadãos desses países convertam-se em vegetarianos. Não se trata de uma questão opcional ou conveniente por razões de saúde. Na ótica de Singer é um imperativo moral".

A defesa de Singer de todos os animais sensíveis não alberga o direito à vida e outros direitos subjetivos de todos os animais sensíveis, já que esses interesses podem ceder diante de cálculos utilitaristas, que podem resultar na permissão da matança de animais em situações de necessidade humana. É por isso que, na linha utilitarista de Singer, a vida do animal poderia ser substituída pela vida de outro animal de igual espécie, raciocínio não aplicável a outros seres vivos que possuem a noção de passado e de futuro. Esses, segundo ao autor, possuem direito à vida.

Outra espécie de tratamento deve ser concedida aos seres sensíveis que possuam a noção de passado e de futuro. Esses, na visão do filósofo, têm direito à vida. Dessa forma, no estágio atual de nossos conhecimentos, Singer opina que somente os homens, chimpanzés, gorilas e orangotangos possuem proteção em relação à vida porque têm sentimento de passado e de futuro.

O problema é que Singer não leva em consideração direitos individuais dos seres sensíveis de uma maneira geral.

Uma segunda corrente que vai contrapor-se ao utilitarismo de Peter Singer é a linha abolicionista de Tom Regan, que defende a abolição imediata da exploração animal apontando como inadequada a visão que despreza os interesses básicos dos animais dependentes de cálculos de custo-benefício. Como expoente dessa visão, Tom Regan defende que os animais possuem um valor inerente que vai impor a completa abolição da exploração animal, propondo a ideia de sujeitos-de-uma-vida, utilizando-se da expressão direitos morais [6].

Tom Regan trabalha com a conceituação de direitos morais, lecionando que eles aparecem sob as seguintes formas: a) direitos morais devem ser universais; b) direitos morais não acontecem em graus, já que todos os que o possuem, o possuem igualmente; c) direitos morais não surgem por meio de atos de indivíduos, já que pertencem ao indivíduo, pelo fato do mesmo ser indivíduo [7].

Para Regan os direitos morais são sempre os mesmos, independentemente de raça, sexo, crença religiosa, inteligência ou espécie, devendo o direito proteger os seres humanos e não humanos [8].

Vale consignar que Richard Ryder não vislumbra vantagem nessa dicotomia entre abolicionistas e benestaristas [9].

3) Animais como possuidores de direitos?
Logo no início do preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, ficou explicitado que todos os animais possuem direitos.

Ainda que de forma tímida, a concepção de que somente os seres humanos podem ser sujeito de direitos vem avançando para albergar os animais nesse conjunto. É a capacidade de sofrer que vem abrindo espaço para substituir a concepção dos animais como coisas equiparadas aos objetos, para considerá-los como sujeitos de direitos ainda que despersonalizados.

Heron Gordilho admite que os animais são sujeitos de direitos, ainda que condicionados, como a vida, a liberdade e a integridade física [10]. Na linha de raciocínio do autor, os limites dos direitos morais básicos dos animais devem ser traçados pela consideração da existência de sistema nervoso, pois, já que para o homem, o fim das atividades cerebrais significa morte, haveria razão para considerar animais que possuam atividades encefálicas como sujeitos-de-uma-vida e, portanto, sujeitos de direitos [11]. Acrescente-se que, na linha de raciocínio do autor "um animal ou um conjunto deles, enquanto ente jurídico despersonalizado, pode ser admitido em juízo como titular de direitos e obrigações civis, representados pelo seu proprietário quando se tratar de animal doméstico ou domesticado, e pelo Ministério Público ou pelos demais co-legitimados para a ação civil pública, quando se tratar de animal silvestre" [12].

Na visão de Henry Salt existe um continuísmo ao longo da história a respeito da moralidade, verificando que, nos primórdios, o círculo de moralidade era somente circunscrito aos membros da família, da nação, propagando-se para uma vertente universal fruto de reivindicações de determinados momentos históricos. Assim, reconhecer os direitos dos animais é questão que é muito mais do que possuir simpatia ou compaixão por essas criaturas [13].

Há um bom tempo, já foram positivadas normas de proteção dos animais em meio a avanços nas concepções científicas a respeito da condição existencial animal.

Para Daniel Lourenço, os animais são enquadrados como sujeitos de direitos não personificados, conjunto que também abarca o em­brião [14].

Ao elaborar uma análise crítica a respeito do direito subjetivo, Alf Ross aponta que o motivo pelo qual se atribui somente aos seres humanos a titularidade de direitos subjetivos vem de uma concepção metafísica do direito como uma força espiritual [15]. Na visão do autor, nada impede que os interesses reconhecidos pelas normas jurídicas e protegidos por um direito subjetivo sejam estendidos aos animais, pois é incontestável que o animal é titular de direitos subjetivos, por exemplo, na hipótese de serem deixados legados em seu benefício [16].

Assim, é inegável que os animais sejam sujeitos de direitos subjetivos enquadrando-se nas situações atípicas apontadas por diversos autores.

 


[1] GORDILHO, Heron José de Santana. Abolicionismo animal. Salvador: evolução, 2008, p. 16.

[2] GORDILHO, Heron José de Santana. Abolicionismo animal. Salvador: evolução, 2008, p. 33.

[3] GORDILHO, Heron José de Santana. Abolicionismo animal. Salvador: evolução, 2008, p. 33-35.

[4] SINGER, Peter. Ética prática. 2 ed. Lisboa: Gradiva, 2002, p. 76.

[5] FERREZ, Jorge José; ÁLVAREZ, Juan Carlos. A bioética utilitarista de Peter Singer. In: ____. Para Fundamentar a bioética: teorias e paradigmas teóricos na bioética contemporânea. São Paulo: Loyola, 2005, p. 309.

[6] GORDILHO, Heron José de Santana. Abolicionismo animal. Salvador: evolução, 2008, p. 71-73.

[7] REGAN, Tom. The case of animal rights. 2ª. ed. Califórnia: University of California Press, 2004, p. 267-268.

[8] REGAN, Tom. Jaulas Vazias: encarando o desafio dos direitos animais. Porto Alegre: Lugano, 2006, p. 50.

[9] RYDER, Richard. Animal revolution: Changing Attitudes Towards Speciesism. Oxford: Berg, 2000. p. 07.

[10] GORDILHO, Heron José de Santana. Abolicionismo animal. Salvador: evolução, 2008, p. 112.

[11] GORDILHO, Heron José de Santana. Abolicionismo animal. Salvador: evolução, 2008, p. 155.

[12] GORDILHO, Heron José de Santana. Direito ambiental pós-moderno. 1 ed. (ano 2009), 2ª reimp. Curitiba: Paraná, 2011, p. 149-150.

[13] SALT, Henry S. Animals’ rights. In: Animal rights and human obligations. New Jersey: Prencitce-hall, 1976. p. 174.

[14] LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008.

[15] ROSS, Alf. Direito e justiça. 2 ed. São Paulo: Edipro, 2007, p. 213.

[16] ROSS, Alf. Direito e justiça. 2 ed. São Paulo: Edipro, 2007, p. 217.

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