Opinião

Desconsideração da personalidade jurídica da sociedade encerrada irregularmente

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1 de outubro de 2021, 18h08

Na prática forense, não raras vezes, esgotam-se as medidas disponíveis para satisfação forçada do crédito sem que sejam encontrados bens suficientes. Não menos comum é que, em tal circunstância, descubra-se o encerramento irregular das atividades empresariais. Nesse contexto, surge o inarredável questionamento: é possível, em casos tais, a desconsideração da personalidade jurídica?

Este breve escorço tem por finalidade expor as razões pelas quais a reunião das circunstâncias acima referidas constitui abuso de personalidade a autorizar a desconsideração da personalidade jurídica e o consequente atingimento do patrimônio do administrador para a satisfação da dívida.

Historicamente, a desconsideração da personalidade jurídica surgiu como antídoto contra os que se aproveitam da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para se locupletarem em detrimento de terceiros.

Na doutrina, Rubens Requião é apontado como o primeiro jurista brasileiro a sustentar, no final dos anos 1960, a aplicação daquela teoria, de origem anglo-saxônica, mesmo sem previsão legal específica. Posteriormente, o instituto foi aplicado em diversas decisões judiciais até ser consagrado nos diplomas legais, estando, atualmente, previsto no Código de Defesa do Consumidor (CDC) [1], na Lei nº 9.605/1998 (que dispõe sobre atividades lesivas ao meio ambiente) [2], na Lei nº 12.529/2011 (Lei Antitruste) [3] e no Código Civil [4].

O artigo 50 do Código Civil, não se discute, adotou a "teoria maior" da desconsideração da personalidade jurídica, exigindo, para tanto, o abuso da personalidade jurídica e o prejuízo ao credor [5].

O primeiro requisito (o abuso da personalidade jurídica) é gênero de que são espécies a confusão patrimonial o desvio de finalidade (que é, por definição do §1º, "…a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza").

Embora haja vozes que exijam também conduta dolosa do sócio ou administrador, esta conclusão oposta nos parece a mais acertada: o encerramento irregular das atividades e a inexistência de reserva patrimonial suficiente à satisfação do crédito são requisitos cumulativos suficientes para a desconsideração da personalidade jurídica.

A primeira aproximação se dá no plano principiológico.

Com efeito, um dos princípios reitores da codificação privada é a eticidade, cuja inescapável relevância pode ser inferida da consagração, pelo Código Civil, da boa-fé objetiva como princípio que rege os negócios jurídicos em geral.

O princípio da boa-fé objetiva impõe às partes de todo negócio jurídico um padrão ético de conduta objetivamente aferível (por exemplo: o dever de cuidado em relação à outra parte negocial, o dever de respeito, o dever de informação, o dever de agir conforme a confiança depositada, o dever de lealdade e probidade, o dever de colaboração ou cooperação, o dever de agir com honestidade etc.).

Isso posto, é de se ver que, ao empregar a expressão "abuso da personalidade jurídica" no artigo 50 do Código Civil, o legislador se reportou, sem sombra de dúvida, à figura do "abuso de direito" (consagrado no artigo 187) [6], cuja função está fortemente atrelada ao controle da boa-fé objetiva [7].

Cumpre consignar, ainda, que a configuração do ato ilícito decorrente do abuso de direito prescinde da aferição de dolo ou culpa, conforme doutrina representada por Caio Mário da Silva Pereira e por Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery [8][9].

É que, ao se exigir o elemento subjetivo (dolo) para a desconsideração da personalidade jurídica, está-se analisando e aplicando a categoria do abuso da personalidade jurídica como instituto dissociado do horizonte teórico pautado no princípio da eticidade, o que não se pode admitir.

Mas não é a abstração dos princípios que nos leva à conclusão. As regras, mais específicas e concretas, conduzem seguramente ao mesmo destino.

É preciso compreender que o administrador de uma pessoa jurídica é incumbido de funções tanto pela lei quanto pelo contrato social. Entre seus deveres e obrigações, que devem ser cumpridos à risca, estão o de manter atualizadas as informações junto às autoridades (v. artigos 1º, 2º e 32 da Lei nº 8.934/1994) e o de proceder corretamente ao encerramento das atividades (artigos 1.033 a 1.038 e 1.102 a 1.112 do Código Civil), inclusive com atenção ao procedimento estipulado para que se realize o pagamento ordenado dos credores (Lei nº 11.101/2005).

Noutras palavras, não é permitido que a pessoa jurídica deixe de atuar e o administrador simplesmente a abandone, induzindo o Estado e os demais agentes de mercado à falsa percepção de que podem confiar na existência daquela sociedade.

Conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça ao tratar da dissolução irregular de sociedade empresarial, a desobediência a tais ritos — de cumprimento do dever de manter suas informações atualizadas e de encerrar suas atividades devidamente, de acordo com o procedimento estipulado na lei e no contrato social — é infração legal e, portanto, legitima o redirecionamento da execução fiscal para o gestor (v. Súmula 435 do STJ; AgRg no Ag 921.228/PR, relator ministro Luiz Fux, j. 14/10/2008; AgRg no Ag 1.247.879/PR, relator ministro Benedito Gonçalves, j. 18/2/2010) [10].

Acresça-se, por oportuno, que embora o entendimento consagrado na Súmula 435 do STJ tenha nascido do artigo 135 do Código Tributário Nacional (o qual dispõe sobre os "responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias"), o Superior Tribunal de Justiça já afirmou: "Não há como compreender que o mesmo fato jurídico 'dissolução irregular' seja considerado ilícito suficiente ao redirecionamento da execução fiscal de débito tributário e não o seja para a execução fiscal de débito não-tributário. 'Ubi eadem ratio ibi eadem legis dispositio'" (REsp 1.371.128/RS, relator ministro Mauro Campbell Marques, j. 10/9/2014).

De nossa parte, vamos além: assim como não há razão para distinguir, para esses fins, o crédito tributário do não tributário, também não há argumento que justifique restringir ao particular a mesma possibilidade — de responsabilizar o administrador da sociedade irregularmente encerrada concedida ao Estado [11].

No caso, a proclamação legal e inequívoca da responsabilidade do gestor pelos débitos não adimplidos pela sociedade irregularmente encerrada advém do artigo 10 do Decreto nº 3.708/1919 e do artigo 158, II, da Lei nº 6.404/1976, segundo os quais o administrador responde civilmente, solidária e ilimitadamente, pelos prejuízos que causar quando proceder com violação de lei ou estatuto.

Portanto, isoladamente, a insuficiência de recursos para o adimplemento de obrigação ou o encerramento irregular das atividades da pessoa jurídica podem não bastar para a desconsideração da personalidade jurídica. Todavia, o somatório (encerramento irregular das atividades + a insuficiência de recursos) é forte indicativo de abuso da personalidade jurídica e, portanto, legitima a aplicação do artigo 50 do Código Civil para responsabilização do gestor omisso. A propósito, em judicioso parecer, embora tratando de uma relação de consumo, Gustavo Tepedino elencou as diversas razões pelas quais o encerramento irregular das atividades, sem reservas de recursos para pagamento de credores, deve acarretar desconsideração da personalidade jurídica [12].

Em conclusão: formulado requerimento expresso para instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, necessários a citação do administrador para exercício do contraditório e o processamento nos artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil (CPC), sem o qual não se legitima a responsabilização do administrador pela dívida inadimplida pela sociedade [13].

Ao final, se confirmada a infração à lei ou ao contrato social, bem como a responsabilidade do administrador pelo ilícito, deve-se desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade, alcançando-se o patrimônio pessoal do gestor para responder pela obrigação não adimplida (rito similar ao que, em matéria tributária, determinou a 1ª Turma do STJ no AgInt no REsp 1.909.732/SE, relator ministro Benedito Gonçalves, j. 28/6/2021) [14].


[1] "Artigo 28 – O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração".

[2] "Artigo 4º – Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente".

[3] "Artigo 34 – A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. Parágrafo único. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração".

[4] "Artigo 50 – Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso".

[5] STJ-3ª T., AgInt no AgInt no AREsp 1.580.544/RJ, rel. min. Marco Aurélio Bellizze, j. 16/08/2021: "Esta Corte adotou orientação no sentido de que, nas relações jurídicas de natureza civil-empresarial, o legislador pátrio adotou a teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, segundo a qual é exigida a demonstração da ocorrência de algum dos elementos objetivos caracterizadores de abuso da personalidade jurídica, tais como o desvio de finalidade (caracterizado pelo ato intencional dos sócios em fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica) ou a confusão patrimonial (configurada pela inexistência, no campo dos fatos, de separação patrimonial entre o patrimônio da pessoa jurídica e os bens particulares dos sócios ou, ainda, dos haveres de diversas pessoas jurídicas)".

[6] "Artigo 187 – Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".

[7] STJ-4ª T. AgInt no AREsp 1.551.480/DF, rel. Min. Raul Araújo, j. 10/08/2020: "A desconsideração da personalidade jurídica é medida de caráter excepcional que somente pode ser decretada após a análise, no caso concreto, da existência de vícios que configurem abuso de direito, caracterizado por desvio de finalidade ou confusão patrimonial, requisitos que não se presumem em casos de dissolução irregular ou de insolvência. Precedentes" (AgInt no REsp 1.812.292/RO, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 18/05/2020, DJe de 21/05/2020).

[8] Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de direito civil, vol. I. 23. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 578: "O artigo [187 do CC/2002] oferece os extremos da caracterização de direito, assentando que o exercício há de ser limitado. O parâmetro instituído no novo Código está em que o sujeito de um direito subjetivo não o pode exercer em afronta à finalidade econômica ou social dele, ou contrariando o princípio da boa-fé ou os bons costumes. Não importa, na caracterização do uso ilícito do direito a deliberação ode malfazer – animus nocendi. É suficiente determinar que, sem esta indagação extremamente subjetiva, abusa de seu direito aquele que leva o seu exercício ao extremo de convertê-lo em prejuízo para outrem sem vantagem para si mesmo. O propósito de causar dano não requer apuração de intenção íntima do titular. Induz-se o abuso da circunstância de se servir dele o titular, excedendo manifestamente o seu fim econômico ou social, ou atentando contra a boa-fé ou os bons costumes".

[9] Para os autores, "[a] ilicitude do ato cometido com abuso de direito é de natureza objetiva, aferível independentemente de dolo ou culpa" (Código Civil Comentado, 12ª Ed., São Paulo: RT, 2017, pp. 657/658).

[10] Quanto ao ponto, alinhamo-nos ao entendimento segundo o qual o redirecionamento da execução fiscal ao sócio, fundado nos artigos 134 e 135 do CTN, não prescinde da instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica (ver: BUENO, Cassio Scarpinella. Incidente de desconsideração da personalidade jurídica: reflexões à luz do processo tributário. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 28, n. 112, p. 63-90, out./dez. 2020, p. 80).

[11] Não vislumbramos, aqui, discrímen lógico que justifique o tratamento diferenciado em favor do Estado. Se a ilegalidade é a mesma (não realizar o encerramento da sociedade), o efeito (responsabilização do administrador pelos débitos não adimplidos) deve ser o mesmo. Distinguir o efeito jurídico em função do credor é agressiva violação ao princípio constitucional da isonomia.

[12] Gustavo Tepedino. Desconsideração da Personalidade jurídica. In _____. Soluções práticas de direito – pareceres, vol. III. São Paulo, RT, 2012, pp. 113/115: "É possível, no direito brasileiro, satisfazer o credor de sociedade insolvente alcançando, por meio do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, o patrimônio pessoal dos sócios ou administradores. A disregard doctrine, incorporada ao direito positivo brasileiro nos artigos 28 do CDC e 50 do CC/2002, vem sendo largamente aplicada pelos nossos tribunais, e desde antes do Código de Defesa do Consumidor, como forma de coibir o abuso do direito ou a fraude perpetrados pelo sócio ou administrador da sociedade.
As condutas do sócio, diretor e liquidante de Z, W, e da sócia J configuram abuso do direito ensejador da desconsideração da personalidade jurídica. Do ponto de vista técnico, caracteriza-se no caso concreto o abuso, conspícuo e reiterado, em dois momentos. (…) Em um segundo momento, (…), desviando-se, mais uma vez, da finalidade axiológico-normativa desta função fiduciária, recusou-se a reservar fundos para o pagamento da dívida do credor, Y. (…)
O artigo 28, caput, do CDC estabelece modalidade típica e objetiva de desconsideração da personalidade jurídica, fundada não no abuso do direito, mas no simples encerramento das atividades da sociedade por má administração, assim entendida a administração incompetente, desastrada, e não necessariamente abusiva ou maliciosa. (….)
Sem embargo de já ser a desconsideração aplicável opor cada um dos fundamentos acima expostos, aplica-se também ao caso em questão o artigo 28, § 5º, do CDC. O referido dispositivo, como já decidido pelo STJ, tem aplicação autônoma com relação às hipóteses de abuso ou ato ilícito, e impõe a desconsideração sempre que a pessoa jurídica for obstáculo à reparação de danos ao consumidor".

[13] Também nesse ponto, indicamos a leitura do já referido artigo de Cassio Scarpinella Bueno, Incidente de desconsideração da personalidade jurídica: reflexões à luz do processo tributário, publicado na Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 28, n. 112, p. 63-90, out./dez. 2020.

[14] "O inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente' (Súmula 430 do STJ); porém, na hipótese em que a sociedade empresária devedora não for localizada em seu domicílio fiscal, a parte exequente, por presunção de sua extinção irregular, pode pedir o redirecionamento do processo executivo para o sócio, conforme entendimento jurisprudencial enunciado pela Súmula 435 do STJ. Após o redirecionamento, acaso a situação da dissolução irregular seja comprovada, está configura violação à lei e autorizada a responsabilização do sócio, conforme previsão do artigo 135 do CTN. Precedentes".

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