Garantias do Consumo

Metaverso e vulnerabilidade digital

Autor

  • Guilherme Mucelin

    é doutor e mestre em Direito pela UFRGS especialista em Direito do Consumidor pela Universidade de Coimbra e em Direito Comparado dos Contratos e do Consumo pela Université de Savoie Mont Blanc pós-doutorando em Direito pela UFF e em New Technologies Law and Social Sciences pela Università "Mediterranea" di Reggio Calabria professor e assessor no Comitê Estratégio de Proteção de Dados Pessoais do MPRJ e diretor de ecommerce e plataformização do Brasilcon.

24 de novembro de 2021, 8h00

Vive-se, contemporaneamente, uma quarta revolução: não só aquela ligada às novas tecnologias, aos potenciais mercadológicos e industriais disruptivos e à economia em geral — que já não são mais novidade —, mas, especialmente, uma que retrata nosso entendimento enquanto pessoa ambientada nesse novo mundo que se forma. Comecemos pelo último.

Desde o surgimento da internet, mais utilizada como ferramenta para comunicação, o seu conceito e suas finalidades evoluíram. Ciberespaço ganhou cor e forma, posto que colonizamos o ambiente virtual, notadamente com nossas conexões e redes sociais, trabalho, relacionamentos afetivos, consumo, exercícios etc. — para qualquer coisa, haverá um app disposto a te ajudar em cada tarefa diária, do amanhecer ao monitoramento do sono… Claro, pagando um pequeno preço ou, se "gratuito", fornecendo uma imensa gama de dados de diversas naturezas que será utilizada para as mais variadas finalidades (e que nem sempre são especificadas).

Mas, hoje, apesar de improvável, ainda temos a opção de estar fora do ciberespaço, mesmo que seja difícil conceber uma vida totalmente deslogada — a pandemia, nesse sentido, catalisou processos da transformação digital —, já que estar online é condição, nos lembrou o Supremo Tribunal Federal no famoso caso do IBGE, para a completa fruição da vida em sociedade e para o gozo de direitos fundamentais.

E isso, afirma Hoffman-Riem [1], dá causa ao entrelaçamento entre as áreas online e offline, em que as tecnologias penetram no espaço físico da sociedade. O autor traz como exemplo a internet das coisas, em que haverá a conexão e comunicação digitalizada de tudo e de todos, demarcando a onipresença do digital. Podemos perceber que o digital, aqui, se espalha pela sociedade.

Caminho de sentido inverso também pode ser percebido: a sociedade se espalha (ou se espelha) pelo digital. O metaverso (e congêneres) é um bom exemplo: com experiências imersíveis, realidade aumentada, realidade virtual, hologramas e o que mais vier, a sociedade, de certa forma, completará sua migração fundamentalmente para o ambiente digital. É uma via de mão dupla: a sociedade se digitaliza e o digital se socializa, até que o ambiente simbiótico [2] (fusão do analógico e digital) esteja totalmente integrado.

Tudo isso, agregado à progressiva invisibilidade de interfaces tecnológicas, faz que as fronteiras entre o aqui (analógico) e o (digital), entre o corpo (carbono) e o perfil individual (bits), se esmaeçam (não é justamente essa uma das propostas do metaverso?) até estarem fadadas ao desaparecimento, pelo menos em termos de efeitos, inclusive jurídicos, nas esferas individuais.

Isso significa, como nos ensina Floridi [3], que as tecnologias de comunicação e de informação moldam nossa visão de mundo e tornam nossas experiências informacionais, de modo que passamos a "viver" na infosfera, a qual "denota todo o ambiente informativo constituído por todas as entidades informacionais, suas propriedades, interações, processos e relações mútuas (…) e que também inclui espaços informacionais offline e analógicos".

Falar em infosfera é falar em realidade interpretada em termos informacionais, posto que se equivalem — afinal, este texto, as suas ações na internet e no smartphone, os softwares e apps… Não são todos códigos computacionais? O que é real é informacional e o que é informacional é real, nos ensina Floridi, e todos nós nos tornamos read/write e nossas ações/decisões lembram mais um "executar" de um programa de computador. Não veremos mais o mundo pela tela, mas faremos parte dessa tela e deslogar será mais uma punição que uma opção (exemplo atual são as decisões automatizadas que excluem um consumidor/prestador de serviços de determinada plataforma).

A visão externa do mundo, ou nosso entendimento sobre ele, quando muda, também tem a potencialidade de mudar nossas concepções internas, modificando a consciência de quem somos — e aqui entram as três revoluções predecessoras à quarta que mencionei no início.

Em um primeiro momento, Copérnico foi o responsável pelo início de uma revolução ao estabelecer a cosmologia heliocêntrica, tirando a Terra do centro do universo e fazendo-nos reconsiderar nossa condição humana (e que rendeu à ciência do Direito, tempos depois, uma verdadeira virada). Contudo, mantivemos a crença de nossa centralidade na Terra. Coube a Darwin a outra (r)evolução: todas as espécies de vida evoluíram a partir de ancestrais comuns por meio da seleção natural, o que nos fez perder o senso de primordialidade do reino biológico.

Na terceira revolução, muito embora não mais estivéssemos no centro do universo ou do reino animal, ainda éramos a espécie no comando de nossos pensamentos, centralizando-nos na percepção de mundo através da mente. Penso, logo existo, famosa frase de Descartes, é interpretada por Floridi [4] como "nosso lugar especial no universo teve que ser identificado não astronômica ou biologicamente, mas mentalmente, com nossa capacidade de autorreflexão consciente, totalmente transparente e com controle de si mesma". Foi Freud que acabou com essa ilusão cartesiana, nos deslocando, mais uma vez, de nossa centralidade.

Então, o que nos tornaria únicos seria a inteligência, a lógica, o processamento de informações. No entanto, essa concepção também é desafiada pelas novas tecnologias, especialmente considerando a inteligência artificial, parte da quarta revolução no entendimento de nós mesmos. Floridi, nesse sentido, sustenta que não somos os únicos que habitam os ambientes informacionais, mas, sim, somos parte de um ecossistema (infosfera) compartilhado com outros agentes informacionais, naturais e artificiais — logo, também não temos centralidade nos ambientes digitais. O que significa, então, sermos humanos?

Não é que nos tornaremos ciborgues ou que a tecnologia se incorporará sob quaisquer condições — apesar de que muitas de nossas "tipicidades" são transferidas para aparatos tecnológicos que, ao mesmo tempo, aumentam nossa dependência em relação a eles. O que está em pauta, em verdade, é que a tecnologia está modificando e criando os ambientes em que vivemos, superando-nos em diversos aspectos (inclusive em termos de inteligência) — não é a transformação, a bem dizer, de nossos corpos físicos, mas a nossa compreensão enquanto organismos informacionais que são afetados por outros agentes que operam no ambiente digital — com consequências jurídicas!

Esse entendimento, podemos cogitar, é um bom start para (re)pensarmos a proteção das pessoas, compreendidas também pelo viés informacional. Em princípio, tudo isso pode parecer abstrato demais e desligado do Direito. Porém não o é… Daqui já se podem retirar inúmeras reflexões: identidade e personalidade, autonomia, crimes, propriedades e, mais geral, a própria noção de um ordenamento privado digital, a configuração de direitos fundamentais nas big techs (não é a infosfera um serviço prestado por privados?) e a possível proliferação da proceduralização do Direito (como no caso da lei alemã das fake news ou de um devido processo informacional [5]).

Uma das intenções do metaverso é que se viva também (ou talvez principalmente) por meio de avatares — a construção do nosso "eu" por meio de dados (pessoais, sensíveis, não pessoais, pessoalizáveis) e metadados captados, fornecidos, cedidos, comprados — possivelmente até mesmo padrões neuronais serão captados, conforme Zuckerberg. Nem precisamos ir tão longe no futuro. Parte desse processo já iniciou e talvez nem tenhamos percebido propriamente: a criação de perfis hiperpersonalizados por decisões automatizadas e técnicas de inteligência artificial já é uma realidade. Inclusive, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais traz em seu artigo 20, sobre perfis, o direito à revisão e, potencialmente, à explicação.

Por meio da perfilização, é possível construir um sósia/uma extensão da pessoa em ambiente digital (ou avatar), o qual carrega consigo atributos personalíssimos, identificados nem sempre por dados cujos atributos sejam diretamente reconhecíveis [6], mas por proxies. Por exemplo: uma pessoa pode ser classificada como portadora de determinada doença não pelo acesso da plataforma a algum exame médico, mas pela pesquisa feita pela pessoa na internet sobre remédios específicos ou mesmo pelo histórico de compras de farmácia.

Essas informações podem servir para inúmeras finalidades, boas e ruins: desde marketing, como recomendar remédios novos ou especialistas perto da área onde se reside; passando por aspectos políticos para incentivar polarizações (candidato de determinada posição política é contra políticas públicas de saúde e o outro é a favor); até a análise da conveniência, por parte dos fornecedores, no estabelecimento de relações de consumo e de suas estipulações, como precificações injustificadamente diferenciadas ou discriminatórias ou o assédio ao consumo, ou mesmo por parte dos empregadores no estabelecimento de relações de emprego, de modo a obstaculizar o acesso ao mercado de trabalho.

Vulnerabilidades são, em última instância, se abusivamente aproveitadas e não proativamente tuteladas, obstáculos ao pleno desenvolvimento do indivíduo em diversas esferas que não só o consumo.

Além das vulnerabilidades "tradicionais" identificadas em Direito do Consumidor (técnica, jurídica/científica, fática, informacional), as quais entendo serem perfeitamente possíveis de serem transpostas ao ambiente digital (processo de codificação de vulnerabilidades), outras potencialmente são identificadas como sendo típica ou prioritariamente desse ambiente, tanto no que concerne à pessoa (perfil) ou a uma situação específica, quanto a estruturas e outros fatores gerais que determinam uma assimetria entre as partes [7], como a tremenda opacidade pelas quais operam os algoritmos.

Para Micklitz e colaboradores[8], "vulnerabilidade digital descreve um estado universal de impotência e suscetibilidade a (exploração de) desequilíbrios de poder que são o resultado da crescente automação do comércio, das relações consumidor-vendedor informadas e da própria arquitetura dos mercados digitais".

Prosseguem afirmando que "as empresas contemporâneas não se limitam a identificar e a visar vulnerabilidades claramente observáveis e já presentes", de modo que "a verdadeira vantagem competitiva reside na capacidade de identificar e direcionar as circunstâncias pessoais e características que tornam uma pessoa vulnerável (…) mas que ainda não resultaram em vulnerabilidades reais e ocorrentes".

Gaming é outra característica celebrada do metaverso e, como já tivemos a oportunidade de defender [9], a gamificação de todos os aspectos da vida pode ser relacionada à vulnerabilidade digital neuropsicológica e às vulnerabilidades transpostas por meio de perfis. Atributos tão "pequenos", pessoais e aparentemente irrelevantes estão sendo utilizados amplamente para finalidades também amplificadoras, já que a nossa transposição a avatares/perfis carregam consigo vulnerabilidades que, às vezes, nem as pessoas "titulares" da vulnerabilidade conseguem identificar.

Mas as big tech conseguem — e, mais do que isso, as utilizam como ativo comercial e/ou as mercantilizam [10] com um consentimento aparente, juridicamente possível nos termos e condições de uso (e políticas de privacidade e políticas de coleta de dados etc.) que, quando lidas, nem sempre são esclarecedoras ou compreendidas (uma prolixidade planejada) e escondem tudo isso no "utilizamos seus dados para melhorar nossos serviços" e "seus dados são cedidos a terceiros".

Que serviços? Que terceiros?

Vulnerabilidades estão sendo expostas, criadas e manipuladas por quem tem o poder de direção do mundo digital. Assim como a minha privacidade é a sua privacidade, a minha vulnerabilidade poderá ser a sua.

É tempo de escrever esse capítulo na dogmática jurídica, resgatar o princípio da vulnerabilidade para além do consumo [11] — para contribuir, de modo dinâmico e com plasticidade, aos desafios que enfrentaremos, enquanto seres informacionais, no desenrolar tecnológico, a fim de oportunizar a harmonização de interesses da sociedade, sem esquecer dos valores fundantes constitucionalmente protegidos.


[1] HOFFMANN-RIEM, Wolfgang. Teoria geral do direito digital: transformação digital, desafios para o Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

[2] Expressão originária do ministro do STJ Herman Benjamin (veja: REsp 1721669/SP, relator ministro HERMAN BENJAMIN, 2ª Turma, julgado em 17/04/2018, DJe 23/05/2018).

[3] FLORIDI, Luciano. The fourth revolution: how the infosphere is reshaping human reality. Oxford: Oxford University Press, 2014. p. 40-41.

[4] FLORIDI, Luciano. p. 89.

[5] Sobre esses temas e outros correlacionados, veja obra fundamental: ABBOUD, Georges; NERY JÚNIOR, Nelson; CAMPOS, Ricardo. Fake news e regulação. São Paulo: RT, 2022.

[6] MARQUES, Claudia Lima; MUCELIN, Guilherme. Inteligência artificial e "opacidade" no consumo: a necessária revalorização da transparência para a proteção do consumidor. In: TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia. O Direito Civil na Era da Inteligência Artificial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p. 411-439.

[7] MIRAGEM, Bruno. Princípio da vulnerabilidade: perspectiva atual e funções no direito do consumidor contemporâneo. In: _____; MARQUES, Claudia; MAGALHÃES, Lúcia Ancona. Direito do Consumidor: 30 anos do CDC — da consolidação como direito fundamental aos atuais desafios da sociedade. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 243-271.

[8] MICKLITZ, Hans-W.; HELBERGER, Natali; STRYCHARZ, Joanna et al. EU consumer protection 2.0: Structural asymmetries in digital consumer markets. Bruxelas: BEUC, mar. 2021.

[9] MUCELIN, Guilherme; STOCKER, Leonardo. Relações trabalhistas ou não trabalhistas na economia do compartilhamento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021.

[10] As vulnerabilidades codificadas e as tipicamente digitais são, em si, um "valor" latente. Seu uso, sua destinação é que poderá decretar potencialmente uma abusividade e desequilíbrios nas relações. Nesse sentido, aqui cabe uma consideração feita pelo professor Guilherme Magalhães Martins: "Observe-se que a informação em si não tem valor significativo, mas sim o que se pode fazer com ela, viabilizando uma série de condutas, como o marketing direto, ou a determinação de um perfil do usuário sem que esse saiba, de modo que a obtenção de lucro é inevitável diante da utilização das informações" (MARTINS, Guilherme Magalhães. a Lei Geral de Proteção De Dados Pessoais (Lei 13.709/2018) e a sua principiologia. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 1027, maio 2021, p. 203-243).

[11] BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de Dados Pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

Autores

  • é doutorando, mestre em Direito e especialista em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), especialista em Direito do Consumidor pela Universidade de Coimbra e em Direito Comparado e Europeu dos Contratos e do Consumo pela Université de Savoie Mont Blanc/UFRGS.

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