Opinião

O mito da pirâmide de Hans Kelsen

Autores

  • Rafael Lazzarotto Simioni

    é pós-doutor em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade de Coimbra doutor em Direito Público pela Unisinos mestre em Direito pela UCS graduado em Direito pela UCS professor da FDSM e da Univás e pesquisador na área de hermenêutica e iconografia jurídica.

  • Fafina Vilela de Souza

    é mestre em Direito pela UFPR graduada em Direito pela FDSM e professora de Introdução ao Estudo do Direito na FDSM.

2 de outubro de 2021, 17h13

Hans Kelsen foi um dos mais importantes juristas do século 20. Ele foi para o mundo continental europeu o que Hart foi para o mundo britânico. Só que mais: antes de Kelsen o Direito era lei, costumes, precedentes. Kelsen inventou uma nova categoria conceitual para o Direito, que ele chamou, com a ajuda de Rudolf Carnap, de "norma jurídica". Norma, para Kelsen, não é sinônimo de lei, mas, sim, o resultado de uma interpretação linguística dos textos jurídicos. A lei se tornou uma metonímia e, junto com ela, o problema das lacunas tornou-se uma questão obsoleta.

Se o Direito se torna um processo de construção interpretativa das normas jurídicas, então o problema não é mais de lacunas, mas de indeterminação da linguagem do direito — o equivalente ao problema da "textura aberta" de Hart. Se antes de Kelsen o problema eram as anomias, as ausências, as fissuras regulatórias, os vazios e silêncios da lei, depois dele o problema se inverte: a questão agora é o excesso de possiblidades de interpretação do Direito, o excesso de possibilidades de construção interpretativa do Direito.

Para organizar a dinâmica de produção do Direito, que não é mais entendida como uma exclusividade do Poder Legislativo, mas também como uma construção interpretativa dos tribunais, Kelsen propõe, de modo inovador, a ideia de uma estruturação hierárquica do Direito, de acordo com diferentes níveis de normatividade. Trata-se de uma lógica pensada pelo matemático Bertrand Russell, segundo o qual conjuntos complexos podem conter diferentes categorias hierárquicas de conjuntos, inclusive a si mesmos se se pressupor um conjunto hipotético fundamental.

Uma teoria complicada, sofisticada e abstrata que, como quase tudo em Kelsen, gerou inúmeros mal-entendidos. A metáfora da pirâmide foi um deles.

Não que a pirâmide seja uma imagem errada para simbolizar a estrutura hierárquica de um ordenamento jurídico. Ela até pode constituir uma primeira aproximação visual de uma estrutura escalonada de diferentes tipos de normas jurídicas. O problema é que esse tipo de metáfora constituiu e continua constituindo obstáculos para uma compreensão mais interessante das contribuições de Kelsen para a dinâmica jurídica e, em especial, para a compreensão do processo de criação do Direito.

Em primeiro lugar, não há referencia à pirâmide em Kelsen. Quem usou a imagem da pirâmide como metonímia da hierarquia de um ordenamento jurídico foi um aluno dele, chamado Adolf Merckl, que depois se tornou professor da Faculdade de Jurisprudência da Universidade de Viena e posteriormente na Universidade de Tübingen. A ideia de Merckl foi, como todos os que o seguiram, usar um símbolo capaz de simplificar o desenho teórico do pensamento de Kelsen. O problema que é que essa simplificação cobrou um preço: onde fica a norma fundamental na pirâmide? A norma fundamental é a Constituição ou ela seria uma norma mais axiomática do que a própria constituição? Ela estaria dentro ou fora da pirâmide, já que ela é uma norma pressuposta?

A norma fundamental não é a Constituição. As Constituições são normas substanciais, que possuem materialidade. A norma fundamental é uma norma pressuposta, hipotética, um pressuposto científico de validade de um ordenamento jurídico concreto. Ela corresponde ao conceito de conjunto hipotético fundamental, da matemática dos conjuntos de Bertrand Russell.

As normais hierarquicamente superiores estão no ápice da pirâmide, mas, paradoxalmente, elas são as que possuem a maior margem de discricionariedade, a maior amplitude interpretativa, de modo que, do ponto de vista da prática jurídica, a pirâmide poderia estar invertida, com a constituição na base, como potência de fundamento, e as leis, sentenças e contratos, no ápice, como normas hierarquicamente inferiores, mas bem mais restritas do ponto de vista das potencialidades de interpretação construtiva. Isso acontece porque, em Kelsen, a interpretação não é um ato de queda livre da norma superior até se esborrachar na norma inferior. Na verdade, a interpretação é um processo de construção normativa que, como a descida de uma montanha, passa por diversos caminhos normativos até chegar à definição do melhor caminho para o caso concreto.

O problema da pirâmide é que ela esconde o verdadeiro sentido do processo de construção interpretativa do Direito que, segundo Kelsen, inicia a partir de uma norma de escalão superior e termina na construção de uma norma de escalão inferior. A norma de escalão superior pode ser a constituição, cuja linguagem aberta possui uma indeterminação semântica que torna as possibilidades de interpretação muito maiores. Mas seguindo o processo interpretativo, o ato de interpretação encontra nas normas inferiores uma determinação maior, até chegar-se na interpretação para o caso concreto, que pode ser tanto uma lei criada pela interpretação que o Poder Legislativo faz da Constituição, como também pode ser a sentença de um juiz, um ato administrativo do governo ou um contrato da advocacia privada.

A questão é que a dinâmica jurídica, isto é, o processo de construção e transformação do Direito, que foi uma das mais importantes propostas teóricas do século 20, fica ofuscado pela ideia da pirâmide. Isso porque, na verdade, o processo de aplicação do Direito não é uma pirâmide, mas um processo horizontal e transversal, que se desenvolve no tempo. Ele começa na norma de escalão superior e termina na de escalão inferior.

Como se poderia representar iconograficamente essa ideia em toda sua riqueza e complexidade? Talvez uma das pirâmides paradoxais de M. C. Escher poderia ajudar. Enquanto isso, é importante perceber que não há pirâmide em Kelsen e que apenas didaticamente usamos essa metonímia para representar uma ideia de hierarquia entre normas, que, na verdade, é muito mais dinâmica e complexa.

Passados quase 50 anos da publicação completa da Teoria Pura do Direito, que foi concluída apenas depois do acréscimo do capítulo 8, que é o capítulo sobre a interpretação jurídica, Hans Kelsen continua atual e inclusive o seu modo de entender o problema da aplicação prática do Direito continua comandando a problemática contemporânea. Não é por acaso que não só no Brasil, mas em todo o mundo ocidental, os casos difíceis são entendidos como situações jurídicas cuja linguagem do direito é indeterminada e, por esse motivo, gera dissensos entre os juristas.

A questão da textura aberta (Hart) ou da indeterminação semântica (Kelsen) dos princípios fundamentais é a problemática contemporânea da aplicação prática do Direito. A novidade é apenas a compreensão da questão da legitimidade da interpretação, quando os juristas estão diante de casos difíceis. Kelsen continua atual na prática jurídica e, por isso, precisamos compreender corretamente o sentido da dinâmica na estrutura escalonada (hierarquia de normas) como uma dimensão do processo de construção interpretativa do Direito.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!