Opinião

Os retrocessos do 'caso Brusque': o STJD e o racismo estrutural

Autores

  • Carlos Eduardo Oliveira Dias

    é juiz do Trabalho do TRT de Campinas doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) professor universitário membro da Associação Juízes para a Democracia da Associação Brasileira de Juristas para a Democracia e da Associação Americana de Juristas.

  • Talita Garcez

    é advogada sócia do escritório Garcez e Associados especialista em Direito do Trabalho e Direito Desportivo e membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo.

22 de novembro de 2021, 13h07

Descartes dizia que o bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo, porque cada um acredita estar muito bem provido dele. É evidente o sentido irônico da frase que abre seu "Discurso do método", explicitado na explicação que se sucede à sua frase. Mas se olharmos para o Brasil de hoje vemos que a profecia lavrada no século 17 se amolda perfeitamente à realidade vivida em nosso contexto medieval do século 21. Obviamente não no sentido literal da frase, mas propriamente a partir da ironia construída pelo pensador

Esse comentário vem a propósito da recente decisão do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) a respeito de um episódio de racismo cometido por um dirigente do Brusque FC contra um atleta do Londrina EC, que foi ofendido com uma expressão injuriosa durante uma partida de futebol. O clube havia sido punido com a perda dos pontos da partida pela 5ª Comissão Disciplinar da Justiça Desportiva, mas na semana que antecedeu o Dia da Consciência Negra o mencionado tribunal ofereceu sua contribuição negativa ao acolher parcialmente o recurso do clube, devolvendo-lhe os pontos suprimidos.

Apesar de haver mantido as demais condenações  a multa de R$ 60 mil, mais a perda de um mando de campo para o clube —, a exclusão da perda dos pontos foi definida pela maioria dos integrantes do tribunal, que consideraram que o fato não teria a chamada extrema gravidade, exigida pela norma para justificar a manutenção da perda de pontos.

O artigo 170 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva prevê  para as infrações disciplinares as seguintes penas: "I – advertência; II – multa; III – suspensão por partida; IV – suspensão por prazo; V – perda de pontos; VI – interdição de praça de desportos; VII – perda de mando de campo; VIII – indenização; IX – eliminação; X – perda de renda; XI – exclusão de campeonato ou torneio".

Assim dispõe o artigo 243-G, parágrafo 3º do CBJD:

"Praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:
PENA: suspensão de cinco a dez partidas, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, e suspensão pelo prazo de cento e vinte a trezentos e sessenta dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código, além de multa, de R$ 100,00 a R$ 100.000,00.
§3º. Quando a infração for considerada de extrema gravidade, o órgão judicante poderá aplicar as penas dos incisos V, VII e XI do artigo 170".

Como se viu, a imputação da perda de pontos ao clube está autorizada pelo parágrafo 3º do artigo 243-G do CBJD, o que nos leva a questionar: como pode o STJD afirmar que um ato de racismo não pode ser considerado de gravidade extrema, e por que a multa não foi aplicada em seu patamar máximo?

Do que se extrai das razões de voto que prevaleceram, há dois pontos cruciais sustentados pelos eminentes julgadores: a falta da gravidade extrema e a prática do ato ter sido realizada por um dirigente, o que não justificaria a imputação de pena tão drástica ao clube. Ambos os fundamentos são totalmente frágeis, mas revelam mais um episódio dramático da naturalização do racismo no Brasil. Qualquer estudo sistêmico das relações de poder na história brasileira revela o sentido adquirido pela escravização levada a efeito pelos colonizadores e que depois foi incorporada ao nosso modo de vida. Sim, é oportuno lembrar que os portugueses não foram os únicos responsáveis pela escravização de pessoas. Embora pioneiros e muito eficientes nesse mister, seu legado espraiou-se pelo território nacional, a ponto de ser assimilado por grande parte da população brasileira, inclusive alguns que foram eles próprios vítimas dessa ignomínia. E a instituição da escravidão se manteve no período de autonomia institucional, em que o país já era uma nação soberana, mas não se desgarrou de seus traços escravocratas.

Esse legado de quase 400 anos de violência não podia resultar em outras consequências senão aquelas às quais temos de conviver desde 1888: a disseminação de uma estrutura racista que se espraia por toda a nossa sociedade e nossas instituições. Isso faz com que as atitudes racistas sejam praticadas de forma, por vezes inconsciente e banal, como se fizesse parte da natureza humana essa diferenciação indigna que foi criada em algum momento da nossa história. Não por outro motivo, as defesas daqueles que são acusados de cometer atos dessa estirpe, em regra, minimizam as agressões, pretendendo afirmar que o peso das palavras ou dos gestos não seriam tão intensos como dizem suas vítimas. No caso que estamos analisando, o clube elaborou uma nota oficial na qual, em vez de condenar a prática racista de seu dirigente, fez acusações contra o atleta agredido, relativizando a dor que só ele sabe ter sentido. É a conduta típica do escravocrata, que só enxerga sua própria dor e é incapaz de identificar aquilo que fere o outro.

Quem age dessa maneira parece ignorar que os negros e negras brasileiros carregam um fardo histórico de discriminação, fundada apenas e tão somente na cor da sua pele. Não bastasse que seus ancestrais tivessem sido retirados à força de sua terra; que fossem transportados em condições subumanas; que fossem vendidos como mercadoria; que fossem castigados violentamente e fossem obrigados a trabalhar de modo forçado até sua exaustão. Não seria suficiente que isso tenha durado mais de três séculos e que tenha atingido tantas gerações de pessoas que tiveram sua humanidade arrancada e sua dignidade atingida. Desde sempre, o povo negro é alvo de práticas discriminatórias que começam pelo Estado, especialmente pelas forças de segurança, e que perpassam por todos os segmentos da sociedade. Por isso, qualquer referência agressiva, irônica ou feita com desdém, e que se relacione à sua condição racial é tão grave.

Mas isso não é enxergado pelos dirigentes do futebol brasileiro, nem pelos integrantes da Justiça Desportiva. O STJD, aliás, é composto apenas por homens, e de pele branca. Assim como são brancos quase todos os dirigentes dos 40 clubes das principais divisões do futebol brasileiro. E a imensa maioria dos técnicos em atividade. Talvez por isso, a defesa dos acusados no processo, e os auditores que participaram do julgamento, tenham apresentado outro argumento infalível que comprova o racismo estrutural: há muitos negros no futebol, inclusive no clube cujos pontos foram suprimidos! É o típico argumento do racista que não tem sequer a honradez de assumir a deficiência de seu caráter. Quantas vezes não ouvimos: "Não sou racista, pois tenho amigos negros"? O que essas pessoas ignoram é que esse tipo de afirmação só reitera o preconceito que elas carregam de forma congênita e que, como dito, não têm coragem de admitir. Uma breve leitura do resumo da decisão do STJD mostra exatamente este tipo de argumento sendo usado para retirar a punição do clube com a perda de pontos.

O que seria, pois, uma agressão verbal a um atleta negro, senão um ato de extrema gravidade? Trata-se de conduta criminosa e, ainda que as esferas de identificação de responsabilidades sejam distintas, não se pode dissociar eventuais consequências penais daquelas que se situam no âmbito desportivo. Pensamento diverso contraria as diretrizes da própria Fifa, em cujo estatuto está escrito:

"A discriminação de qualquer tipo contra um país, uma pessoa ou grupos de pessoas por causa da raça, cor da pele, etnia, origem social, gênero, língua, religião, opinião política ou qualquer outra opinião, saúde, local de nascimento ou qualquer estatuto, orientação sexual ou qualquer outra razão é estritamente proibida e passível de punição por suspensão ou expulsão" (artigo 3º).

Além disso, o Código de Ética da FIFA, em seu artigo 24, dispõe:

"Artigo 24  Discriminação 1) As pessoas sujeitas ao presente Código não atentarão contra a dignidade ou integridade de um país, de uma pessoa ou de um grupo de pessoas mediante palavras ou ações depreciativas, discriminatórias ou denegridoras, por razão de sua raça, cor de pele, etnia, origem nacional ou social, gênero, idioma, religião, posicionamento político ou de outra índole, poder aquisitivo, lugar de nascimento ou procedência, orientação sexual ou qualquer outro motivo de conotações similares. 2) O descumprimento deste artigo será sancionado com multa correspondente, cujo valor mínimo será de 10.000 dólares americanos, bem como a proibição de exercer atividades relacionadas com o futebol durante um período máximo de dois anos. Nos casos mais graves ou em casos de reincidência, poderá ser decretada a proibição de exercer atividades relacionadas com o futebol durante um período máximo de cinco anos".

Se as agressões racistas do dirigente ao atleta profissional não forem de extrema gravidade, o que seria, afinal? Teria o STJD capacidade para dar essa resposta à sociedade brasileira?

Ao lado disso, não faz nenhum sentido o outro fundamento usado pelo tribunal para afastar a pena de perda de pontos, que é o fato de o ato ter sido praticado por um dirigente do clube. A lógica da maioria dos auditores foi a de que os pontos foram conquistados pelo clube, que não poderia ser atingido pelo ato "isolado" de seu dirigente. Esse raciocínio, no entanto, foge completamente à razoabilidade. Em primeiro lugar, a simples leitura rasa do dispositivo já mostra como a decisão está equivocada. Com efeito, o já citado artigo 243-G do CBJD, em seu caput, tipifica conduta que pode qualificar o ofensor às pena de suspensão e multa (incisos II, III e IV do artigo, 170), graduadas de forma distinta se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica ou qualquer outra pessoa. Já o parágrafo 3º estende a possibilidade de aplicação das penas dos incisos V (perda de pontos), VII (perda de mando de campo) e XI (exclusão do campeonato).

Ora, como visto, pela conduta do dirigente do Brusque, o clube foi punido com pena de perda de mando de campo (inciso VII), mas a perda de pontos foi rejeitada por faltar a "gravidade extrema" na conduta. No entanto, o mesmo dispositivo que autoriza uma das penas é que autoriza a outra!

Além disso, qual o sentido de o parágrafo 3º autorizar a perda de pontos senão o de fazê-lo em harmonia com o disposto no caput do mesmo artigo, vale dizer, quando o ato é praticado por "por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica ou qualquer outra pessoa"? Dito de outro modo, bem simples, pois isso talvez não tenha sido bem compreendido pelos auditores: as penas do parágrafo 3º são, de fato, dirigidas ao clube, mesmo que o ato tenha sido praticado por outra pessoa qualquer, inclusive que não tenha nenhuma relação direta com ele. Logo, uma suposta "excludente de ilicitude por fato de terceiro", como preconizado na responsabilidade civil, não se aplica a esse caso, pela tipicidade da própria norma. No mesmo sentido, o parágrafo 1º mesmo artigo estabelece que "caso a infração prevista neste artigo seja praticada simultaneamente por considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade de prática desportiva, esta também será punida com a perda do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente, e, na reincidência, com a perda do dobro do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente; caso não haja atribuição de pontos pelo regulamento da competição, a entidade de prática desportiva será excluída da competição, torneio ou equivalente".

Como se nota, o código que regula as condutas em matéria desportiva no Brasil estabelece um paradigma muito claro: a responsabilidade do clube por qualquer ato de discriminação é objetiva, e cabe a ele sofrer as consequências pelas atitudes de todos os que a ele se vinculam, independentemente da sua natureza. Isso é muito mais do que justificável. Afinal, a prática da discriminação entre elas a racial só vai ser erradicada ou reduzida quando se intensificarem as medidas repressivas a essas condutas. Em termos desportivos, isso passa, necessariamente pela imputação da responsabilidade dos clubes, a quem compete zelar incessantemente para que não episódios dessa natureza se reproduzam ou se perenizem. Esse é um processo longo e doloroso, mas pedagógico, pois à medida em que os atos das pessoas, ainda que isolados, possam repercutir na vida do clube  inclusive com perda de pontos ou exclusão do campeonato —, isso as fará refletir sobre a gravidade de suas atitudes, e as colocará, inclusive, à mercê da cobrança de seus pares.

Destaco que, no caso presente, o próprio clube teve uma atitude deplorável ao não condenar a conduta de seu dirigente e ainda acentuar a agressão ao atleta, mediante uma desnecessária nota oficial em que ameaça processá-lo, medida que seria completamente absurda, eis que a imputação feita ao dirigente foi registrada na súmula da partida  naturalmente não elaborada pelo profissional. A pena de perda de pontos, aliás, talvez fosse até branda, a considerar a leniência do clube e a forma como ele tratou o episódio.

Sendo o futebol um esporte que deve estampar a diversidade com excelência, não dá para ser brando quando o tema é racismo, especialmente no Brasil, onde a inclusão racial no esporte sempre foi natural  ao menos entre os futebolistas  inclusive em tempos de que o futebol era considerado esporte apenas para brancos. Não é admissível que um país conhecido pela sua habilidade no futebol, e no qual ele exerce influência marcante, seja palco para a disseminação de práticas dessa natureza, quando deveria ser utilizado como política inclusiva e educacional na luta contra o racismo. A decisão do STJD merece todas as nossas críticas, pois é o tipo de medida que ajuda a perenizar uma prática que deveria ser completamente banida do futebol. Afinal, não basta que não sejamos racistas, temos de ser antirracistas!

Autores

  • é conselheiro do Conselho Nacional de Justiça e juiz do Trabalho no TRT-15 (Campinas-SP), além de doutor em Direito do Trabalho pela USP e professor titular do Centro Universitário UDF.

  • é advogada, sócia do escritório Garcez e Associados, especialista em Direito do Trabalho e Direito Desportivo e membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo.

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