Opinião

Mutações no princípio da legalidade: a juridicidade no Direito Administrativo

Autor

  • Felipe Klein Gussoli

    é doutorando em Direito pela UFPR (Universidade Federal do Paraná) mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento pela PUC-PR e advogado do Bacellar & Andrade Advogados Associados em Curitiba.

6 de outubro de 2021, 6h34

No Estado liberal a lei produzida pelo Poder Legislativo era a garantia de liberdade dos particulares e de não interferência arbitrária na esfera jurídico patrimonial dos cidadãos, notadamente a propriedade privada [1]. O Direito Administrativo clássico e a supervalorização do princípio da legalidade são frutos da visão liberal de Estado, que via nas ações positivas da Administração riscos à atuação livre e desimpedida de direitos de liberdade do particular [2]. No século 19, o Estado de Direito "se afirma mediante o princípio da legalidade (…), síntese da ideia que fundamenta o chamado Estado liberal de direito" [3]. A razão de ser do princípio da legalidade administrativa foi e ainda é proteger o cidadão de investidas arbitrárias do poder público. Ao exigir que restrições à liberdade e propriedade fosse autorizadas sempre pelo Poder Legislativo em caráter antecedente à atuação administrativa, estava-se garantindo a preservação dos direitos fundamentais do cidadão na medida em que as restrições só seriam legítimas quando aprovadas pelos representantes eleitos do povo [4]. É usual, nesse sentido, a lição assaz repetida no campo do Direito Administrativo com base no artigo 37, caput, da Constituição, segundo a qual "enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza" [5].

Compreendida literalmente, a clássica lição está ultrapassada. Haverá casos em que a Administração pode, sim, agir na ausência de lei ou mesmo contra a lei. Desde que se atente para a finalidade do princípio da legalidade, torna-se ilógico proibir a atuação administrativa na ausência de lei em sentido estrito quando a consequência do agir for a expansão da esfera de direitos do cidadão e o cumprimento das normas constitucionais e/ou previstas em tratados de direitos humanos. O mesmo se diga sobre a atuação administrativa contra a lei em sentido estrito que se faça necessária para garantir a efetividade dos direitos fundamentais e humanos [6]. As bases do Direito Internacional contemporâneo e o reconhecimento de ordenamentos públicos globais superam a discussão da preferência por modelos diferentes de Estados e, muito mais radical, põem em "crise a concepção de legalidade desenvolvida como base do Estado de Direito" [7]. O princípio da legalidade administrativa evoluiu para o princípio da juridicidade [8].

A interpretação constitucionalmente adequada e convencionalmente adequada ressignificam o sentido clássico do princípio da legalidade [9]. Na segunda metade do século 20 o reconhecimento da força normativa da Constituição e da possibilidade de proteção dos direitos através das garantias previstas nas Leis Fundamentais provocaram uma verdadeira revolução jurídica [10]. Como manifesta Jesús Hernández, o "Direito Constitucional, que em alguns casos era um apêndice ou um argumento de reforço dentro do acervo dos estudiosos ou aplicadores do Direito Administrativo, passa a ganhar autonomia científica e espaço próprio no foro, o que influencia na formação dos juristas" [11]. A Administração Pública continua se sujeitando ao princípio da legalidade, mas o constitucionalismo e Direito Internacional dos Direitos Humanos acarreta sua releitura [12]. As bases do Direito Administrativo se alteram, regendo-o não somente a lei produzida pelo Legislativo, mas também as próprias normas de origem pública ou privada às quais a Administração se vincula, de forma espontânea ou não [13].

O princípio da juridicidade altera a concepção clássica da legalidade administrativa e faz desnecessária "regra legal específica (leia-se: lei formal) para habilitar toda e qualquer ação administrativa" [14]. É evidente que com isso não se assume a desnecessidade de algum vetor normativo que oriente a ação administrativa, o que de resto seria incompatível com a lógica assumida no ordenamento jurídico de que o motor do poder público é o Direito, e não a vontade arbitrária de alguém. A função administrativa acontece segundo o ordenamento jurídico, mas nem sempre segundo uma lei em sentido estrito. Embora em relação a algumas matérias, como por exemplo aquelas de natureza sancionatória, a Administração ainda esteja vinculada à existência de lei em sentido estrito, produzida pelo Poder Legislativo [15], está sepultado o entendimento segundo o qual a Administração Pública pode fazer aquilo o que a lei formal determina. Em alguns casos poderá, aliás, agir na ausência de lei, com apoio na Constituição ou em tratados internacionais (simples ou de direitos humanos).

Nessa quadra o que importa é afastar entendimentos reducionistas de que a Administração só poderia agir caso autorizada expressamente por lei formal editada pelo Legislativo. A juridicidade informante do renovado princípio da legalidade administrativa obriga a todo órgão da Administração editem normas e atuem em conformidade com os tratados de direitos humanos [16]. A mudança, é importante ressaltar, exige a leitura das normas administrativas e a compreensão do agir administrativo à luz "dos critérios, opiniões e decisões emanadas de quem aplica as normas constitucionais do Pacto de São José da Costa Rica na esfera internacional: Comissão e Corte Interamericana de Direitos Humanos" [17].

No final das contas, o dogma da legalidade como motor exclusivo de atuação da Administração nunca passou disso, de dogma [18]. O princípio da legalidade agora é só mais um dos condicionantes do atuar administrativo. A juridicidade leva à legalidade em sentido amplo, diretriz normativa que obriga o respeito à Constituição, à lei, aos próprios atos administrativos e aos tratados de direitos humanos.

 


[1] HACHEM, Daniel Wunder. O Estado moderno, a construção cientificista do Direito e o princípio da legalidade no constitucionalismo liberal oitocentista. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 11, n. 46, p. 199-219, out./dez. 2011. p. 211-212.

[2] HACHEM, Daniel Wunder (2014). Tutela administrativa efetiva dos direitos fundamentais sociais: por uma implementação espontânea, integral e igualitária. 604 p. Tese (Doutorado em Direito do Estado) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba. p. 223.

[3] TEIXEIRA, Anderson Vichikesnki. Constitucionalismo transnacional: por uma compreensão pluriversalista do Estado constitucional. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, v. 3, n. 3, p. 141-166, set./dez., 2016. p. 147.

[4] A utilidade do princípio da legalidade como garantia da manifestação da vontade geral é em si mesma posta em xeque. Para uma crítica à bases do princípio da legalidade, à ideia da lei como manifestação da voz popular através dos representantes eleitos, e à lei direcionada ao real atendimento do interesse público, com a demonstração de que "a lei destinada a vincular positivamente o administrador público: (I) não é a cristalização da vontade geral do povo brasileiro, (II) tampouco fruto de um colégio coeso e representativo." cf. a análise que André Cyrino faz mediante instrumental da teoria da public choice. CYRINO, André. Legalidade administrativa de carne e osso: uma reflexão diante do processo político brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro -RDA, v. 274, p. 175-208, jan./abr. 2017. p. 179. Em complemento, Paulo Otero expõe as fissuras da legalidade e defende a Constituição "como fundamento directo e imediato do exercício de poderes decisórios por parte dos órgãos administrativos, marginalizando-se a necessidade de intervenção do legislador, e permitindo o exercício de poderes contra a lei e em vez da lei." Cf. OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativo à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003. p. 740.

[5] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 85.

[6] Cf. GUSSOLI, Felipe Klein. Controle judicial amplo da função administrativa e seus limites sob a perspectiva do direito internacional dos direitos humanos. Revista da AJURIS, Porto Alegre, v. 46, n. 146, Jun./2019.

[7] MORAS, Juan M. González. Los tratados de derechos humanos y su incidencia en el Derecho Administrativo argentino. Documentación Adminsitrativa, n. 267-268, set.2003/abr.2004. p. 57.

[8] "O princípio da legalidade administrativa encontra suporte no art. 37, caput, da Constituição, representando a subordinação dos atos administrativos aos ditames da lei em sentido formal, impondo uma exigência de atuação secundum legem, ao passo que o princípio da juridicidade, igualmente condicionante do agir administrativo, extrai-se de todo o tecido constitucional e do ordenamento jurídico globalmente considerado – aí incluídos os direitos humanos e os princípios constitucionais não expressos – traduzindo-se como o dever de obediência do poder público à integralidade do sistema jurídico." (BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo administrativo disciplinar. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 169).

[9] "O Estado passa a ser operados de um direito que já não é lei (porque perde seus atributos de coerência e unidade), senão ordenamento jurídico aberto, no qual os direitos fundamentais do homem em face do próprio Estado estão definidos e garantidos por ordenamentos jurídicos internacionais que obrigam ao Estado tanto nacional como internacionalmente." (MORAS, Juan M. González. Los tratados de derechos humanos y su incidencia en el Derecho Administrativo argentino. Documentación Adminsitrativa, n. 267-268, set.2003/abr.2004. p. 58).

[10] A doutrina administrativista francesa há décadas percebeu a noção alargada do princípio da legalidade conducente da atividade administrativa. Transcreve-se a análise Eisenmann, quem, todavia, é adepto do sentido clássico do princípio da legalidade: "Mas é um fato: hoje, a maioria da doutrina administrativa, ao que parece, e, em todo o caso, os seus representantes mais marcantes, perfilham outros caminhos. Para êles, o princípio da legalidade define uma relação entre os atos – ou as ações da Administração e não mais tão-sómente as normas legislativas, mas, no mínimo, o conjunto dessas normas oriundas de fontes diversas." (EISENMANN, Charles. O Direito administrativo e o princípio da legalidade. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 56, p. 47-70, abr. 1959. p. 49).

[11] HERNÁNDEZ, Jesús M. Casal. El constitucionalismo latinoamericano y la oleada de reformas constitucionales en la región andina. Rechtsgeschichte, v. 16, p. 212-241, 2010. p. 214.

[12] "O Estado se transforma, assim, em um dos mais variados 'operados jurídicos' de um ordenamento que já não se pode mais definir nem conformar de maneira uniforme e exclusiva. O Estado passa a ser operador de um Direito que já não é lei (porque perde seus atributos de coerência e unidade), senão ordenamento jurídico aberto, no qual os direitos fundamentais do homem frente ao próprio Estado estão definidos e garantidos por ordenamentos jurídicos internacionais que obrigam ao Estado tanto nacional quanto internacionalmente." (MORAS, Juan M. González. La internacionalización del Derecho Administrativo argentino. Revista Argentina del Régimen de la Administración Pública, a. XXIX, n. 348, Buenos Aires, Ediciones RAP, p. 15-53, set. 2007. p. 20).

[13] Para uma introdução sobre a autovinculação da Administração à normas oriundas de diversas fontes, cf. SADDY, André. Administração pública e os códigos de conduta. RDA – Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 262, p. 233-261, jan./abr. 2013.

[14] MOTTA, Fabrício. Função normativa da Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 129.

[15] "O princípio da legalidade não fica imune ao ambiente em transformação, deixando de conter somente a sujeição do Estado à lei para abarcar também preceitos valorativos e éticos, além de sujeitar a atividade administrativa à observância dos preceitos fundamentais insculpidos na Constituição, que passam a ser vetores indicativos e interpretativos daquela atividade. Em atenção a esse estado de coisas, agravado pelo contínuo crescimento das demandas sociais, diversas técnicas são utilizadas pelo Legislativo, sempre por intermédio da lei, como ausência de definições rigorosas, enumerações exemplificativas, presunções, conceitos fluidos e cláusulas abertas. O conceito clássico de lei, que servia à proteção de liberdade e propriedade e pressupunha vocação de generalidade e permanência, atualmente é mais aberto. (…)"No cenário do pós-positivismo, antes comentado, o princípio da legalidade deve ser visto sob um prisma diferenciado que abranja a totalidade do ordenamento, notadamente dos princípios e valores constitucionais. Ao lado da exigência de lei em sentido formal para a disciplina de determinadas matérias e para a habilitação à prática de determinados atos pela Administração, devem coexistir outras formas de manifestação da legalidade." (MOTTA, Fabrício. Função normativa da Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 89-90).

[16] MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer. El control difuso de convencionalidad en el Estado Constitucional. In: FIX-ZAMUDIO, H; VALADÉS, D (Org.). Formación y perspectiva del Estado mexicano. Ciudad de Mexico: El Colegio Nacional-UNAM, 2010. p. 151-188. p. 184.

[17] COLANTUONO, Pablo Á. Gutiérrez. Administración Pública, Juridicidad y Derechos Humanos. Buenos Aires: AbeledoPerrot, 2009. p. 4.

[18] HACHEM, Daniel Wunder (2014). Tutela administrativa efetiva dos direitos fundamentais sociais: por uma implementação espontânea, integral e igualitária. 604 p. Tese (Doutorado em Direito do Estado) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba. p. 224.

Autores

  • é professor da PUC-PR, doutorando em Direito pela UFPR, mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento pela PUC-PR e advogado do Bacellar & Andrade Advogados Associados em Curitiba-PR.

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