Opinião

Segurança jurídica e isonomia em face de um precedente obsoleto: o que prevalece?

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29 de novembro de 2021, 21h11

1) Introdução
 uso dos chamados precedentes no meio jurídico vem sendo adotado com uma maior frequência. Com a característica de facilitar os julgamentos e, da mesma maneira, obter um julgamento com simetria, isonomia e segurança jurídica, auxiliando, também, na identificação pelo julgador de quais fundamentos adotar, assim como proporcionando parâmetros de decisão às partes do processo, é mais um instituto auxiliar nos âmbitos processual e material.

Neste estudo, far-se-á uma análise primeiro dos parâmetros que norteiam os precedentes, explicando conceitos-chave acerca do nosso ordenamento jurídico. Posteriormente, será abordada a questão da eficácia e vinculação dos precedentes e, por fim, uma análise da questão da segurança jurídica e um precedente obsoleto, estudando a ponderação entre esses dois pontos.

2) Parâmetros acerca dos precedentes no ordenamento jurídico brasileiro
Em conexão com outros conceitos, como definir o que é um precedente? Pode-se dizer que os precedentes são primos de outros institutos processuais, como a decisão, a jurisprudência e a súmula, porém há particularidades intrínsecas a cada um deles.

Quanto à decisão judicial, essa, de maneira genérica e superficial, se trata da decisão proferida pelo Poder Judiciário dentro de um processo judicial e atestando essa característica genérica do que seria decisão judicial, pode-se afirmar que todo precedente é uma decisão judicial, o que não significa que toda decisão judicial é um precedente. Já sobre jurisprudência, entende-se como o conjunto de decisões proferidas por um tribunal sobre a mesma matéria, o que não pode ser confundido com a ideia pura de julgados. Nesse sentido, conforme lições de Taruffo [1], "a jurisprudência é formada por um conjunto de sentenças, ou melhor, por um conjunto de subconjuntos ou grupos de sentenças, cada um dos quais pode incluir uma elevada quantidade de decisões".

Sobre o que seria uma súmula, essa, de maneira geral, pode ser conceituada como "a representação formal da jurisprudência pacífica" [2] e por jurisprudência pacificada se entende que, mesmo havendo decisões contrárias ao que se considera por pacífico, tais decisões são irrelevantes ou reconhecidamente inaplicáveis ao momento atual. Dessa forma, quando um entendimento é sumulado, compreende-se que já há um posicionamento firmado naquele sentido e a súmula o reconhece de maneira formalizada.

Isso posto, o que seria um precedente? A primeira diferença a ser frisada entre os conceitos tratados é que o precedente é visto de uma maneira qualitativa e não quantitativa, como é o caso da jurisprudência. Um exemplo dessa predominância qualitativa está no inciso I do artigo 927 do CPC/2015, o qual dispõe que decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado de constitucionalidade, sendo assim, não há necessidade de que numerosas decisões sejam proferidas no mesmo sentido, sendo identificado o dever de criação de um precedente, ele assim o será feito. Havendo o reconhecimento do tribunal de que existe um melhor direcionamento a ser seguido naquela situação, fundamentadamente, haverá a formulação do precedente para que seja aplicado em casos similares.

O precedente tem em sua definição dois elementos. O primeiro deles é a chamada ratio decidendi e o denominado dictium. A ratio decidenci seria a razão jurídica para a tomada daquela decisão, o fundamento legal. Já o dictium seriam as outros fundamentos, que, em conjunto com a lei, levam a tomada de uma decisão e à formulação do precedente.

Quanto à função do precedente, tem-se um primeiro argumento que é quanto a conformidade nas decisões. Não poucas vezes, juízes, por suas diferentes percepções morais, têm visões diferentes na interpretação e aplicação de uma regra e decisões judiciais são tomadas de maneira distinta mesmo com uma matéria de direito similar, afetando, portanto, a segurança jurídica e causando instabilidade no Judiciário. O precedente visa a alinhar essas decisões que podem seguir no mesmo caminho, o que proporciona uma maior confiança dos jurisdicionados, na mesma medida em que eleva a credibilidade do Judiciário. Além de que, não pode se tolerar que o vetor sorte do jurisdicionado na distribuição do processo seja o definidor do reconhecimento do seu direito ou não.

Mais um ponto positivo da adoção dos precedentes é quanto ao tempo de duração do processo. Com a aplicação dos precedentes tanto o tempo de espera do cidadão diminui, fazendo com que ele possa exercer com mais celeridade seu direito, tanto a eficiência do Judiciário aumenta quanto, como consequência, outros litígios também serão julgados com mais brevidade, garantindo-se, assim, a razoável duração do processo.

Deve haver um mínimo de coerência e uniformidade de todas as decisões judiciais. Diferenças de pensamento e valores sempre irão existir nos humanos que ocupam a função de julgar, diferenças essas que acontecem numa mesma comarca, porém, o consenso, baseado em todos os princípios do ordenamento jurídico, deve orientar num mesmo trilhar na garantia de direitos [3].

3) Eficácia e vinculação dos precedentes
Sendo o Direito pátrio primordialmente escrito, o CPC previu, em seu artigo 926, a indispensabilidade dos tribunais uniformizarem a jurisprudência na finalidade de mantê-la coerente e íntegra. Logo em seguida, em seu artigo 927, enumerou um rol de precedentes. Pela razão de estarem previstos em lei, a doutrina considera que esses precedentes devem ser tidos como vinculantes, ou seja, de observância obrigatória, sendo equivalentes à força de uma lei, norma cogente, sendo considerado uma fonte do Direito.

Nessa medida, outros precedentes que estejam fora desse rol do artigo 927 serão considerados como precedentes persuasivos, o que quer dizer que eles serão importantes como parâmetro para um julgador, pois servem como um "reforço argumentativo" [4], mas esse não terá a obrigatoriedade de seguir caso entenda de maneira diversa. Sendo assim, "as demais decisões judiciais não passam de precedentes com eficácia meramente persuasiva, despidos, portanto, de força normativa" [5].

Quanto à vinculação dos precedentes, é de se destacar o que orienta Taffuro [6] quando diz que não se deve ver de maneira pragmática a adoção dos precedentes no common law como necessariamente vinculantes. Existem vias possíveis que os juízes podem seguir para a não aplicação, na pretensão de uma resolução mais adequada àquele conflito. Entre essas vias, as quais também são aplicadas na esfera brasileira, pode-se citar duas em especial: distinguishing e overruling.

O distinguishing trata-se de uma técnica em que o tribunal irá analisar o caso e fazer a distinção com outro, comparando e pontuando as razões pelas quais não mais é possível se aplicar o precedente. Apontando em como deve haver esse aprimoramento, tendo em vista que da forma anterior já não atinge mais a sua finalidade. A distinção deve ser vista de forma positiva num ordenamento, vai ser através dela que o precedente poderá se moldar à realidade fática exigida do ordenamento e dos anseios sociais.

Outra via é a técnica do overruling, que, traduzindo-se adequadamente para o cenário brasileiro, significa "revogação ou superação de precedente" [7]. Caminha no mesmo sentido de alteração do precedente, porém, diferentemente da técnica de distinção, no overruling há o afastamento da tese anteriormente adotada: "É, portanto, a rejeição da tese jurídica contida no precedente por estar ultrapassada ou equivocada, necessitando ser substituída por novo ou diverso entendimento" [8]. A aplicação dessa técnica poderá acontecer de maneira expressa ou tácita. A forma tácita enfrenta muitas críticas, tendo em vista que abre espaço para um afastamento inadequado, sem os devidos fundamentos e possibilitando um afastamento distorcido por outros intérpretes. É o que assevera Ravi Peixoto quando afirma que todo afastamento de um precedente deve ser expressamente justificado [9].

Quanto à superação implícita, ainda que não seja a forma mais adequada, poderá existir e deve-se atentar para que não haja confusão com outra técnica chamada transformation ou stealth overruling. Nessa técnica também não há uma manifestação expressa do tribunal, mas difere no ponto em que se tenta adequar o precedente de uma nova forma, sem que haja a formulação de um novo precedente, como ocorre no overruling. Na transformation tenta-se compatibilizar a nova realidade ao precedente sem que haja o estabelecimento de um novo, justificando-se pela ideia de que seria algo a ainda ser maturado. Essa técnica seria considerada ainda mais prejudicial do que a manifestação implícita do overruling, pois daria espaço para uma discricionariedade incabível [10].

Dessa forma, impende-se que haja sabedoria dos julgadores para que, diante de situações como essa, possam atuar de maneira adequada na manutenção do equilíbrio.

4) A ponderação entre os princípios da isonomia e da segurança jurídica em face de um precedente ultrapassado
É fundamental saber também que, assim como as leis sofrem mudanças e mutação ao longo do tempo, os precedentes também devem passar por mudanças para se amoldarem à nova visão do Direito. Ocorre que o precedente pode ser um auxiliar também na interpretação de um texto legal, dispensando a alteração formal e trazendo um novo sentido àquela norma, tendo em vista que o processo de alteração de uma norma não é algo tão simples, ainda mais se se tratar de uma norma com status constitucional.

Sendo assim, entende-se que uma ponderação é o termo mais adequado a se fazer. O precedente surge como fator auxiliador do ordenamento jurídico. É possível perceber ainda que, mesmo no common law, há a necessidade de características do civil law e vice-versa. Um ordenamento que adota um posicionamento de maneira absoluta, rígida, sem espaço para ponderações, corre sérios riscos de algo dar errado.

Da mesma maneira, deve ser vista positivamente a adoção de precedentes no Brasil, fazendo-se o estudo adequado na utilização correta desse instrumento. Diante do cenário em que a Constituição ampliou o acesso à justiça na solução de conflitos, prevendo o direito de ação, bem como órgãos como a Defensoria Pública e Ministério Público nessa toada, também deve-se garantir a continuidade e efetividade desse direito. Não basta o direito de ingressar, mas está diretamente ligado a ele o direito de obter uma resolução e os precedentes atuam contribuindo nesse caminho. Bem posicionado é o pensamento de Didier quando diz que "com a universalização e a democratização do acesso à justiça, a partir da Constituição Federal de 1988, houve explosão de litigiosidade, antes reprimida pelo regime ditatorial, com a consequente judicialização maciça dos conflitos. Para assegurar maior racionalidade e efetividade ao sistema processual, bem como ampliar os níveis de confiança e segurança jurídicas, a adoção de um sistema de precedentes surge como uma importante alternativa" [11].

Assim, diante de situações complexas em que se analisa a mudança de um precedente, o qual corre o risco de gerar instabilidade nas decisões judiciárias e afetar a segurança jurídica, deve-se ponderar o caso e modular os efeitos, pois a sociedade está e constante mudança e é necessário que o Estado acompanhe esse contínuo processo.

5) Conclusão
Por meio desta breve análise do tema envolvendo precedentes, é possível constatar a sua relevância para o ordenamento jurídico e a amplitude do tema. Muitos desdobramentos surgem e, sem dúvidas, a experiência no tempo demonstra como as adequações devem ser tomadas.

Portanto, o Judiciário deve estar preparado em sua estrutura no atendimento a essas demandas, pois o tempo pode fazer com que um direito legítimo deixe de existir ou uma decisão judicial tardia já não consiga mais ter a eficácia na garantia desse direito. Mecanismos como esse, que auxiliam na eficiência de resolução de causas, são imprescindíveis. O pêndulo dos riscos e benefícios deve se manter em equilíbrio na busca de uma melhor performance judicial e da concretude de direitos a favor da sociedade.

 

Referências bibliográficas
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[1] TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência. Trad. Chiara de Teffé. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 3, n. 2, jul.-dez./2014. Disponível em: <http://civilistica.com/precedente-ejurisprudencia/>. Acesso em: 5 de janeiro de 2021. p. 5.

[2] MOTA, Marlton Fontes; TAVARES, Thiago Passos. A jurisprudência, o precedente judicial e o incidente de demandas repetitivas no novo processo civil brasileiro. Disponível em: http://www.esasergipe.org.br/wp-content/uploads/2016/12/A-JURISPRUD%C3%8ANCIA-O-PRECEDENTE-JUDICIAL-E-O-INCIDENTE.pdf. Acesso em 15 de janeiro de 2021.

[3] MORETO, Mariana Capela Lombardi. O precedente judicial no sistema processual brasileiro. Disponível em: <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2137/tde-15052013-162737/pt-br.php>. Acesso em: 5 de janeiro de 2021. p. 40-41.

[4] GALIO, Morgana Henicka. Overruling: a superação do precedente. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/167893/340339.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 20 de janeiro de 2021. p. 173.

[5] PASCHOAL, Gustavo Henrique; ANDREOTTI, Paulo Antonio Brizzi. Considerações sobre o sistema de precedentes judiciais no novo código de processo civil. Disponível em: http://ojs.toledo.br/index.php/direito/article/view/3064/373. Acesso em: 18 de novembro de 2020. p. 49.

[6] TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência. Trad. Chiara de Teffé. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 3, n. 2, jul.-dez./2014. Disponível em: <http://civilistica.com/precedente-ejurisprudencia/>. Acesso em: 5 de janeiro de 2021.

[7] Idem, p. 174.

[8] Idem; p. 174.

[9] PEIXOTO, Ravi. A superação de precedentes (overruling) no código de processo civil de 2015. In: Revista de Processo Comparado, n.3. São Paulo: RT, 2016. p. 4.

[10] Idem, p. 5.

[11] DIDIER JR, Fredie (et. al.). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 337.

Autores

  • é mestranda em Direito Público pelo programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e pós-graduada em Direito Constitucional e em Direito Processual Penal pela Faculdade Damásio.

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