Opinião

Jovens, pobres e pretos nos presídios da Bahia: e as audiências de custódia?

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15 de novembro de 2021, 7h12

1) Introdução
Este texto tem como objetivo analisar, brevemente, o perfil da população carcerária da Bahia, tomando-se como fonte principal o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (julho a dezembro de 2020), promovido pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, destacando o tipo de crime cometido pelos custodiados, idade, escolaridade, cor/raça e gênero. Em seguida, de posse desses dados, pretende-se analisar o Relatório da Defensoria Pública do Estado da Bahia sobre as audiências de custódia na cidade de Salvador, referente aos flagrantes do ano de 2019, buscando relacionar esses dados com a importância das audiências de custódia como ferramenta para garantia dos direitos dos custodiados e redução do contingente de presos provisórios e condenados ao regime fechado por crimes sem violência contra a pessoa, a exemplo dos crimes relacionados à Lei de Drogas.

Ousando um pouco mais, também é objetivo deste texto relacionar os flagrantes, os tipos penais e seus autores com o perfil da população carcerária definida pelo Levantamento Nacional do Depen.

A metodologia utilizada será a análise dos dados do Levantamento Nacional do Depen em cotejo com o relatório da Defensoria Pública estadual da Bahia acerca das audiências de custódia em Salvador.

2) População carcerária da Bahia
Pois bem, segundo o levantamento do Depen [1], em dezembro de 2020 a Bahia contava com população carcerária de 13.373 presos, sendo que 48,96%, quase a metade, são presos provisórios à espera de julgamento.

Recentemente, no último dia 4, a Secretaria Estadual de Administração Penitenciária e Ressocialização do Estado da Bahia publicou relatório informando um total de 13.031 presos, sendo 6.219 presos provisórios, ou seja, 47,72% de presos provisórios. Depreende-se, portanto, que não houve alteração significativa quanto ao número de presos e nem com relação aos provisórios [2].

A taxa de aprisionamento da Bahia não é alta em comparação com a média nacional. Com efeito, o Brasil registra uma taxa de aprisionamento de 318 presos por cada cem mil habitantes, sendo que esse número já chegou ao máximo de 359 presos por cada cem mil habitantes. Nesse aspecto, a Bahia já registrou o número de 113,2 no ano de 2017, tendo registrado em 2020 o total de 91,9 presos por cada cem mil habitantes. Essa discrepância entre a realidade da Bahia diante da média nacional merece um estudo à parte, o que não é objeto deste texto.

Na Bahia, com relação aos tipos penais, entre os custodiados do sexo masculino, 30,82% estão presos sob acusação da prática de crimes relacionados ao tráfico de drogas e 32,8% por crimes contra o patrimônio, totalizando 63,62% da população carcerária. Com relação às mulheres, o dado assustador é que 51,83% das mulheres estão presas sob acusação de tráfico e 18,58% por crimes contra o patrimônio, totalizando 70,41% das custodiadas. Um agravante a ser considerado é que o percentual de homens presos por envolvimento com o tráfico, considerado apenas dentre os crimes hediondos e equiparados, sobe para 45,22% dos crimes.

Com relação à faixa etária, segundo os dados do Depen, mais da metade desses presos (53,08%) tem até 29 anos de idade, sendo 27,77% até 24 anos de idade e 25,31% até 29 anos de idade, ou seja, são jovens ainda com força de trabalho ativa. Acrescentando-se os presos com até 34 anos de idade (16,37%), ainda com força de trabalho ativa, chegaremos ao percentual de 69,45% dos presos.

Com relação à cor/raça no sistema prisional, aponta a estatística do Depen que 76,14% da população carcerária se declara parda, 17% se declaram como sendo preta e apenas 6,43% se declaram branca. Isso significa dizer que 93,14% dos presos da Bahia se declaram pardos ou pretos.

Nos limites deste texto, baseado no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias e da Secretaria Estadual de Administração Penitenciária e Ressocialização, pode-se concluir que as penitenciárias do estado da Bahia, e também do Brasil, têm um destinatário certo: jovens, pobres, pretos, sem profissão, sem escolaridade e praticantes de crimes contra o patrimônio e relacionados às drogas. Revela-se, portanto, um Direito Penal visivelmente seletivo com relação à escolha de quais condutas criminalizar e quem deve ser preso.

Uma simples somatória dos crimes por envolvimento com drogas e crimes contra o patrimônio demonstra um perfil da população carcerária muito mais relacionada à população pobre e desprovida de oportunidades sociais. Com efeito, a soma dos tipos penais de tráfico de drogas e crimes contra o patrimônio, no caso dos homens, chega a 69,45%. No caso das mulheres, esse percentual chega a 70,41% da população carcerária feminina.

Significa dizer que dois tipos penais, praticados sem violência contra a pessoa, em casos de furtos, representam mais de dois terços dos custodiados. Sendo assim, um novo tratamento à questão das drogas, assumindo o Estado o controle da produção e distribuição, e ações sociais voltadas aos jovens para amenizar as desigualdades sociais, e teríamos um quadro bem diferente no sistema penitenciário da Bahia.

3) Audiências de custódia
A implantação da obrigatoriedade da audiência de custódia no ordenamento processual penal do Brasil se deu através da Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que alterou a redação do artigo 310, do Código de Processo Penal, estabelecendo o prazo de 24 horas, após receber o auto de prisão em flagrante, para a realização da audiência de custódia, com a presença do acusado, advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e representante do Ministério Público.

Nesta audiência, o juiz deverá decidir, fundamentadamente, se relaxa a prisão, se converte em preventiva (caso presentes os requisitos legais) ou se concede a liberdade provisória, com ou sem fiança.

Antes disso, em 2015, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução nº 213 e determinou, em seu artigo 1º, "que toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão".

Um dos considerandos que fundamentam a Resolução nº 2013/2105 lembra "que a condução imediata da pessoa presa à autoridade judicial é o meio mais eficaz para prevenir e reprimir a prática de tortura no momento da prisão, assegurando, portanto, o direito à integridade física e psicológica das pessoas submetidas à custódia estatal, previsto no artigo 5.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos e no artigo 2.1 da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes".

Tem-se, portanto, que a obrigatoriedade das audiências de custódia está definitivamente inserida no ordenamento brasileiro e seu descumprimento não poderá ser relativizado ou mitigado. Não é mais faculdade do Judiciário, mas direito da pessoa presa em flagrante ou por mandado judicial.

4) O relatório da Defensoria Pública estadual da Bahia
Pois bem, desde o ano de 2015, a Defensoria Pública estadual vem coletando dados acerca da realização das audiências de custódia em Salvador a publicando esses dados em relatório, sendo o último publicado em outubro de 2020 [3].

Em resumo, o último relatório da Defensoria Pública estadual da Bahia constatou que foram realizadas 5.153 prisões em flagrante em Salvador, no ano de 2019 e o perfil socioeconômico é que se trata de homens, negros, jovens, ensino fundamental incompleto e renda mensal inferior a dois salários-mínimos.

Na apresentação do relatório, destacou a Defensoria Pública Estadual da Bahia [4]:

"Deste total, 97,8% (4.428) se autodeclararam pretos/pardos e 2,2% (98) brancos e, cruzando estes dados com a decisão tomada em relação à situação deste flagranteado, a pesquisa constata que o número de liberdade provisória é quase igual entre pretos/pardos (50%) e brancos (49%), mas quando a medida é de prisão preventiva os pretos/pardos respondem por 41,4% do total e os brancos totalizam 33,7% destes registros.
Quanto à idade, o documento mostra que 3.345, ou seja, 65,3% dos custodiados tinham idade entre 18 e 29 anos. Com relação à escolaridade, dos que responderam, 53,3% (1.590) dos flagranteados informaram que possuíam até o ensino fundamental incompleto.
Um dado extremamente importante trazido pelo relatório diz respeito à constatação de que em 99,7% dos casos em que a prisão preventiva foi decretada o fundamento utilizado foi o da manutenção da ordem pública. Depreende-se, portanto que há uma generalização ou falta de fundamentação para decretação da prisão preventiva, servindo a garantia da ordem pública como um guarda-chuva que acolhe todos os casos".

Com relação às imputações penais dos casos, em 41,8% (2.152) foi de crimes contra o patrimônio, sendo os principais deles roubo e furto e 40,1% (2.068) sobre a Lei de Drogas. Houve, também, 421 casos ligados à Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), 145 sobre o Estatuto do Desarmamento, 138 referentes ao Código Brasileiro de Trânsito e 228 outros crimes ligados a casos que envolvem homicídios e os contra a dignidade sexual.

A liberdade provisória foi concedida em 52,8% dos casos em que a apreensão de droga foi de maconha; em 56,8% dos casos quando a apreensão foi de cocaína e em 52,9% dos casos de apreensão de crack.

Por fim, com relação ao retorno, a pesquisa constatou um quantitativo de 217 retornos, que representa 7,2%, ou seja, em 92,8% dos casos não foram registrados retornos, o que prova que é falsa a hipótese da volta ao sistema.

Depreende-se dessa pesquisa, portanto, que as prisões em flagrante em Salvador, durante o ano de 2019, tiveram como principais alvos os jovens, pretos, sem escolaridade e por violação à Lei de Drogas ou crimes contra o patrimônio.

Destaque-se, por fim, a baixíssima taxa de retorno, o que desmistifica o argumento de que os presos postos em liberdade nas audiências de custódia voltam a delinquir, bem como a utilização quase sempre, por parte dos juízes, do argumento de manutenção da ordem pública para conversão do flagrante em prisão preventiva.

5) Conclusão
Sem encerrar o debate, iniciamos este texto com as informações acerca da população carcerária da Bahia, destacando os tipos penais, escolaridade, faixa etária, raça/cor e gênero. Concluímos que o sistema prisional tem um destinatário certo: jovens, pobres, pretos, sem profissão, sem escolaridade e praticantes de crimes contra o patrimônio e relacionados às drogas, totalizando 69,45% dos homens e 70,41% das mulheres.

Do relatório da Defensoria Pública estadual da Bahia, extraímos que 97,8% dos presos em flagrante se declararam pardos ou pretos, enquanto 93,14% dos custodiados no sistema penitenciário da Bahia se declaram pardos ou pretos.

Com relação ao tipo penal, 41,8% foram presos em flagrante por motivo de crime contra o patrimônio e 40,1% por violação da Lei de Drogas, totalizando 81,9% dos flagrantes. Da população carcerária, temos que 30,82% estão presos sob acusação da prática de crimes relacionados ao tráfico de drogas e 32,8% por crimes contra o patrimônio, totalizando 63,62% pessoas presas por motivo desses dois tipos penais.

Essa diferença significativa entre os flagranteados e condenados pode estar relacionada à constatação, durante o inquérito policial, de que se trata de porte para consumo pessoal ou o mesmo entendimento pelo Ministério Público para o não oferecimento da denúncia e remessa do caso para a competência dos juizados especiais criminais.

Em consequência, podemos afirmar que a ação policial que resulta na prisão em flagrante e realização da audiência de custódia tem como alvo preferido os mais vulneráveis socialmente e o sistema de Justiça Criminal, de sua vez, em perfeita harmonia, conduz para o sistema penitenciário exatamente os mesmos escolhidos pelo policiamento ostensivo que executa a prisão em flagrante.

Essa roda-viva, por fim, pode ser parada pelo aperfeiçoamento do sistema de audiências de custódia. Não se justifica mais a conversão da prisão preventiva em flagrante sob o argumento genérico da manutenção da ordem pública, bem como não se justifica mais que o juiz da audiência de custódia seja o promotor da porta de entrada desses jovens no sistema penitenciário, quando em verdade são muito mais clientes do Sistema Único de Assistência Social (Suas) ou do Sistema Único de Saúde (SUS).

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