Opinião

Reflexões lógicas sobre o periculum libertatis e a prisão preventiva

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12 de novembro de 2021, 19h11

Quando trabalhamos o Direito Penal em sua dimensão teórica, defini-lo não é tarefa fácil. É necessário, portanto, recorrer à sua gênese dogmática para reduzi-lo ao conceito. Quem melhor fez isso, em se tratando de Direito Penal moderno, foi Franz Von Liszt, para quem o Código Penal funcionava como uma magna charta libertatum, que não deveria proteger a ordem jurídica, nem a sociedade, senão o indivíduo que contra esta se impõe. Nesses termos, o Direito Penal se constitui como uma ferramenta que impõe limites ao ius puniendi do Estado.

Em se tratando de Processo Penal enquanto ferramenta para a efetivação do Direito Penal em sua dimensão prática, este se propõe em fornecer ferramentas de legitimidade e controle ante a autoridade do Estado. O Processo Penal, portanto, se põe ao controle dos meios pelos quais a norma penal incide sobre a vida em sociedade, atribuindo não só a previsibilidade inerente às exigências de legalidade, como também certa liturgia ao Estado, que aplica a pena como justa resposta ao delito.

A pena, por sua vez, possui características específicas, fases específicas e atende a diferentes fins. A prisão enquanto ferramenta natural da política criminal, uma vez que posta em um Estado de Direito, exige sentido e justificação — não podendo se fixar em critérios imprevisíveis e voluntaristas como o arbítrio do juiz; mas, sim, em rígidos padrões de legalidade e legitimidade de um processo que não é devido a vontade, mas à lei.

Nesses termos, ao discutirmos política criminal à luz do Direito e do Processo Penal e estes, por sua vez, inseridos sob a lógica da constitucionalidade do direito, nos impõe certa criteriosidade no trato da boa técnica dogmática, que deve ser exercida de forma analítica e taxonômica, devido a sua natureza subsidiária de ultima ratio.

A prisão-pena, no Brasil, somente pode ser decretada após o transitado em julgado de uma sentença penal condenatória, que se dá ao fim do processo, vez que a culpabilidade, como fundamento do fato punível, somente é posta e corretamente determinada nessa fase específica do processo. Contudo, existem prisões que não são penas, que possuem natureza cautelar, cuja cautelaridade se dá pelo binômio da adequação e da necessidade.

A prisão preventiva, que é cautelar, requer justificação: é necessário o fumus commissi delicti ou o periculum libertatis. Somente na comprovação lógica — e por isso fática — de um desses dois elementos é que é possível prender preventivamente no Brasil.

O periculum libertatis é, nas palavras de Aury Lopes Jr: "O perigo que decorre do estado de liberdade do sujeito passivo, previsto no CPP como o risco para a ordem pública, ordem econômica, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal".

O CPP, ao fixar conceitos abertos (ordem pública, ordem econômica e conveniência da instrução criminal) tornou demasiado insegura a dinâmica da prisão, pois como afirma Roxin: "Uma ley indeterminada o imprecisa y por ello poco clara no puede proteger al ciudadano de la arbitrariedad, porque no implica una autolimitación del ius puniendi estatal a la que se pueda recurrir; además es contraria al principio de división de poderes, porque le permite al juez hacer cualquier interpretación que quiera e invadir com ello el terreno del legislativo".

A ambiguidade conceitual que fundamenta a prisão preventiva é perigosa — e a arbitrariedade da sua aplicação é particularmente suportada por aquela parcela da sociedade cuja vulnerabilidade lhe é imposta pela via da seletividade penal inerente ao sistema de Justiça Criminal, que torna a dialética da pena, per si, injusta.

Contudo, se analisarmos do ponto de vista puramente lógico o que se entende jurisprudencialmente por "segurança à aplicação da lei penal", percebemos que as bases teóricas comumente usadas nos tribunais são, também, construídas sob a areia — e não existe nenhum referente material minimamente lógico ou concreto para se prender dessa forma.

A prisão preventiva enquanto garantia à aplicação da lei penal requer que seja provada (e não meramente presumida) que a liberdade do sujeito ponha em risco o efetivo segmento do processo. A prova é, desse modo, critério necessário para a própria legitimidade da prisão; pois, uma vez que não prove o risco, este não pode ser presumido.

Wittgenstein dizia que a lógica é um espelho cuja imagem é o mundo. As proposições lógicas não podem ser confirmadas ou refutadas pela experiência. Não se pode logicamente inferir que da existência de uma situação qualquer, a existência de uma outra situação diferente da primeira. Não podemos inferir os acontecimentos futuros dos acontecimentos presentes. A crença no nexo causal é sempre superstição. Não existe uma compulsão que faça uma coisa ter de acontecer pelo fato de outra ter acontecido. Só existe necessidade lógica — e o fundamento da prisão em critérios de perigosidade são logicamente postiços.

Zaffaroni explica que "um direito que reconheça e ao mesmo tempo respeite a autonomia moral da pessoa, jamais pode punir o ser, senão o fazer dessa pessoa, já que o próprio direito é uma ordem reguladora da conduta". Assim, a prova quanto ao periculum libertatis do acusado é imprescindível e fundada em rígidos e concretos padrões de certeza.

A prisão preventiva sob a lógica do periculum libertatis só é possível quando, por exemplo, o acusado efetivamente ameaçou a vítima, as testemunhas ou o juiz; nunca podendo se dar na mera conclusão abstrata de que, caso o acusado esteja solto, as vítimas, as testemunhas ou o juiz se sentirão inseguros.

O Processo Penal que fixa a prisão, seja ela pena ou cautelar, com base na suposta condição existencial do acusado, torna-se um Processo Penal revanchista, que não mais é do fato, mas do autor e, assim, perde-se em seus fins, tornando-se aquilo tudo o que não poderia vir a ser: ao invés de limitar a violência do Estado, impulsiona-a.

A lógica é o sistema normativo do pensamento. A lei, se racional, deve ser lógica. O Direito e o processo, caso assumam status de racionalidade, devem ser lógicos — e a lógica é, nesses termos, garantia. O ônus da lógica é uma exigência da razão, e não podemos nos dar ao luxo de pensarmos um Direito Penal irracional. Não mais.

 

Referências bibliográficas
LISTZ, Franz von. La idea de fin en Derecho Penal;

SCHUNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos;

JUNIOR, Lopes Aury. Prisões Cautelares;

ROXIN, Claus. Derecho Penal parte general – Fundamentos la estructura de la teoría del delito;

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratactus Lógico-philosophicus;

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Direito Penal Brasileiro.

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