Opinião

Os parlamentares foram probos ao mudar a Lei de Improbidade?

Autor

  • David de Oliveira Gomes Filho

    é juiz de direito da 2ª Vara de Direitos Difusos Coletivos e Individuais Homogêneos da Comarca de Campo Grande em Mato Grosso do Sul há oito anos e juiz de direito no Estado de Mato Grosso do Sul há 22 anos.

3 de novembro de 2021, 12h43

Probidade é uma palavra dita poucas vezes durante a vida comum das pessoas, mas aplicada diariamente por todos desde o início da sua vida. Ela significa honestidade. Ainda crianças, os pais ensinam probidade aos filhos ao orientarem sobre o certo e o errado. "Você não pode bater na sua irmã", é lição de probidade. "Você não pode pegar as coisas dos outros", é lição de probidade. "Tal coisa é certa e tal coisa é errada", muitas vezes são lições de probidade. Crescemos envoltos no universo da probidade e é ela que permite a convivência harmônica em sociedade.

Por vezes, flertamos com a improbidade na vida comum, ao simularmos uma falta que não ocorreu num jogo apertado, num gol de mão que ninguém percebeu e você silencia. E houve tempo em que esta conduta chegou a ser comemorada e valorizada pelos torcedores, já que a ideia da vitória era maior do que a ideia de como ela foi conseguida.

Os tempos mudaram e a época do vale tudo começou a ser rejeitada pela maioria das pessoas. Que graça teria você ser declarado campeão, se você sabe que não jogou com honestidade?

Mas estamos, até aqui, no campo da improbidade e da probidade de pequenas proporções, sem muitas consequências para a vida da maioria das pessoas. Existe, porém, a probidade qualificada que é aquela que se espera de quem administra a coisa pública, a coisa de todos. Aquela de quem sabe que o dinheiro público não é um dinheiro sem dono, mas é o dinheiro de todas as pessoas, que foi reunido num lugar para ser bem aplicado em favor da sociedade.

Se um dia já foi aceitável que jogadores de futebol fizessem um gol de mão, nunca foi aceitável que administradores públicos fizessem este mesmo gol de mão num jogo entre os interesses deles e os da sociedade. Quem administra a coisa pública, o faz em favor de todas as pessoas e deve ter a consciência de que o interesse público é preponderante.

Um gol de mão na administração pública representa filas nos postos de saúde, desabastecimento deles, falta de vagas para crianças em creches ou em escolas, buracos no asfalto de má-qualidade, abandono de praças e de espaços comuns, encarecimento de serviços públicos como o de coleta de lixo, de saneamento e de transporte, ausência de segurança, de assistencialismo, desemprego, inflação, perda de vidas, dor, desilusão, desespero, caos.

O administrador público que age desta forma trai a confiança de toda uma população que o escolheu para cuidar delas e não dos próprios interesses. O legislador que usa do poder de fazer leis para fazer leis em benefício próprio ou dos amigos trai a confiança de toda uma população que o escolheu para cuidar delas e não dos próprios interesses. O magistrado que usa do poder de interpretar as leis e o faz com parcialidade, seja para agradar "a torcida", seja para salvar amigos que se viram acusados de praticar ilicitudes, seja para obter vantagens, trai a confiança de toda uma população que aceita sua autoridade para cuidar da sociedade e não do próprio ego, dos próprios interesses ou dos amigos.

Esta traição praticada por agentes públicos contra o interesse da sociedade (interesse público) é improbidade administrativa. Quem pratica improbidade administrativa é um traidor.

Tínhamos, até poucos dias, uma lei de improbidade administrativa que "transpirava" cuidados com a coisa pública. Era fácil perceber que a preocupação maior do seu texto era evitar as traições de agentes públicos com suas respectivas missões, com a sociedade, com o interesse público. A defesa do interesse público era a inspiração do seu texto.

Hoje temos uma lei de improbidade administrativa que revela, com muitíssima clareza, a preocupação em proteger os agentes públicos que se veem acusados de improbidade administrativa. É fácil perceber do seu texto a intenção maior de dificultar a condenação e a efetivação dela.

Alteraram a lei para limitar o prazo de investigações para, no máximo, dois anos, quando o prazo prescricional é de oito anos. Isto não faz sentido algum, pois se, no terceiro ano de investigação, o promotor de justiça conseguir uma confissão, um vídeo da fraude acontecendo, um elemento contábil ou pericial da ilicitude, ele não poderá usar destes elementos para propor uma ação que ainda não prescreveu? Isto atende ao interesse público? Ou atende ao interesse dos investigados?

Conforme a nova lei, se o Ministério Público descrever fatos com clareza e, na sentença, o juiz se convencer de que os fatos são ímprobos, mas que a capitulação legal indicada pelo autor não foi correta, ele deverá julgar o processo improcedente. Isto atende ao interesse público? Ou atende ao interesse dos acusados? Os fatos se tornaram desimportantes? O juiz não diz mais o direito? O juiz está limitado a apenas confirmar ou recusar o preciso direito alegado, mesmo diante de fatos com provas robustas de improbidade administrativa? Lei assim foi feita no interesse da sociedade?

A mesma lei isenta de tipificação como ato ímprobo aquele que esteja amparado por apenas um entendimento jurisprudencial do Poder Judiciário ou dos Tribunais de Contas, pouco importando que existam súmulas no sentido contrário, ou centenas ou milhares de posicionamentos afirmando a improbidade daquela conduta. Esta alteração atende ao interesse público ou ao interesse dos acusados?

A indisponibilidade de bens era facilitada e agora ficou dificultada, principalmente porque a lei optou por entendimento contrário ao da jurisprudência majoritária do Superior Tribunal de Justiça, qual seja, a de que existe solidariedade entre os réus pelo ilícito praticado. Assim, a garantia de ressarcimento dos danos eventualmente causados ao erário ficou "manca", dependendo a confirmação integral da peça acusatória. Veja-se que, sem solidariedade, a garantia fica diminuída no caso de absolvição de algum dos réus. Como uma alteração destas favorece o interesse público?

Não fosse o bastante, a ordem de bens indisponibilizáveis inicia por aqueles de menor liquidez, ou seja, o juiz só pode bloquear dinheiro se não conseguir bloquear imóveis e móveis em quantidade suficiente. Além disso, consta da nova lei que, quando for necessário o bloqueio de dinheiro, serão inatingíveis os valores correspondentes a 40 salários mínimos de aplicações ou de contas de titularidade dos réus. Onde está o interesse público aqui?

Pior, na fixação da pena para réus que estejam em litisconsórcio passivo, ficou vedada a solidariedade. Pergunto: Como se fará a condenação do sócio de uma empreiteira que seja condenado juntamente com os dois fiscais que atestaram a execução de uma obra inexistente? Imagine-se que o prejuízo apurado foi de R$ 4.000.000,00, como o juiz vai dividir esta condenação entre o sócio, os dois fiscais e a empresa? Dividirá por quatro? Considerará a responsabilidade da empresa maior do que a do sócio que se beneficiou do contrato? Condenará o sócio só pelo pró-labore recebido? E os fiscais, vão pagar quanto? Se a empresa fraudadora tiver patrimônio para custear os danos que ela causou e os fiscais não tiverem, a parte que coube aos fiscais não será ressarcida? Existe interesse público na alteração que veda a solidariedade?

E são várias as mudanças com perfil nítido de retrocesso no combate à corrupção e de retrocesso nas garantias já existentes em favor do interesse público. Cite-se o artigo que trata dos prazos prescricionais, o que trata da perda da função, o que trata da suspensão dos direitos políticos, o que trata da proibição de contratação com o Poder Público, o que trata da revelia, o que trata da produção probatória, o que trata da indisponibilidade de dinheiro, o que reduz o prazo da prescrição intercorrente, o que trata da exclusão dos partidos políticos do alcance desta lei, o que trata do reexame de ofício, enfim, uma enormidade de retrocessos em questões de enorme importância para se preservar o interesse público, que, agora, está visivelmente desamparado.

Fica a pergunta, as alterações feitas na lei foram probas?

Gol!

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  • é juiz de direito da 2ª Vara de Direitos Difusos Coletivos e Individuais Homogêneos da Comarca de Campo Grande em Mato Grosso do Sul há oito anos e juiz de direito no Estado de Mato Grosso do Sul há 22 anos.

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