Opinião

Diálogo competitivo: nova modalidade de licitação da Lei 14.133/2021

Autor

  • Diogo Lima

    é auditor federal de Controle Externo do Tribunal de Contas da União assessor de ministro do TCU e ex-chefe de gabinete de ministro do TCU.

28 de novembro de 2021, 9h13

1) Introdução
A Lei 14.133, de 1º de abril deste ano, representa importante marco no Direito Administrativo brasileiro, ao consolidar os três mais importantes diplomas vigentes sobre licitações e contratos administrativos: a Lei 8.666/1993 (Lei de Licitações e Contratos), a Lei 10.520/2002 (Lei do Pregão) e a Lei 12.462/2013 (Lei do RDC).

Ao lado do incremento à eficiência, a intenção normativa de aproximar as contratações públicas do dinamismo e flexibilidade próprios da esfera privada é outra conclusão imediata das diretrizes da nova Lei de Licitações. Importante instrumento jurídico nesse sentido é a nova modalidade licitatória: diálogo competitivo.

O objetivo de selecionar a proposta mais vantajosa, expresso na Lei 8.666/1993 (artigo 3º), ganha novos contornos na Lei 14.133/2021, que expressamente busca "assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto" (artigo 11, inciso I).

Nessa perspectiva é que se insere o diálogo competitivo.

2) Aspectos gerais sobre uma Administração Pública consensual e dialógica
A doutrina de Direito Público moderna debate de forma intensa a necessidade de uma Administração Pública mais consensual, dialógica, que se afaste de concepções unilaterais e impositivas que marcaram a administração burocrática.

Por meio de uma atuação dialógica, a Administração atende a diretrizes importantes do Estado democrático de Direito e se aproxima de uma legítima realização do interesse público, que abrange o interesse da Administração sem a ele limitar-se. Dantas (2020, p. 13) [1] explica que "o interesse público é bem mais amplo que o mero interesse da Administração ou da Fazenda Pública, bem como que o princípio da eficiência pode admitir a transação em preferência à solução unilateral".

A expansão do consensualismo permite à Administração Pública atuar com maior flexibilidade e, assim, solucionar controvérsias atípicas, que não encontram na prática usual ou no conjunto normativo positivado respostas perfeitas e imediatas. Ou, ainda, reduzir substancialmente o tempo e os recursos demandados no processo de litígio.

As lições modernas do Direito Administrativo indicam ampla possibilidade de consensualismo na resolução de conflitos que envolvem o poder público, mas é necessário perceber que instrumentos de mesmo jaez, essencialmente dialógicos, teriam importante potencial na construção de alternativas para otimizar a própria gestão pública, inclusive no que diz respeito às contratações estatais.

Nesse cenário deve ser compreendida e aplicada a nova modalidade licitatória introduzida pela Lei 14.133/2021: o diálogo competitivo, que materializa a atuação negocial e dialógica da Administração em um processo licitatório.

3) Diálogo competitivo: origens
A modalidade licitatória inaugurada pela nova Lei de Licitações e Contratos tem origem no Direito europeu. O diálogo competitivo, em contornos bastante similares àqueles adotados pela norma brasileira, tem previsão na Diretiva 2014/24/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de fevereiro de 2014 e é denominada no ordenamento jurídico de Portugal de diálogo concorrencial.

Esclarece Lima de Oliveira (2021, p.5) que "a previsão do diálogo competitivo veio para legitimar uma postura já adotada por alguns países membros da União Europeia no bojo de outra modalidade de licitação usual no velho mundo, o procedimento por negociação" [2].

4) Diálogo competitivo: conceito e objeto
O diálogo competitivo é destacado pela doutrina administrativista como uma das principais inovações da Lei 14.133/2021. Consubstancia nova modalidade licitatória, estabelecida pelo artigo 28, inciso V, daquela lei.

A legislação brasileira reproduziu, essencialmente, regras da Diretiva 2014/24/EU e, nos termos do artigo 32 da nova Lei de Licitações e Contratos, o diálogo competitivo é restrito a duas hipóteses gerais, que podem, em um esforço de síntese, ser assim classificadas: 1) objetos determináveis, mas de especificidades incertas; 2) necessidades da Administração definidas, mas objeto indeterminado ou indeterminável pela unidade contratante.

A primeira classificação diz respeito à dicção do inciso I do artigo 32 da Lei 14.133/2021 e nessa possibilidade de diálogo competitivo o objeto a ser contratado, apesar de determinável em seus contornos gerais, possui especificidades importantes que dificultam sua precisa identificação para fins de licitação. Tais particularidades podem estar relacionadas à inovação tecnológica ou técnica, à necessidade de adaptação de soluções disponíveis no mercado ou à impossibilidade de definição adequada e suficiente.

Em se tratando de inovação tecnológica ou técnica, ou mesmo quando o objeto exigir adaptação de soluções disponíveis no mercado ou não permitir uma definição de seus principais caracteres constitutivos, o diálogo competitivo exsurge como modalidade licitatória capaz de, a partir de discussões com possíveis interessados, preencher as principais lacunas e permitir um processo concorrencial completo, com balizas suficientes para a seleção objetiva do contratado.

O inciso II do artigo 32, por sua vez, diz respeito às situações em que a Administração, apesar de delinear suas necessidades, busca no setor privado a identificação e a definição de alternativas mais vantajosas para satisfazê-las. As referidas hipóteses legais remetem a contratações que envolvam complexidade técnica, jurídica ou financeira relevante, a ponto de exigir expertise de que a Administração Pública não disponha.

É também possível conceber que o diálogo competitivo, para contratações de tamanha complexidade, permite à Administração capturar no mercado privado soluções ótimas, resultado de interações com especialistas privados e potenciais fornecedores que apresentem vantagens não vislumbradas pelo poder público a partir de estudos que compõem a fase interna em um processo ordinário de contratação.

Na sequência, serão detalhadas as principais etapas do diálogo competitivo.

5) Etapas do diálogo competitivo
5.1) 
Pré-seleção
O diálogo competitivo inicia a fase externa com a publicação de um edital de pré-seleção dos possíveis licitantes. Esse primeiro termo convocatório tem dois objetivos principais: apresentar as necessidades da Administração e fixar as exigências para habilitação dos possíveis interessados.

Vale relembrar que, nesse momento do processo, a unidade licitante não possui, ainda, a definição completa do objeto que irá licitar. Há questões relevantes não elucidadas, relacionadas à própria escolha da melhor solução, à necessidade de adaptação de alternativas do mercado, à especificidade do objeto que envolve inovação técnica ou tecnológica, à dificuldade de definição das especificações e/ou requisitos técnicos ou ainda à estrutura jurídica e financeira do contrato a ser firmado. 

Essa fase também marca, ao menos em parte, a habilitação dos concorrentes que, preenchendo os requisitos objetivos fixados no edital, serão admitidos para a próxima etapa do diálogo competitivo.

Além disso, a inversão entre fases de habilitação e julgamento, consagrada pela Lei do Pregão, mantida pela Lei do RDC e prevista na nova Lei de Licitações e Contratos, é aqui excepcionada, ao menos em parte, na modalidade diálogo competitivo.

Isso porque os requisitos de pré-seleção, destinados a reduzir o universo de competidores apenas àqueles aptos a atender às necessidades postas pela Administração, realizam verdadeira habilitação técnica. Eventualmente, é legítimo que até mesmo adentrem a parâmetros jurídicos e econômico-financeiros.

De outra forma, segundo a Lei 14.133/2021, todos os candidatos que atenderem aos critérios de pré-seleção restarão habilitados. E não é possível conceber que referida regra seja mitigada por edital ou mesmo pelo decreto que deve regulamentar a lei, haja vista que a limitação do número de competidores exigiria observância ao princípio da legalidade estrita.

Terminada a fase de pré-seleção, com a consequente habilitação técnica de todos os candidatos que preencherem as exigências, passa-se à fase que consubstancia a verdadeira inovação da modalidade licitatória: os diálogos.

5.2) Diálogos
Os diálogos entre a Administração Pública e os licitantes pré-selecionados representam a essência e o caráter distintivo dessa modalidade licitatória. Aqui, a partir da cooperação da iniciativa privada, em diálogos diretos com a comissão que representa a unidade licitante, a solução a ser licitada, as especificações do objeto, a conformação jurídico-financeira da minuta de contrato serão delineadas.

Embora não haja previsão expressa, é possível depreender das disposições legais que o diálogo entre o licitante pré-selecionado e a Administração será individual e, até o fim dessa fase, reservado. Isso porque o sigilo das soluções técnicas é garantia conferida ao particular e, como previsto no inciso IV do §1º do artigo 32, "a Administração não poderá revelar a outros licitantes as soluções propostas ou as informações sigilosas comunicadas por um licitante sem o seu consentimento".

Essa segunda fase do certame encerra-se com a eleição da solução ou das soluções, devendo a Administração, após registrar no processo as negociações conduzidas, divulgar o edital de convocação de todos os licitantes previamente selecionados para a fase competitiva.

5.3) Fase competitiva
Novo edital é publicado pela unidade licitante para iniciar a fase competitiva. Nessa, agora com o objeto suficientemente definido, os licitantes pré-selecionados apresentarão propostas e concorrerão pelo contrato. Reitere-se, portanto, que a fase concorrencial ocorre apenas entre os interessados pré-selecionados.

Um elemento a se considerar é que a Lei 14.133/2021 não estabeleceu regras para exclusão de licitantes que, embora previamente selecionados, não tenham participado de forma ativa da fase de diálogos, cooperando para a definição da solução.

De toda forma, ofenderia à finalidade precípua do diálogo competitivo a participação na fase concorrencial de particular que, apesar de pré-selecionado, em nada cooperou com a construção do objeto a ser licitado. Esse último é o fim principal da modalidade licitatória e é possível sustentar que a legitimação para figurar entre os concorrentes passa não apenas pelo atendimento aos critérios de seleção iniciais, mas também pela postura ativa e produtiva na construção da solução que atende aos interesses da Administração.

O edital da fase competitiva é resultado de todo o processo de diálogo transcorrido. Nele, portanto, estará indicada a especificação da solução ou das soluções aptas a atender às necessidades da Administração.

Também devem constar do edital da fase competitiva os critérios objetivos a serem utilizados para seleção da proposta mais vantajosa. De acordo com o inciso X do §1º do artigo 32, a Administração definirá a proposta vencedora de acordo com critérios divulgados no início da fase competitiva, mas o texto legal não fixa qual dentre os critérios de julgamento do artigo 33 da lei deve ser escolhido.

Nesse trabalho defende-se que há certa discricionariedade do gestor público para definição do critério de julgamento, com fundamento no inciso X do §1º do artigo 32 da Lei 14.133/2021, que estabelece que a Administração definirá a proposta vencedora de acordo com critérios divulgados no início da fase competitiva. Além disso, tal discricionariedade é necessidade prática que se impõe, pois, a depender da natureza da contratação e do objeto licitado, critérios de julgamento de caráter apenas financeiro ou que contemplem técnica e preço podem ser os mais adequados.

Por fim, selecionada a proposta mais vantajosa com base nos critérios definidos no edital que inaugura a etapa competitiva, cabe à comissão de contratação encaminhar os autos para a autoridade competente, a fim de que ela adjudique e homologue a licitação, nos termos do artigo 71, IV, da Lei 14.133/2021.

6) Conclusão
A eficiência, enquanto princípio constitucional, exige da Administração Pública uma atuação cada vez mais alinhada com os anseios e necessidades da sociedade. Incabível considerar legítima, nos tempos atuais, uma atuação pública focada em si mesma, que não entregue à sociedade bens e serviços úteis e de qualidade, a realizar, quando muito, o interesse da própria Administração, e não o interesse público que lhe deve sobrelevar.

O diálogo competitivo, instituto jurídico em grande parte importado do Direito europeu, é modalidade licitatória inaugurada pelo novo marco de licitações e contratos com o objetivo nítido de conferir maior eficiência e flexibilidade às contratações públicas de objetos complexos.

Há de se reconhecer que o diálogo competitivo é instrumento jurídico permeado de desafios para aplicação. O potencial de concretização da eficiência estatal e da maximização de resultados que ele detém está acompanhado por ineditismo e entraves burocráticos históricos a lhe retirar atratividade. A despeito disso, certamente é ferramenta importante e que merece ser considerada na contração de objetos complexos, sobretudo pela capacidade de induzir maior assertividade e eficiência nas licitações públicas.

 

Referências bibliográficas
DANTAS, Bruno. Revista Jurídica da Presidência. Brasília. v. 22 nº 127 Jun./Set. 2020 p. 261-280.

LIMA DE OLIVEIRA, Rafael Sérgio. O diálogo competitivo brasileiro. Fórum de Contratação e Gestão Pública — FCGP, Belo Horizonte, ano 20, nº 232, p. 67-106, abril 2021.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do direito administrativo pós-moderno: legitimidade: finalidade: eficiência. Belo Horizonte: Fórum, 2008.

 


[1] DANTAS, Bruno. Revista Jurídica da Presidência. Brasília. v. 22 nº 127 Jun./Set. 2020 p. 261-280.

[2] LIMA DE OLIVEIRA, Rafael Sérgio. O diálogo competitivo brasileiro. Fórum de Contratação e Gestão Pública  FCGP, Belo Horizonte, ano 20, nº 232, p. 67-106, abril 2021. Pág. 5.

Autores

  • é auditor federal de Controle Externo do Tribunal de Contas da União, assessor de ministro do TCU e ex-chefe de gabinete de ministro do TCU.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!