Opinião

A Política Nacional Judicial do CNJ para as pessoas em situação de rua

Autores

  • Valerio de Oliveira Mazzuoli

    é professor-associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) pós-doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Clássica de Lisboa doutor summa cum laude em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e advogado em Mato Grosso São Paulo e Distrito Federal.

  • Renan Sotto Mayor

    é defensor público federal mestre em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense presidiu o Conselho Nacional dos Direitos Humanos em 2020 e atualmente é vice-presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos de Mato Grosso.

5 de outubro de 2021, 11h17

As pessoas em situação de rua têm sofrido histórica marginalização no Brasil com o agravamento de sua invisibilidade. Direitos humanos de vários matizes lhes são diuturnamente vilipendiados, não estando à vista a solução da questão, sobretudo nas grandes metrópoles [1].

Durante a pandemia da Covid-19, essa situação foi ainda mais explicitada. De fato, como as pessoas em situação de rua poderiam cumprir as medidas de restrição recomendadas pela OMS como, por exemplo, ficar dentro de casa? Como poderiam adquirir máscaras e álcool em gel 70% para a necessária profilaxia durante a pandemia?

Outro dado interessante é exatamente a ausência de dados efetivos sobre o quantitativo das pessoas em situação de rua no Brasil. O IBGE não computa as pessoas em situação de rua em seu censo demográfico, como se tais pessoas simplesmente não existissem [2].

Entretanto, observando a falta de dados, o Ipea tem realizados estimativas sobre o número de pessoas em situação de rua no Brasil. Em 2015, a estimativa do instituto, utilizando os dados oficiais das bases de dados do governo federal e um cálculo específico da instituição, estimou que há 101.854 mil pessoas em situação de rua no Brasil. Passados apenas cinco anos, em março de 2020, o Ipea estimou um aumento de mais de 100% de pessoas em situação de rua, passando a prever 221.869 pessoas em tal condição em nosso país.

Observando essa realidade de violação de direitos, em outubro de 2020 o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) editou a Resolução nº 40, que é um marco nos direitos das pessoas em situação de rua e que dispõe sobre as diretrizes para promoção, proteção e defesa dos direitos humanos dessas pessoas.

Na mesma direção, quase um ano depois da Resolução nº 40 do CNDH, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou, em 21/9/2021, durante a 338ª Sessão Ordinária, a resolução sobre "Política Nacional Judicial de Atenção às Pessoas em Situação de Rua". Tal Resolução é um marco para a proteção dos direitos desse grupo hipervulnerabilizado  e deve, por isso, ser comemorada.

A Resolução CNJ foi construída com ampla participação e diálogo com o CNDH, com diversos movimentos sociais, como o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) e com o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), além da Pastoral do Povo da Rua. Também participaram dos debates a Comissão Sobre População em Situação de Rua da Anadep (Associação Nacional das Defensoras e dos Defensores Públicos), o Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Gerais (Condege) e o GT Rua da Defensoria Pública da União, além do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua (CIAMP-Rua).

Essa histórica resolução do CNJ foi fruto de intenso trabalho de GT do CNJ coordenado pela conselheira Flávia Pessoa, e contou com diversos(as) magistrados(as) que contribuíram para o texto. Apenas para exemplificar, é importante constar a presença da juíza federal Luciana Ortiz, que já atuava com pessoas em situação desde 2011 na Justiça Federal em São Paulo.

A recente Resolução CNJ demarca uma mudança de paradigma de como o Poder Judiciário deve lidar com as pessoas em situação de rua Brasil, compreendendo a importância desse tema e destacando meios para a sua resolução. No Brasil, já se disse, a criminalização sofrida pela população em situação de rua é histórica, notadamente à luz de sua invisibilidade. Não é por outra razão que o Livro V da Ordenações Filipinas (1595) já sancionava, em seu título LXVIII, a atitude dos que estavam na condição de "vadios" [3].

A novel Resolução CNJ parte de um olhar interseccional do problema, observando as diversas estruturas de opressão existentes em nossa sociedade, trazendo toda a complexidade e heterogeneidade das pessoas que estão em situação de rua, bem como ressaltando a necessidade de enfrentamento ao racismo estrutural e institucional. Por isso, em um país marcado pelo racismo estrutural, em que existe uma realidade de desigualdade social abissal e que pessoas (sobre)vivem nas ruas, a nova Resolução CNJ deve ser compreendida e utilizada na prática pelos operadores do Direito, pois só assim as pessoas em situação de rua poderão ter um efetivo acesso à justiça no Brasil.

A Resolução CNJ traça diretrizes e princípios que fundamentais para superar as diversas barreiras decorrentes das múltiplas vulnerabilidades econômica e social, bem como da sua situação de precariedade e/ou ausência habitacional (artigo 1º, I). Pela Resolução, será necessário "promover o levantamento de dados estatísticos relativos aos números, à tramitação e outros dados relevantes sobre ações judiciais que envolvam pessoas em situação de rua, visando dar visibilidade à política e promover a gestão das ações voltadas ao aprimoramento e sua efetividade; inclusive analisando os dados oficiais e dos centros de defesa, a fim de diagnosticar o grau de acesso à justiça nacional, regional e local e as barreiras para sua efetividade" (artigo 1º, V).

A produção desses dados será fundamental para que se possa refletir sobre a implementação e a efetividade das políticas públicas para esse público, pois, como já ressaltado, infelizmente essas pessoas não são computadas pelo IBGE no Censo. Assim, a Resolução CNJ dá um importante passo para a garantia de visibilidade dos direitos dessa população, fazendo-as "aparecer" perante o Poder Judiciário para que possam vindicar os direitos de que são titulares.

Outro ponto que permeia toda a resolução é o prisma da intersetorialidade, pois é impossível que o Poder Judiciário atue de forma isolada em uma questão tão complexa. De fato, as demandas que envolvem as populações de rua são complexas e heterogêneas, demandando articulação de várias políticas públicas destinadas a garantir a possibilidade de saída das ruas ou, até mesmo, algum nível de dignidade enquanto permanecerem nessa situação. Esse o motivo pelo qual não pode haver uma única resposta para situação tão complexa, e sim múltipla com articulação de diversas políticas públicas, como assistência social, saúde, cultura, educação, habitação, políticas relacionadas ao trabalho e esporte, por exemplo [4].

Também é importante ressaltar que a Resolução não desconsidera o processo de criminalização histórico desse grupo hipervulnerabilizado e, por isso, um dos princípios orientadores é o da "não-criminalização das pessoas em situação de rua" (artigo 3º, II). Além disso, há uma previsão na resolução que dispõe que o Poder Judiciário deve ter uma atuação comprometida contra toda a forma de violência contra as pessoas em situação de rua, com destaque para violência institucional (artigo 3º, X).

Outro ponto importante a ser destacado é o acesso às dependências do Poder Judiciário. Pode parecer algo simples, mas, na realidade, as pessoas em situação de rua, na maior parte das vezes, além de não terem um efetivo acesso à justiça, sequer têm acesso às dependências do Poder Judiciário, dada as vestimentas compreendidas como não adequadas para o ingresso nos Fóruns ("trajes forenses"). Como uma pessoa em situação de rua, em extrema miserabilidade, poderá ter vestimenta "adequada" para buscar no Poder Judiciário a satisfação de um direito seu? É curioso que, neste caso, a dignidade do ser humano cede à necessidade de "vestimenta adequada" para o ingresso nas instalações forenses.

Vários outros pontos importantes são trazidos pela resolução e que estarão a merecer a atenção dos juristas, em geral, e dos operadores do direito, em especial. É evidente, no entanto, que mesmo com essa normativa recente do CNJ o acesso à justiça integral dessa população vulnerável não será completamente alcançado, mas ela foi um passo importante dado para a garantia dos direitos das pessoas em situação de rua.

Que esse novo instrumento jurídico possa servir para visibilizar tais pessoas historicamente invisíveis e garantir-lhes os direitos básicos de que sempre lhe foram despojadas.


[1] Sobre o tema, v. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direitos humanos. 8. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2021, p. 337-353.

[2] Os defensores públicos federais Thales Arcoverde Treiger e o segundo autor do texto ingressaram com ação civil pública para que o IBGE computasse essas pessoas no Censo demográfico. Todavia, apesar de sentença favorável da Justiça Federal no Rio de Janeiro, o TRF 2 reformou a sentença e dessa decisão a DPU ingressou com Recurso Especial que ainda aguarda tramitação no STJ. Para detalhes, v. SOTTO MAYOR, Renan; DUEK, Natan Aquilar; TREIGER, Thales Arcoverde. Invisíveis e reais: a atuação da defensoria pública da união para a inclusão de pessoas em situação de rua no censo demográfico. In: SIMÕES, Lucas Diz; MORAIS, Flávia Marcelle Torres Ferreira de; FRANCISQUINI, Diego Escobar. (Org.). Defensoria Pública e a tutela estratégica dos coletivamente vulnerabilizados. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019.

[3] No original: "Mandamos, que qualquer homem que não viver com senhor, ou com amo, nem tiver Officio, nem outro mestér, em que trabalhe, ou ganhe sua vida, ou não andar negoceando algum negócio seu, ou alhêo, passados vinte dias do dia que chegar a qualquer Cidade, Villa, ou lugar, não tomando dentro dos ditos vinte dias amo, ou senhor, com que viva, ou mestér, em que trabalhe, e ganhe sua vida, ou se o tomar, e depois o deixar, e não continuar, seja preso, e açoutado publicamente".

[4] A propósito, v. SOTTO MAYOR, Renan. Defensoria Pública na rua: Limites e possibilidades de acesso à justiça à população em situação de rua. 108 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas e Sociais). Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, 2019, p. 64.

Autores

  • é professor-associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), pós-doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Clássica de Lisboa, doutor summa cum laude em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e advogado em Mato Grosso, São Paulo e Distrito Federal.

  • é defensor público federal, mestre em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense, presidiu o Conselho Nacional dos Direitos Humanos em 2020 e atualmente é vice-presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos de Mato Grosso.

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