Opinião

Queijos, patrimônio cultural e indústria criativa: por um Direito Alimentar 4.0

Autor

  • Marcílio Franca

    é membro do Comitê Jurídico da International Art Market Studies Association árbitro da Court of Arbitration for Art (Rotterdam Holanda) da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (WIPO) e do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul docente da Universidade Federal da Paraíba ex-professor visitante das faculdades de Direito das Universidades de Pisa Turim e Ghent pós-doutor em Direito no Instituto Universitário Europeu (Florença Itália) e procurador-chefe da força-tarefa do Patrimônio Cultural do Ministério Público de Contas da Paraíba.

13 de novembro de 2021, 11h13

Fustigado pela oposição, o general De Gaulle teria dito certa vez que a França era ingovernável: "Comment voulez-vous gouverner un pays où il existe 258 variétés de fromage?". A sentença dá bem a dimensão de como a pluralidade e originalidade gastronômicas refletem a diversidade cultural, social e política de um povo.

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Massimo Montanari publicou no ano passado um livro que sublinha essas relações entre comida e política. Logo nas primeiras páginas de "Cucina Politica", o professor da Universidade de Bolonha ressalta que o alimento, para além das óbvias funções nutricionais, constitui também uma indiscutível ferramenta discursiva de "appartenenza a una comunità". Não é à toa que, ainda hoje, momentos importantes de qualquer política externa são experimentados em torno de banquetes diplomáticos.

A Unesco reconhece há tempos esse vínculo entre identidade, diversidade e pluralismo culturais. Em 2002, ao proclamar a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura ressaltou que, sendo "fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é tão necessária para o gênero humano, quanto a diversidade biológica é para a natureza".

Há 70 anos, em 1951, um tratado internacional assinado por Itália, Áustria, Dinamarca, França, Holanda, Noruega, Suécia e Suíça, a Convenção de Stresa, em vigor desde 12 de julho de 1953, definiu o que era um queijo e as maneiras de proteger o seu nome e modos de fabricação. Ainda estamos longe dos tais 258 tipos mencionados por De Gaulle, mas os nossos queijos cariri, canastra, tulha, giramundo, marajó, azul do bosque, mimo da serra, ovelha das vertentes, serrano, coalho, manteiga e tantos outros têm feito bonito em mesas e cardápios. Nas últimas décadas, o Brasil começou a experimentar uma verdadeira revolução nesse setor. Embalados pelo sucesso da economia criativa, queijos famosos em suas regiões de origem passaram a ser explorados por chefs de cozinha estrelados e a ganhar fama. Um círculo virtuoso estabeleceu-se e mais gente passou a produzir ou a consumir queijos artesanais de excelente qualidade.

O resultado dessa revolução pôde ser visto e provado recentemente, no último Mondial du Fromage et des Produits Laitiers de Tours, torneio ocorrido em setembro, promovido pela Guilde Internationale des Fromagers e considerado a Olimpíada do setor. O Brasil levou 57 das 331 medalhas em disputa, cinco delas na dificílima categoria superouro, e ficou atrás apenas dos franceses, os donos da casa.

Muito além do valor de nossos produtores, essas vitórias, porém, têm jogado luz sobre a enorme burocracia que os produtores de queijos artesanais têm que vencer face ao Estado leviatã para chegar até a gôndola do supermercado, a mesa do restaurante ou mesmo o júri de concursos internacionais. Apenas há pouco mais de um par de anos surgiu a Lei Federal 13.680/18, que criou o Selo Arte, e a Lei Federal 13.860/19, que regula os queijos artesanais. Essas normas ainda estão muito longe de facilitar a vida dos queijeiros artesanais e mesmo de garantir mais segurança alimentar, fomentar o patrimônio cultural gastronômico nacional ou incentivar a inovação culinária.

Há 20 anos, em 2001, foi lançado em Bra, no Piemonte italiano, uma campanha internacional para defender e proteger, contra rígidos regulamentos hipersanitaristas e homogeneizadores, os saborosos e perfumados queijos produzidos no mundo inteiro com leite cru, ou seja, os queijos elaborados artesanalmente a partir de leite recém-ordenhado e não pasteurizado, cujos grandes protagonistas são, na verdade, bactérias, leveduras e fungos naturalmente presentes no leite, no curral, na sala de ordenha, no local de produção ou armazenamento. O queijo de leite cru é aquele em que o sabor do leite se expressa em toda a sua glória e uma legislação que torne mais racional a comercialização dessas joias gastronômicas é necessária sem que se abra mão, obviamente de standards de food safety e food security.

Em muitos países, cada vez mais, o produtor artesanal de alimentos é uma classe valorizada. Longe de seguir mecânica e friamente uma receita impessoal e pasteurizada, cabe a esses artesãos do paladar compreender a identidade do alimento que produzem e explorar as suas complexas conexões com a memória, o território e a natureza que os rodeiam. É, em boa medida, o produtor artesanal de alimentos que tem proporcionado porções generosas de tradição e inovação nas mesas de todo o mundo.

Desde muito antes dos romanos, normas jurídicas de cariz público ou privado sempre procuraram disciplinar a produção, o comércio e o consumo de certos alimentos, tentando compatibilizar bens jurídicos como a saúde pública, a boa-fé dos consumidores, a regularidade do abastecimento e a preservação dos negócios privados ligados à agricultura e ao comércio de víveres. Esse conjunto de normas, chamado genericamente de Food Law, Diritto Alimentare ou Lebensmittelrecht, vai apresentar dois outros momentos importantes de sua história durante a Idade Média (o Direito Alimentar 2.0, quando a legislação passa a ser mais vigorosa e detalhada) e na virada dos séculos 19 e 20 (o Direito Alimentar 3.0, com os impactos da revolução industrial e do intervencionismo estatal). 

Hoje, quando a globalização do sistema alimentar implica não apenas em produção e consumo transfronteiriços, mas em concorrência e inovação globais, impõe-se um Direito Alimentar 4.0, que vá em busca de uma regulação mais inteligente e de parcerias regulatórias público-privadas. No mundo dos queijos artesanais, elaborados com leite cru, isso significa que limitar, dificultar ou restringir a sua fabricação é dar um tiro no pé em um mundo que anda à cata de boas novidades ou grandes tradições. Há mais de cinco mil anos variedades peculiares de pastagens e distintos rebanhos de leite (vacas, cabras, ovelhas, búfalas), quando submetidos espacialidades e temporalidades distintas, têm originado tipos extraordinários desse alimento precioso que, junto com o vinho e o pão, compõe a santíssima trindade da mesa.

Italo Calvino utilizou-se da voz de seu personagem Palomar para afirmar a imensa riqueza sensorial de um queijo: "Dietro ogni formaggio c’è un pascolo d’un diverso verde sotto un diverso cielo". Para Palomar, uma queijaria é um verdadeiro museu: em cada objeto exposto está a presença da civilização que lhe deu forma e dele toma forma. Cada receita que desaparece, cada queijeiro que deixa de produzir ante as dificuldades impostas pelo Estado, é uma ala desse grande museu que se fecha definitivamente.

Autores

  • é sócio do Instituto Hispano-Luso-Americano de Direito Internacional (IHLADI) e árbitro da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), da Court of Arbitration of Art (CAfA) e do Tribunal Permanente de Revisão do MERCOSUL (TPR), professor do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

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