Opinião

Round 6: os direitos da personalidade e a mercantilização do ser

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12 de outubro de 2021, 15h14

A série Round 6, da produtora Netflix, apresenta uma distopia chocante, apta a provocar profundas reflexões.

Evitando spoilers, eis uma breve sinopse do que nos interessa: o protagonista, Seong Gi-Hun, encontra-se desempregado e superendividado, pelo que tem uma vida tensa e desequilibrada, em que alimenta o vício em apostas e sofre perseguições de seus credores. Em determinado momento, um dos credores — aparentemente um agiota — persegue-o para fazer uma cobrança de alta monta, impassível de pagamento. Diante da patente insolvência do pobre devedor, é sacado um termo de renúncia à integridade física.

"Enxugue suas lágrimas, e carimbe sua digital. Se não pagar até o mês que vem, vou pegar um de seus rins e um olho seu, está bem?" — disse o suposto agiota, antes de colher o carimbo que autorizaria, a partir de então, possíveis violações à integridade física do devedor.

Assinado o termo, o protagonista volta à sua miserável rotina, quando, de repente, surge um personagem propondo o que diz ser a melhor oportunidade que receberá na vida. Tratava-se de um jogo cruento e mortal, em que os jogadores, superendividados como Seong Gi-Hun, arriscavam suas vidas para, vencendo, receberem uma premiação em dinheiro, que os tiraria da sufocante situação de insolvência. A partir daí, a série sul-coreana desenvolve o seu enredo.

Pois bem. Round 6 germina, inegavelmente, uma crítica ao sistema capitalista, abordando temas como sociedade de consumo, superendividamento e mercantilização do ser.

Do ponto de vista jurídico, salta aos olhos a questão dos limites da disposição dos direitos da personalidade, em especial da integridade física.

Com efeito, a sociedade moderna vem travando debates sobre os tênues limites da autonomia privada quando o assunto é disposição de direitos, especialmente aqueles inerentes à personalidade. Como ponto central, discute-se a delimitação do caráter indisponível de tais direitos.

Fato é que o assunto se torna menos tormentoso quando se constata, facilmente, o consentimento livre e desembaraçado, não influenciado por condições sociais precárias; ou, ainda, quando se trata mais de assuntos meramente morais, atinentes à visão de mundo ou ao modo de ser do titular do direito — a despeito da estranha alusão do Código Civil brasileiro, em alguns momentos, aos "bons costumes", que não subsiste a uma filtragem constitucional.

Por exemplo, fugiriam do escopo deste ensaio as cirurgias de transgenitalização, as modificações corporais estéticas (body modification) ou, mesmo, as doações de órgãos durante a vida, sem fins econômicos e cumpridas as exigências legais e médicas. Nesses casos, ao contrário de uma hipotética restrição, mais há uma ampliação do alcance dos direitos da personalidade, porque dentro do âmbito de autodeterminação de cada um. Prevalece, pois, a autonomia privada.

No entanto, à semelhança do que ocorre na série citada, há casos problemáticos e complexos que merecem menção, sobretudo no que diz respeito ao mercado humano, isto é, à — perigosa — exploração comercial do corpo humano.

Na década de 1920, o médico Voronoff propôs soluções excêntricas para o problema da atividade hormonal e do envelhecimento, como a realização de transplante de testículo de macaco nos humanos, o que garantiria maior vigor físico. Contudo, posteriormente, "difundiu-se o boato de que os órgãos não eram extraídos somente dos macacos, mas sobretudo de jovens carentes coagidos a ceder, mediante pagamento, um dos próprios testículos" [1].

Entre 1973 e 1977, o laboratório Plasmaferesis, instalado na Nicarágua, coletava o sangue de pessoas em situação de miséria, também mediante pagamento, chegando a exportar, por ano, cerca de 300 mil frascos para a Europa e para os Estados Unidos [2].

Por certo, os exemplos mostram que a tutela jurídica para proibir determinadas práticas de comercialização do corpo, limitando a autonomia privada, afigura-se necessária, notadamente em países subdesenvolvidos como o Brasil.

Aliás, o Código Civil brasileiro veda a disposição do próprio corpo que implique diminuição física permanente (artigo 13). Em uma intepretação a contrario sensu, as diminuições transitórias seriam tidas como lícitas, ainda que para fins comerciais. Na verdade, adota-se um critério estrutural e pouco delimitado, que é objeto de crítica por parte de alguns doutrinadores. Temas complexos — como barriga de aluguel ou solidária e venda de placentas para fins cosméticos — acabaram não sendo esgotados pela codificação civil.

Sobre o tema, interessante o enunciado nº 532 da VI Jornada de Direito Civil, segundo o qual "é permitida a disposição gratuita do próprio corpo com objetivos exclusivamente científicos, nos termos dos artigos 11 e 13 do Código Civil". Como justificativa, afirmou-se que "pesquisas com seres humanos vivos são realizadas todos os dias, sem as quais não seria possível o desenvolvimento da medicina e de áreas fins". Verifica-se a preocupação com a "gratuidade" e com os "objetivos exclusivamente científicos" da disposição, evitando a exploração comercial do corpo humano, ressalvada, obviamente, eventual reparação de danos.

Além da integridade física e o direito ao próprio corpo, outros direitos da personalidade são explorados comercialmente, de forma corriqueira, a exemplo da imagem. A exposição a fatos vexatórios tornou-se motivo de audiência na televisão e de visualizações na internet.

Em programas de televisão como o Big Brother Brasil, por exemplo, é comum a assinatura de um termo de renúncia à indenização por danos morais, em decorrência da edição de imagens. A cláusula que representaria, em equiparação ao apresentado na série, um "termo de renúncia à imagem" é nula de pleno direito (artigo 11 e 166, IV, ambos do Código Civil).

Outro caso célebre de disposição dos direitos da personalidade é o dos lançamentos de anão. A situação ocorreu na França, nos idos de 1991, quando Manuel Wackenheim passou a exercer a ocupação de, vestido com capacete e roupas acolchoadas, ser lançado em direção a um colchão de ar por clientes de bares e restaurantes, tendo em vista que o nanismo teria lhe restringido a inserção no mercado de trabalho. O conselho de Estado francês entendeu que a prática reduzia o sujeito a objeto de lazer, afrontando a sua dignidade, a despeito de ter a ela se submetido, supostamente, de forma livre.

A série Round 6, de forma muito didática, coloca em xeque a autonomia privada. Interessante que, na série, são mostrados participantes que se submeteram ao jogo mortal mediante a expressão de um consentimento refletido — embora se o possa considerar materialmente viciado. Há, de fato, uma contundente crítica à supervalorização da autonomia privada. Afinal, é certo que, hodiernamente, os contratos são feitos menos por autonomia e mais por necessidade.

No atual estado da arte, há a possibilidade, no Brasil, de disponibilidade ocasional dos direitos da personalidade. Relativiza-se o caráter indisponível dos direitos da personalidade quanto aos seus aspectos patrimoniais, desde que de forma limitada, observando-se o âmbito de autodeterminação de seu titular.

Deve-se atentar, portanto, com a devida cautela, aos tênues limites da relativa disponibilidade dos direitos da personalidade, em torno dos quais pairam todas as discussões aqui levantadas. O início, o meio e o fim das discussões devem apontar para a dignidade humana, em cujo núcleo duro se encontram os óbices e se baseiam as respectivas permissões.

A par da reflexão jurídica aqui extraída, relativa à disponibilidade dos direitos da personalidade e aos limites da autonomia privada, devemos, como cidadãos, atentar-nos ao problema político, para evitar que problemas jurídicos absurdos se tornem reais e corriqueiros.

A série retrata uma possível realidade extrema do capitalismo, baseada na felicidade pelo consumo e no consequente superendividamento das classes mais baixas, que mercantilizam a própria dignidade em busca da sobrevivência ou de padrões sociais mínimos.

Fato é que, consolidada a situação de extrema necessidade, como a do protagonista Seong Gi-Hun, torna-se difícil substituir a vontade do titular, a quem compete, em regra e naturalmente, decidir sobre os rumos da própria vida.

Não se quer isentar o dito "termo de renúncia à integridade física" das severas e merecidas críticas. Quer-se dizer, isto sim, que a realidade (nem tão) alternativa chegou a tal ponto que, para os personagens da série, enfrentá-la passou a ser mais torturante do que o próprio jogo mortal.

No caso do protagonista, teve-se como estopim, além do superendividamento e da precária condição de vida, a falta de recursos para tratar o grave estado de saúde de sua mãe.

Mudando o que tem que ser mudado, veja-se o exemplo de quem, para financiar a cirurgia de um parente próximo, vende um carro por menos da metade do seu valor de mercado — o que configuraria, no direito brasileiro, o vício do estado de perigo. Seon Gi-Hun, diferentemente, não tinha bens para comercializar, mas dispunha, somente e nada mais, do próprio corpo.

Dentro ou fora da lei, quem sabe se Seon Gi-Hun, os miseráveis de Nicarágua e o anão francês, por questão de sobrevivência, não escolheriam o mesmo destino: comercializar, de forma extrema, os seus direitos da personalidade? Ao fim e ao cabo, parece-me que, como pretende a crítica central da série, o problema é estrutural, razão pela qual demanda uma solução estrutural.

O papel do cinema, muitas vezes, é apresentar o mais — o absurdo — para que possamos enxergar o menos — o corriqueiro. Assim, aliás, previne-se uma possível acomodação ante a sorrateira mudança da realidade rumo ao absurdo.

Fazer da dignidade uma moeda de troca. Pagar com a própria alma. Sobrepõe-se, em Round 6, o ter ao ser: se não se tem, não se é. Afinal, Eduardo Galeano estava certo quando disse que, para a publicidad — ou, melhor, para a sociedade de consumo —, "el cuerpo es un negocio"?


[1] Giovanni Berlinguer; Volnei Garrafa, O Mercado Huma, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001, p. 81, apud Anderson Schreiber, Direitos da Personalidade: 3ª edição, São Paulo: Editora Atlas, 2014, p. 33.

[2] Anderson Schreiber, Direitos da Personalidade: 3ª edição, São Paulo: Editora Atlas, 2014, p. 41.

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