Opinião

Quais os desafios e as oportunidades da decisão sobre concurso para juiz?

Autor

  • Ricardo Lins Horta

    é doutor em Direito (UnB) e mestre em Neurociências (UFMG) professor de ciências comportamentais aplicadas na Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) e de Metodologia de Pesquisa na Escola da AGU.

5 de outubro de 2021, 7h07

"O cérebro não é uma tábua em branco a ser preenchida gradualmente pelas verdades do mundo, mas um explorador ativo com uma dinâmica pré-formada (…). A única função do cérebro é auxiliar a sobrevivência e o florescimento do corpo com o qual interage, independentemente de, no processo, aprender ou não a 'realidade objetiva' do mundo exterior" (György Buzsáki, "The brain from inside out", p. 344).

Nos últimos anos, uma profusão de livros, artigos e monografias vêm abordando o problema da decisão judicial de forma interdisciplinar, aportando conhecimentos oriundos das ciências comportamentais para compor um quadro mais completo da tomada de decisão em contextos jurídicos [1]. Até recentemente, essa questão não passava das notas de rodapé em trabalhos que tratavam da hermenêutica jurídica ou da teoria da argumentação aplicados à decisão jurídica.

Em 24/09/2021, o plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou alteração na Resolução n° 75/2009, inserindo novos conteúdos nos concursos públicos para a magistratura. No seu voto [2], o ministro Luiz Fux justifica a decisão diante da "necessidade de atualização à luz das transformações sociais e tecnológicas ocorridas" nos últimos 10 anos. O voto sustenta que "ferramentas como a Análise Econômica do Direito e a economia comportamental" podem aprimorar o direito brasileiro, motivo pelo qual passarão a ser exigidos dos candidatos à magistratura conhecimentos em "economia comportamental. Heurística e vieses cognitivos. A percepção de Justiça. Processo cognitivo de tomada de decisão".

As "ciências da decisão" constituem um vasto corpo de conhecimentos de fontes e tradições de pesquisa muito diversas, que vão das neurociências à psicologia social, da teoria dos jogos à psicologia cognitiva. Todavia, é a "economia comportamental" a abordagem que tem encontrado maior ressonância entre juristas nos últimos anos. Essa preferência talvez se deva ao prestígio que a economia tem diante de outros campos do saber, ou talvez à popularização do trabalho de autores classicamente associados ao campo da economia comportamental, tais como Richard Thaler e Daniel Kahneman, especialmente a partir da comunidade interessada pela Análise Econômica do Direito.

Porém, a economia comportamental é apenas uma vertente de um campo mais amplo. Além disso, embora seja uma excelente leitura introdutória, a principal porta de entrada de muitos juristas para esse campo, a obra "Rápido e Devagar" [3], de Daniel Kahneman, infelizmente vem sendo interpretada de forma apressada, reproduzindo alguns mitos, como por exemplo:

a) Afirmar que "existem dois sistemas no cérebro", um sistema rápido e intuitivo, e outro devagar e refletido, em conflito entre si. Ora, o próprio Daniel Kahneman deixa explícito se tratar de uma metáfora. Em trabalhos recentes, sequer se tem utilizado o termo "sistemas", mas "tipos de raciocínio". Além disso, do ponto de vista neurocientífico, os tipos de raciocínio realizados pelo cérebro não são nem localizados em áreas cerebrais específicas, e nem divisíveis entre si em termos categóricos. O que na verdade existe é um continuum, em que numa ponta estão decisões mais rígidas e pré-fixadas, e no outro, mais flexíveis e adaptáveis; múltiplas redes neurais distribuídas por todo o cérebro podem ora levar a decisões ou "rápidas, com menos precisão", ou "devagar, com maior precisão" [4].
b) A concepção segundo a qual os vieses cognitivos e erros de raciocínio sempre se deveriam ao raciocínio rápido e precipitado (do "Sistema 1"), o qual seria corrigido pelo raciocínio devagar e deliberativo (do "Sistema 2"). Em seu próprio livro, Kahneman destaca que em contextos previsíveis e estruturados, tomadores de decisão experientes podem ter uma performance superior ao agirem intuitivamente, em vez de deliberarem lentamente [5]. Ou seja, mais do que o tipo de raciocínio empregado, saber o contexto decisório é essencial para se saber qual a forma mais efetiva de tomar decisões.
c) A própria definição ou distinção entre esses dois sistemas ou tipos de raciocínios, e o fato de um deles "corrigir" o outro, ainda estão em aberto na literatura especializada, sendo que as versões mais recentes das "teorias do duplo processo" são bastante deflacionadas em relação à distinção categórica contida no livro "Rápido e Devagar", publicado mais de 10 anos atrás [6] — uma eternidade, em se tratando da rapidez do progresso nas ciências comportamentais [7].
d) A prática de listar exaustivamente vieses cognitivos ou heurísticas (atalhos cognitivos) indicados na literatura em economia comportamental: e assim, dezenas ou centenas de efeitos encontrados em experimentos psicológicos são elevados à condição de "vieses a que estamos todos sujeitos" [8]. Porém, um pouco de metodologia em pesquisa social basta para perceber que efeitos observados num determinado contexto experimental não necessariamente se repetem em outros, ou mesmo na "vida real" — é o velho problema da "validade ecológica" dos achados empíricos. Desse modo, não basta que exista um experimento de economistas comportamentais que tenha encontrado um certo efeito para que se possa generalizar que todo tomador de decisão estará sujeito a ele, e em qualquer situação.
e) Como decorrência disso, não se pode afirmar que todo magistrado, ao julgar qualquer caso trazido em juízo, necessariamente esteja sob o efeito de um determinado viés cognitivo. A melhor forma de se saber quais vieses do raciocínio poderiam afetar a forma como a Justiça é dispensada é testar empiricamente [9]. Felizmente, já existem várias pesquisas feitas no Brasil que buscam avaliar fatores extrajurídicos que influenciam a tomada de decisão juridicamente relevante [10]. Porém, muito ainda precisa ser estudado para que de fato se compreenda a ocorrência ou não, ou a magnitude desses efeitos na realidade forense. Em todo caso, esses estudos empíricos com magistrados brasileiros mereceriam mais destaque do que outros trabalhos, que se limitam a afirmar que alguns vieses cognitivos podem, em teoria, afetar a tomada de decisão judicial.

Esses cinco pontos revelam uma preocupação que já foi destacada neste espaço — a de que, ao exigir um tema complexo em concursos públicos, ocorra uma inevitável supersimplificação. A lógica concurseira não costuma ser compatível com o aprofundamento teórico, e nisso concordamos plenamente com Lênio Streck.

Discordamos, porém, do articulista, quando sustenta que a interdisciplinaridade do Direito com as ciências comportamentais não deveria ter precedência teórica em relação, por exemplo, ao que vem defendendo há anos em sua coluna: que juízes deveriam estudar mais e melhor Filosofia do Direito, ou mais especificamente a noção dworkiniana sobre "o que é o Direito".

Há tempos se critica a visão segundo a qual juízes seriam "melhores tomadores de decisão" caso estudassem "mais Dworkin, ou mais Alexy". Primeiro, porque são autores que formularam teorias em realidades institucionais muito distantes da nossa [11]. Dworkin, aliás, tem como sua inspiração os julgados progressistas da "Corte Warren", tão distantes da realidade atual da Suprema Corte estadunidense, que no último meio século tem caminhado sempre no sentido de limitar direitos e proteger interesses privilegiados em detrimento dos de grupos vulneráveis [12]. Em segundo lugar, embora fundamental levar o Direito a sério, e discutir do ponto de vista normativo seus parâmetros de racionalidade ou de decisões aceitáveis, essas teorias normativas tradicionais não têm como foco o funcionamento das instituições judiciais na prática — e como efetivamente podemos melhorá-las.

E a realidade das instituições judiciais hoje é fruto de fenômenos como o uso massivo de redes sociais, o descrédito das instituições tradicionais, a formação de bolhas informacionais e a disseminação descontrolada de fake news, que têm levado ao fenômeno da "polarização afetiva" [13]. Cada vez mais, todos os profissionais do direito têm sua tarefa interpretativa de determinar "o que é o Direito" afetada por convicções político-ideológicas alimentadas por um debate público radicalizado e de baixa qualidade.

Nesse sentido, mais do que estudar experimentos clássicos sobre a "heurística da disponibilidade" ou a "heurística da representatividade", os candidatos à magistratura brasileira deveriam, antes de tudo, estudar aquele que talvez seja o viés cognitivo cujo conhecimento é mais urgente em nosso tempo: o "viés de confirmação" [14]. Esse efeito clássico da racionalidade humana, replicado em incontáveis estudos, consiste no fato de que a busca e a interpretação de dados e informações sempre se dá conforme as crenças e preferências prévias do sujeito.

É fundamental, assim, que ao estudar "A percepção de Justiça", como pretende a nova resolução do CNJ, aspirantes a magistrados entendam que o modo-padrão do raciocínio humano não é a busca da verdade, é o "raciocínio motivado". As pessoas chegam mais facilmente a conclusões a que desejam chegar de antemão, e seus objetivos implícitos, incluindo motivações político-ideológicas, direcionam seu processo cognitivo [15]. Com efeito, o "justo" é frequentemente o autointeresse remodelado como um bom discurso de justificação, mas as pessoas não se dão conta disso conscientemente. Psicólogos sabem há décadas que temos um "ponto cego" para nossos próprios vieses (bias blind spot) [16].

Ademais, o estudo de teorias hermenêuticas por si só não garante a formação de bons julgadores justamente porque há estudos que sugerem que a escolha do método interpretativo pode ser resultante da motivação político-ideológica: o julgador pode buscar aquele autor ou teoria do Direito que lhe convenha, desde que justifique uma decisão alinhada com suas preferências e crenças iniciais [17]. É cada vez mais importante e urgente pesquisar, e saber, o real impacto desses efeitos cognitivos na justiça brasileira, por suas repercussões óbvias e fundamentais para a imparcialidade e a correção de decisões judiciais.

Acrescente-se que há vasta literatura, oriunda não da economia comportamental, mas da Ciência Política, indicando que, em determinados casos e contextos, a decisão judicial pode ser afetada por fatores ligados à identidade político-ideológica, racial ou de gênero dos magistrados [18]. Apropriar-se dessa literatura, e analisar criticamente como a partir dela se pode repensar a prática judicial, é muito mais relevante do que promover a memorização de listas de "vieses cognitivos".

Saudamos a decisão do Conselho Nacional de Justiça, torcendo para que, ao implementá-la, em vez de apenas fazer girar mais uma engrenagem da máquina dos concursos públicos, disseminem-se conhecimentos genuinamente relevantes para repensar e aperfeiçoar nossas instituições.


[1] A exemplo de: NUNES, Dierle; LUD, Natanael; PEDRON, Flávio Quinaud, Desconfiando da Imparcialidade dos sujeitos processuais: um estudo sobre os vieses cognitivos, a mitigação de seus efeitos e o debiasing, 2a. ed. Salvador: JusPodivm, 2020; ANDRADE, Flávio Da Silva, A tomada da decisão judicial criminal à luz da psicologia: heurísticas e vieses cognitivos, Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 5, n. 1, p. 507, 2019; ROSA, Alexandre Morais da, Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos, 5a. ed. Florianópolis: EMais, 2019; CARDOSO, Renato César; HORTA, Ricardo de Lins e, Julgamento e tomada de decisões no direito, in: Julgamento e Tomada de Decisão, São Paulo: Pearson, 2018, p. 423; COSTA, Eduardo José da Fonseca, Levando a imparcialidade a sério: proposta de um modelo interseccional entre direito processual, economia e psicologia, Salvador: JusPodivm, 2018; MORAES, José Diniz de; TABAK, Benjamin Miranda, As heurísticas e vieses da decisão judicial: análise econômico-comportamental do direito, Revista Direito GV, v. 14, n. 2, p. 618—653, 2018.

[2] Ato Normativo de n° 0006767-49.2021.2.00.0000.

[3] KAHNEMAN, Daniel, Rápido e Devagar: Duas formas de pensar, Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

[4] BUZSÁKI, György, The Brain from Inside Out, New York: Oxford University Press, 2019, p. 338.

[5] Vide o cap. 22 de Rápido e devagar, Op. Cit.; Ver ainda KLEIN, Gary, Naturalistic Decision Making, Human Factors: The Journal of the Human Factors and Ergonomics Society, v. 50, n. 3, p. 456—460, 2008.

[6] EVANS, Jonathan St B.T.; STANOVICH, Keith E., Dual-Process Theories of Higher Cognition: Advancing the Debate, Perspectives on Psychological Science, v. 8, n. 3, p. 223—241, 2013; DE NEYS, Wim, Dual Process Theory 2.0, New York: Routledge, 2018; BAGO, Bence; DE NEYS, Wim, The Smart System 1: evidence for the intuitive nature of correct responding on the bat-and-ball problem, Thinking and Reasoning, v. 25, n. 3, p. 257—299, 2019.

[7] NELSON, Leif D; SIMMONS, Joseph; SIMONSOHN, Uri, Psychology’s Renaissance, Annual Review of Psychology, v. 69, p. 511—534, 2018.

[8] GIGERENZER, Gerd, The Bias Bias in Behavioral Economics, Review of Behavioral Economics, v. 5, p. 303—336, 2018.

[9] HORTA, Ricardo Lins; COSTA, Alexandre Araújo, Desafios da Agenda de Pesquisa Empírica em Psicologia da Tomada de Decisão Judicial no Brasil, Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 7, n. 3, p. 76—110, 2020.

[10] A exemplo de: LEAL, Fernando; RIBEIRO, Leandro Molhano, Heurística de ancoragem e fxação de danos morais em juizados especiais cíveis no Rio de Janeiro: uma nova análise, Revista Brasileira de Politicas Publicas, v. 8, n. 2, p. 778—799, 2018; STRUCHINER, Noel; DE ALMEIDA, Guilherme da F.C.F.; HANNIKAINEN, Ivar R., Legal decision-making and the abstract/concrete paradox, Cognition, v. 205, n. September 2019, p. 104421, 2020; NOJIRI, Sérgio, Emoção e Intuição: Como (de fato) se dá o processo de tomada da decisão judicial, Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021; SPAMANN, Holger et al, Judges in the lab: No precedent effects, no common/civil Law Differences, Journal of Legal Analysis, v. 13, n. 1, p. 110—126, 2021.

[11] RODRIGUEZ, José Rodrigo, Como decidem as cortes? Para uma crítica do direito (brasileiro), Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013, p. 68—69, 104.

[12] COHEN, Adam, Supreme Inequality: The Supreme Court’s Fifty-year battle for a more unjust America, New York: Penguin Press, 2020.

[13] IYENGAR, Shanto et al, The origins and consequences of affective polarization in the United States, Annual Review of Political Science, v. 22, p. 129—146, 2019.

[14] NICKERSON, Raymond S, Confirmation Bias: A Ubiquitous Phenomenon in Many Guises, Review of General Psychology, v. 2, n. 2, p. 175—220, 1998.

[15] KUNDA, Ziva, The Case for Motivated Reasoning, Psychological Bulletin, v. 108, n. 3, p. 480—498, 1990.

[16] PRONIN, Emily, The Introspection Illusion, Advances in Experimental Social Psychology, v. 41, p. 1—67, 2009.

[17] FURGESON, Joshua R.; BABCOCK, Linda; SHANE, Peter M., Behind the mask of method: Political orientation and constitutional interpretive preferences, Law and Human Behavior, v. 32, n. 6, p. 502—510, 2008; KAHAN, Dan M. et al, "They saw a protest": Cognitive Illiberalism and the Speech-conduct distinction, Stanford Law Review, v. 64, p. 851—906, 2012.

[18] HARRIS, Allison P.; SEN, Maya, Bias and Judging, Annual Review of Political Science, v. 22, p. 241—259, 2019; BRAMAN, Eileen, Cognition in the Courts, in: EPSTEIN, Lee; LINDQUIST, Stefanie A. (Orgs.), The Oxford Handbook of U.S. Judicial Behavior, 1. ed. Oxford: Oxford University Press, 2017, p. 283—507; EPSTEIN, Lee; LANDES, William M.; POSNER, Richard A., The Behavior of Federal Judges: a theoretical and empirical study of rational choice, Cambridge: Harvard University Press, 2013.

Autores

  • é doutor em Direito (UnB) e mestre em Neurociências (UFMG), professor de ciências comportamentais aplicadas na Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) e de Metodologia de Pesquisa na Escola da AGU.

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