Opinião

Airbnb: locações residenciais e não residenciais

Autor

  • Juan Biazevic

    é juiz de Direito em São Paulo mestre e doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP professor convidado dos cursos de pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Escola Paulista da Magistratura.

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2 de novembro de 2021, 11h11

A criação de plataformas digitais potencializou a prestação de diversos tipos de serviços, em verdadeira disrupção tecnológica. Essa profunda modificação da maneira pela qual contratamos cria desafios para o direito privado. Um debate atual é o relativo à natureza das locações celebradas pela plataforma Airbnb. Por um lado, reunir em uma única plataforma milhões de ofertas de imóveis aproxima locadores e locatários, com todas as consequências econômicas positivas decorrentes da facilitação da troca. Por outro, o aumento da frequência dessas locações tem o potencial de gerar perturbação relevante aos interesses das pessoas que possuem imóveis próximos ao locado, em especial pelo potencial desvio de finalidade na exploração dos frutos civis da coisa.

O tema foi analisado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial de nº 1.819.075/RS, em decisão na qual se reconheceu a possibilidade de um condomínio proibir a locação dentro dos pormenores ali discutidos [1]. Com base nessa decisão, a diretoria de um condomínio localizado na cidade de Vinhedo, no interior de São Paulo, decidiu multar os moradores que realizavam anúncios na plataforma. Um morador recebeu duas multas e judicializou o debate [2]. Aqui adaptei a decisão para a forma de um pequeno artigo, para dar minha breve contribuição para a discussão. O argumento que defendo é o de que, pelo menos nos casos centrais, a simples utilização da plataforma não caracteriza uso comercial, mas poderá, a depender do contexto, caracterizar uso não residencial. Esse argumento pressupõe perceber que nem todas as locações celebradas comportam classificação dentro da dicotomia estanque residencial e comercial. Pertencerá à comunidade afetada pela locação decidir se o uso do imóvel nesses termos caracteriza desvio do uso residencial esperado.

O conceito de uso não residencial do imóvel
O direito se articula através da linguagem. Dentro da tradição da filosofia analítica, compreender um certo conceito se faz através da análise da maneira pela qual os usuários competentes da linguagem o empregam. Por exemplo, determinar o conceito de finalidade residencial na utilização de um imóvel é analisar os casos mais paradigmáticos aos quais uma determinada comunidade faz referência quando o utiliza. Dito de outra forma, é compreender quais parcelas da prática social aqueles que participam competentemente do jogo de linguagem do direito fazem referência quando o empregam. Os conceitos relevantes para o direito, portanto, não dependem apenas daquilo que foi positivado, mas também do contexto e da compreensão dos valores que os tornam valiosos para os participantes da prática jurídica. Dado seu caráter contextual, a maneira pela qual empregamos conceitos em uma determinada situação não precisa coincidir com o emprego do mesmo conceito por outras comunidades ou em outros contextos.

Embora essas premissas possam soar como uma obviedade, parece-me que é exatamente nessa diversidade contextual do significado dos conceitos jurídicos que reside a chave para compreender a questão posta. O centro da controvérsia sobre as locações por curtíssimo tempo está numa compreensão parcial da maneira pela qual opera a linguagem, compreensão que cria uma dicotomia estanque entre os conceitos de uso residencial e comercial, dicotomia que, nessa compreensão, não admitiria situações intermediárias. O debate parece ignorar que os casos centrais de uso da plataforma não estão nas zonas de certeza dessas expressões, mas em uma zona intermediária de penumbra. No emprego da linguagem existem núcleos de sentido estabelecidos, mas sempre existirá uma zona intermediária de casos que são discutíveis, casos nos quais as palavras não são obviamente aplicáveis nem obviamente descartáveis [3].

Os casos centrais de "uso residencial" incluem pessoas relacionadas por laços especiais, familiares ou de amizade, residindo no imóvel, ali realizando suas refeições, descanso, estudo e lazer. Porque o proprietário do imóvel pode extrair dele os frutos civis, ele pode alugar o local para outras pessoas sem que isso descaracterize a finalidade. Uma mesma pessoa pode titularizar dezenas de imóveis, locando todos para indistintos sujeitos. Essa pode até ser sua principal fonte de renda, mas, mesmo nessa hipótese, nossas práticas de direito privado não permitem afirmar que o uso dos imóveis foi desviado de sua finalidade. Afinal, em cada unidade os locatários seguem realizando o que deles se espera (refeições, descanso etc.). Esses são todos casos centrais, casos nos quais ninguém colocará em disputa que o emprego do conceito de uso residencial foi adequadamente realizado.

Os casos centrais de "uso comercial" encerram múltiplas atividades, como a utilização de imóveis por profissionais liberais para o exercício de sua atividade, empresas para a prestação de seus serviços e tantos outros casos de exploração do mercado. Não há dúvidas de que o consultório médico, o escritório do advogado, a oficina mecânica, os hotéis e as pousadas são, todos, casos centrais de uso comercial do imóvel. Não há dúvidas de que o exercício de qualquer dessas atividades em um condomínio edilício ou em um loteamento fechado, ambos com destinação residencial, caracterizaria uso desviado de sua finalidade.

Uma das maiores dificuldades no emprego da linguagem não está em determinar como lidar com os casos centrais, mas como lidar nos casos de penumbra. Afirmar que o simples fato de um imóvel ser locado através de plataforma digital por curtíssimo tempo descaracteriza seu uso residencial, transformando-o em comercial, é ignorar que não estamos em um caso central de "uso comercial", embora tampouco estejamos em um caso central de "uso residencial". Os que sustentam a existência de uso comercial afirmam que o tempo de locação e a diversidade de locatários no tempo são características típicas de contrato de hospedagem, contrato que é oferecido ao mercado por empresas que exploram o comércio. Os que sustentam a existência de uso residencial afirmam que estão extraindo os frutos civis da coisa e as atividades desenvolvidas pelos locatários não difere do uso ordinário residencial que os demais moradores realizam. Para eles, considerando a autonomia privada, nada os impede celebrar contratos por períodos típicos de locação por temporada.

Todas as características acima são verdadeiras e não é possível enquadrar com perfeição esse tipo de contrato aos rótulos-estanque residencial ou comercial. Estamos em uma zona intermediária do uso da linguagem e não me parece que "puxar a corda" para um dos lados seja a melhor solução para a controvérsia. A solução, novamente, deve ser localizada no contexto de uso da linguagem pelos atores envolvidos na prática, fornecendo especial papel para a autonomia como valor central do direito privado.

Haverá contextos nos quais não fará sentido defender a ocorrência de um desvio de finalidade no uso do imóvel, tais como ocorre em apartamentos em balneários turísticos ou localizados próximos a hospitais ou centros de eventos. Nesses casos, é até esperado que as unidades sejam locadas por espaços curtos e muitas pessoas adquirem esses imóveis com a finalidade de extrair os frutos civis nesses termos. Locações curtas para aproveitar um fim de semana, acompanhar um enfermo ou realizar um curso não caracterizarão utilização não esperada do imóvel residencial. A comunidade que ali convive entende que esse é o uso ordinário e até se organizará para lidar com os pormenores gerados pela alta rotatividade de pessoas. Os participantes da prática naquele local dificilmente deixarão de reconhecer que os imóveis seguem sendo utilizados para fins residenciais.

Em outros contextos, como condomínios edilícios em locais não turísticos, a mesmíssima atividade pode caracterizar, para aqueles participantes, desvio de finalidade residencial. O mesmo pode ser dito para os loteamentos fechados do interior paulista, pois utilizados pelos moradores dessa região não preponderantemente para o turismo de lazer, mas para o descanso. Nesse contexto, os participantes interpretarão as curtas locações como abuso no direito de fruir os frutos civis da coisa, em atividade próxima ao contrato de hospedagem. Eles não terão dificuldades em apontar os problemas de segurança e desassossego que a reiteração desse tipo de contrato é capaz de gerar, bem como a inexistência da obrigação de se organizar para atender o uso do imóvel desviado de sua finalidade esperada. A locação aqui, embora não possa ser caracterizada como comercial — ela não reúne todos os predicados que os casos centrais possuem —, pode ser caracterizada como não residencial. Essa qualificação será suficiente para caracterizar o desvio de finalidade.

Essa diversidade de avaliações decorre exatamente do fato de esse tipo de contrato se localizar na zona de penumbra do uso dos conceitos. A solução para o impasse deve ser localizada na própria comunidade envolvida e no seu reconhecimento do que conta como conduta esperada para o contexto. Os moradores dos condomínios edilícios e dos loteamentos fechados podem, através de seus órgãos de representação, declarar que esse tipo de contrato viola a forma ordinária de utilização do imóvel, declaração que terá o efeito jurídico de, na prática, qualificar como indevida a locação por curtos períodos. Trata-se, dentro dos limites do exercício da autonomia privada, de manifestação de vontade que explicita o que aquela comunidade entende como uso esperado do imóvel. Importa menos determinar se a locação é residencial ou comercial, mas determinar se ela está sendo realizada dentro das finalidades que aquele conjunto de pessoas entende como adequada e esperada.

Em suma, o simples ato de anunciar um imóvel para locação por curtíssimo espaço de tempo, em plataforma digital ou convencional, não caracteriza uso comercial. Contudo, a depender da expectativa legítima do contexto do local, essa locação pode caracterizar desvio da finalidade do uso residencial esperado pelos moradores. Pertence às pessoas envolvidas o poder de declarar que esse tipo de contrato extrapola os limites lícitos do exercício do direito de propriedade, declaração que deve estar expressa na convenção de condomínio ou no estatuto da associação que reúne os moradores dos loteamentos fechados.

O precedente do Superior Tribunal de Justiça no REsp nº 1.819.075/RS
Compreender o que foi decidido pelo Superior Tribunal de Justiça no REsp nº 1.819.075/RS não prescinde da análise do contexto fático da decisão. Isso permite perceber que o Tribunal não analisou os casos centrais de anúncio na plataforma, mas em verdadeiro caso de uso comercial. No caso julgado, a atividade desenvolvida pelos proprietários de três unidades residenciais foi considerada como comercial e de hospedagem, proibida pela convenção condominial, em razão das seguintes características: (i) a alta rotatividade no local; (ii) o fracionamento de quartos existentes no imóvel para hospedagem de distintas pessoas estranhas entre si e de forma concomitante e em curto espaço de tempo; e (iii) a oferta de serviços na unidade como lavagem de roupas e internet. Note-se, pois pertinente, que o contexto fático que ensejou a decisão tomada como paradigma era semelhante à criação de um hostel no qual os diversos cômodos dos imóveis eram explorados simultaneamente. Os proprietários dos imóveis residenciais fracionaram cada um de seus cômodos e ofereceram-nos à locação de diversas pessoas. Essa é uma situação fática muito distinta daquela que tradicionalmente se observa na plataforma Airbnb. O caso central de locação em plataforma virtual é o oferecimento de um imóvel inteiro, ainda que por um período pequeno, para pessoas de alguma forma vinculadas entre si. Não é possível desprezar esse contexto fático, pois ele interfere na correta compreensão do que foi decidido pelo Superior Tribunal de Justiça. Equivocado, portanto, afirmar que esse acórdão qualificou como atividade comercial toda e qualquer locação realizada por plataforma digital. Ao contrário, o próprio ministro Antônio Carlos Ferreira, no corpo do acórdão, fez a ressalva de que o destino do julgamento não seria distinto se o anúncio para locação tivesse sido feito através de uma plataforma mais tradicional, como um jornal.

O ponto que me parece relevante é o de que, no caso julgado, os proprietários criaram pequeno estabelecimento hoteleiro no interior de edifício residencial. Por esse motivo, a vedação inserida na convenção de condomínio foi considerada lícita pelo tribunal. Tenho que o desvio de finalidade nesse caso concreto já estava caracterizado pela criação do pequeno empreendimento hoteleiro e sua proibição dispensava qualquer manifestação nos demais moradores do edifício. Os pequenos empreendimentos hoteleiros pertencem à zona central de significado do conceito de "uso comercial" e, portanto, estão vedados pela convenção de condomínio que limita o uso dos imóveis ao uso exclusivamente residencial.


[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.819.075/RS. Relator: Luis Felipe Salomão, 4ª Turma. DJe 27/05/2021.

[2] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Autos nº 1002020-75.2021.8.26.0659.

[3] HART, Herbert L. A. Positivism and the separation between law and morals. In: Essays in Jurisprudence and Philosophy. Oxford: Oxford University Press, 1983, p. 63.

Autores

  • é juiz de Direito em São Paulo, titular dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais da Comarca de Bragança Paulista e presidente do Colégio Recursal da 6ª Circunscrição Judiciária.

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