Opinião

Sobre o processo de seleção dos juízes

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1 de outubro de 2021, 9h12

O que se espera de um juiz? Depende de quem se ouve. Oficialmente, no Brasil, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estipulou como devem ser as várias fases do concurso e o mínimo de matérias que deva ser exigido, incluindo Sociologia, Filosofia do Direito e Psicologia Judiciária. Temos todo respeito pelo CNJ, mas cremos que outros atores devam ser ouvidos, a começar pelos próprios juízes e, mais importante ainda, os interesses do povo, que é o destinatário de sucesso ou fracasso do Estado em selecionar e treinar bem seus magistrados.

Estamos absolutamente convictos das boas intenções do CNJ em aperfeiçoar a seleção dos magistrados, mas, por dever de ofício e amor à magistratura, precisamos fazer uma crítica. Esperamos que não seja vista como ácida, mas firme; não como desrespeitosa, mas voltada ao bem mais importante: a escolha bem-feita de quem irá julgar o povo.

Em 2018, no concurso de ingresso à magistratura mineira, foi exigido do candidato que discorresse sobre "o conceito habermasiano de equiprimordialidade ou cooriginalidade, e como se dá a relação entre moral e Direito no pensamento de Habermas".

Imaginamos se o examinador tem algum livro sobre o tema, ou se tem experiência para saber o quanto esse conhecimento impactará ou não o funcionamento de um órgão judicial. Por fim, nos indagamos se questões desse jaez não são uma espécie de seleção ao avesso, já que o nível de abstração para tais questões normalmente é obtido por pessoas com menor grau de conexão com o cotidiano da humanidade, com o chão de fábrica, com as sandálias que o povo calça. O povo não precisa, nem quer, juízes gênios, mas, sim, práticos, que saibam decidir com segurança, previsibilidade, justiça e coerência, que saibam gerir sua equipe e atender às pessoas.

Agora, ao já extenso edital da magistratura, o qual já exige um esforço excepcional do candidato, na 93ª Sessão Virtual do CNJ decidiu-se acrescentar novas matérias: Direito Digital e Pragmatismo, Análise Econômica do Direito e Economia Comportamental e a Agenda 2030, incluindo subtemas como Quarta Revolução Industrial, jurimetria, blockchain, antifundacionalismo, demandas frívolas, compliance e heurística e vieses cognitivos.

Um dos temas que agora nossos futuros colegas precisarão estudar é o da inteligência artificial (IA). Mas a que nível? Saber o que é ou saber tornar uma vara, sem orçamento, aplicadora de IA aos processos? Ou será que a questão será filosófica, como talvez relacionar a aplicação da IA ao "conceito habermasiano de equiprimordialidade ou cooriginalidade"?

A questão não é a importância das matérias, mas, sim, a indagação se elas são necessárias no concurso de ingresso, vez que podem ser ministradas nos cursos de formação e aperfeiçoamento. O crescimento exponencial das disciplinas afasta do interesse e da aprovação as pessoas normais, de carne e osso, e seleciona cada vez mais pessoas voltadas a decorar textos e notas de rodapé sem qualquer aplicação prática na função que vai exercer. A observação da prática mostra que em regra os gênios e os "seres de biblioteca" não são lá muito sociáveis, possuindo distanciamento do cotidiano, que auxilia na abstração necessária para tais desafios. Entretanto, o que precisamos, só para dar um exemplo, é o que pode ajudar na hora de fazer audiência, ou de administrar servidores desanimados e insatisfeitos a partir de anos sem qualquer reajuste, feridos com a reforma da Previdência e amedrontados com a reforma administrativa.

Respeitosamente, discordamos da bem-intencionada inovação. Na verdade, se fosse para entrar alguma matéria, outra deveria sair ou ser reduzida, sob pena de querermos não pessoas bem preparadas, mas heróis intelectuais (os quais, em regra, se isolam do cotidiano). Não podemos ter apenas quem pode estudar programa tão extenso, pois serão ou titãs intelectuais ou pessoas ricas, que podem estudar vários anos sem trabalhar. Programas exagerados afastam as pessoas normais, os que têm família a cuidar ou sustentar, os que trabalham e por aí vai, e, especialmente, não selecionam as habilidades que serão necessárias àquele magistrado para resolver os problemas do dia a dia da comunidade.

Programas destemperados, entre outros danos, passam a diminuir as chances de ascensão social e o acesso dos menos favorecidos aos cargos públicos. Certamente o CNJ se preocupa com o acesso democrático aos cargos de juiz, e programas extensos demais são outra barreira a atingir mais os pobres do que os ricos.

Uma coisa é exigir pessoas bem preparadas; outra, bem diferente, é exigir saber enciclopédico cujo uso será nanoaproveitado. Se fossem matérias essenciais, seria uma contingência, mas não é o caso aqui. Alguns dos temas interessam aos gestores do Judiciário, mas não ao juiz que irá parar em alguma distante comarca onde sequer terá meios materiais e humanos para o trabalho cotidiano.

A rigor, pela nossa experiência, se fosse para entrar alguma matéria, seria a administração e gestão de pessoas. Mais difícil que lidar com a inteligência artificial é lidar com a inteligência, ou seu reverso, naturais nos colegas, partes, servidores e povo.

O grande benefício para a carreira não é "aperfeiçoar" o concurso, mas dar aos magistrados algo compatível com o que deles se exige. A cada dia que passa a carreira se torna menos interessante, diminuindo-se as garantias e elastecendo-se os ônus, a começar pelo programa do concurso. Fruto de todo esse cenário, boa parte dos magistrados não escolheria a mesma carreira se voltasse no tempo, e os concursandos de hoje estão fazendo outras escolhas. O número de exonerações vem aumentando e o de aposentadorias só não é maior por conta da perda financeira de quem se aposenta. E essa perda já é um dos exemplos de o quanto a carreira está sendo depauperada.

No início de sua carreira, o juiz é mandado para locais remotos nos quais representará o Estado e tentará levar justiça a um povo carente de tudo. Outras carreiras ganham quase igual, ou mais, sem os mesmos ônus, limitações sociais e profissionais, cobranças, riscos e desgastes. Só a quantidade de relatórios que o CNJ cobra já desanima qualquer pessoa, pois traz gasto de meios (pessoal, energia e tempo) mais em atividades-meio do que na atividade-fim. Isso significa que uma carreira já pouco atrativa, alvo de constantes ataques midiáticos e legislativos, tornará ainda mais complexo o ingresso, de forma que quiçá os melhores já não a queiram. Esse é um fenômeno já ocorrente: ser notário, servidor jurídico do Senado ou da Câmara, procurador de alguns municípios, membro do Ministério Público, e por aí vai, se tornaram carreiras que atraem mais os jovens talentos.

Nossa maior preocupação está no fato de que o juiz concursado vai ter contato cara a cara com a miséria humana, tanto material quanto moral, e o que se espera desse profissional é que saiba lidar com ela. Embora importantes, tais inovações não são essenciais para o início da carreira, já que o magistrado julgará os produtos dessa carestia: os crimes, a guarda de crianças, improbidade, conflitos entre vizinhos… Em suma, a vida, a liberdade, a saúde, o patrimônio e a dignidade de pessoas que nesses locais carentes já quase não os têm.

Não é pragmático exigir Direito Digital e Pragmatismo. É exagero exigir Análise Econômica do Direito e Economia Comportamental. Juízes não precisam saber tanto sobre a Quarta Revolução industrial, jurimetria, blockchain, antifundacionalismo, compliance e heurística, e vieses cognitivos. E de que adianta falar de demandas frívolas se os cidadãos as ajuízam? Como lidar com "demandas frívolas" ou já está no Código de Processo Civil (CPC) ou pode ser ensinado após a aprovação, no curso de ingresso à magistratura.

Demandar dos candidatos uma preparação em áreas não tão relevantes consumirá o tempo que deveria ser gasto desenvolvendo outras competências, que é como lidar com os dramas humanos, que é só o que aporta ao Judiciário, mesmo quando se trata de "briga de rico". Pior: boa parte das pessoas não tem tempo para estudar o essencial e mais o que a criatividade na cobrança está propondo.

Saber de blockchain e heurística não teria ajudado o primeiro articulista a resolver a situação de um preso do regime semiaberto, do qual, apenas em uma audiência de justificação em virtude de faltas, tomou conhecimento que se tratava de idoso, doente crônico, que morava num barracão precário há dezenas de quilômetros da unidade prisional, só tinha uma bicicleta e estava cumprindo pena justamente porque tinha sido pego com uma moto cujo proprietário original deveria ter sido Pedro Álvares Cabral e era usada para que se deslocasse na fazenda.

De pouca valia seriam esses conhecimentos para lidar com o caso do pai que entrou com a anulação da certidão de nascimento da filha de 12 anos por descobrir que não era sua a paternidade genética, e que em audiência a filha se desfez em lágrimas repetindo: "Você é meu pai, só você. Eu te amo, pai!".

Temos dúvidas se alguém que sabe tanto quanto se exige hoje terá sensibilidade para chorar com tais dramas. Ou será que preferimos juízes digitais e artificialmente humanos? É no modelo do concurso que começamos a traçar quem irá julgar os brasileiros, e por isso nos opomos ao concurso como está hoje, e mais ainda a como ficará com a implementação da bem-intencionada inovação. Já somos acusados de nos acharmos deuses, não deveríamos cobrar uma quantidade de conhecimento e matérias que só os deuses podem apreender.

De tanta novidade a deslumbrar a mente humana, talvez venhamos a esquecer as lições do passado, como o adágio latino mencionado por Cícero (103 a.C. – 43 a.C.) em sua obra "De Officiis" de que "summum ius, summa injuria", isto é, o máximo do direito é também o máximo da injustiça. A repetição da norma sem uma alma por trás dela é tudo, menos humano.

São milhares de dramas com que o magistrado de primeiro grau, o concursado, deve lidar diariamente olhando no rosto do jurisdicionado. Não são papéis, teses, teorias. O bom juiz repudia a burocracia que a tecnocracia tanto ama. O motivo disso é que para ser juiz é preciso amar as pessoas. Não a humanidade em tese, não a coletividade que paira no éter como um conceito, mas aquela gente que chega à audiência com medo, com raiva, com esperança. Que chega de terno ou de roupa rasgada, de sapato engraxado ou de chinelo gasto. Qual matéria dessas ensina que há jurisdicionados que, sem qualquer desrespeito em vista, chegam de bermudas, ou não têm sapatos?

Essa gente que procura o juiz porque não tem mais a quem procurar, não vai em busca de um acadêmico, um teórico, alguém que lide com vidas como peças de tabuleiro, que se encastele no ar condicionado de um gabinete com outros burocratas e diga: "E agora, vamos regular a vida de quem?". Quem não lida regularmente com pessoas no cotidiano, mas apenas em livros e teses, tende a vê-las com menos sensibilidade.

O magistrado tem de ser prático. Isso não significa que deva ser arbitrário e julgar conforme sua vontade, suas ideologias, e, sim, que ele tem que dar soluções dentro da lei, mas não fora da humanidade. Tem de aprender a lidar com a sua impotência para resolver todos os problemas do mundo, nem tentar fazê-lo por suas decisões.

Espanta que os concursos ainda meçam o candidato como um jogo de trívia, apurando quantas curiosidades jurídicas ele sabe. A doutrina, movida a esse prestígio de claque e ao essencial lucro, gesta ideias como teoria da graxa, síndrome do Piu-Piu no júri, antecipação cibernética, síndrome da mulher de Potifar. Enquanto isso, os processos se acumulam diante de alguns magistrados que sabem tanto que se julgam desconectados dos seus jurídicos patrões, os descalços, os desempregados, os incultos e tantos outros. Selecionamos quem sabe pegadinhas e deixamos passar talentos que poderiam mudar a cara do Judiciário. Vamos acabar selecionando quem sabe sobre as portas secretas e anda nos píncaros dos castelos e deixaremos do lado de fora bons candidatos, em prejuízo dos jurisdicionados.

Enfim, as intenções são as melhores, as matérias são interessantíssimas, mas de tudo o que precisa a carreira, no momento o que menos precisamos é de mais conteúdo nos certames.

Autores

  • é juiz de Direito no TJGO, palestrante e escritor, especialista em Processo Constitucional, em Filosofia e mestrando em Filosofia.

  • é desembargador federal no TRF/2, professor e escritor, mestre em Estado e Cidadania, pós-graduado em Políticas Públicas e Governo, autor de 59 livros.

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