Direito Eleitoral

Dilemas do Brasil: fragilização democrática e desencantamento popular

Autor

  • Mariana Musse

    é doutora (2020) e mestre (2015) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro pós-graduada em Direito Eleitoral pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2009) analista judiciário do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).

1 de novembro de 2021, 8h05

Uma leitura adequada no cenário atual vivido em nosso país passa, ou menos deveria passar, por um melhor entendimento do cenário pós-democrático[1] no qual estamos inseridos. Para tanto, é importante lançar um olhar para nosso passado, bem como focar em dois eixos fundamentais: a identificação de uma nova forma de atuação do neoliberalismo como uma racionalidade global e a exposição dos seus efeitos nas democracias modernas, ou seja, o fenômeno da desdemocratização.

Convém pontuar que as mudanças ocorridas no neoliberalismo, a partir da década de 70, ultrapassaram o campo econômico e se reinventaram como uma “racionalidade global”[2], gerando como consequência a fragilização da democracia, sem sua extinção formal, sendo possível observar tal fenômeno por meio de ataques a pontos cruciais das democracias liberais: a) mercantilização dos direitos humanos e garantias fundamentais; b) esvaziamento da representação política e limitação dos canais de participativos, gerando, como resultado o desencantamento democrático e a soberania das elites em detrimento da soberania popular; e, por fim, c) a imposição de um consenso procedimental como forma de eliminação do conflito e imposição de discursos hegemônicos, impedindo que vozes dissonantes possam ecoar no debate político.

A partir desse conjunto de acontecimentos, observa-se o fenômeno da desdemocratização, traço marcante da teoria da pós-democracia, ou seja, se torna possível, em nome da democracia, romper com os princípios democráticos. Essa extinção material da democracia ao conviver com sua permanência formal, tem conduzido, na maioria das vezes, a dificuldades de articulação de resistências.

Os estudos da pós-democracia, apesar de partirem de análises da crise vivida por países do norte global, ainda assim têm utilidade para compreensão da realidade brasileira, com as devidas ressalvas[3]. Para tanto, na busca de entender melhor as fragilidades atuais da nossa democracia, que sempre se manteve distante dos cidadãos, é importante tecer algumas considerações sobre o tipo de redemocratização pela qual o Brasil passou.

Nesse sentido, um dos principais traços do processo de transição do regime ditatorial brasileiro para a democracia foi a tentativa permanente de controle e direcionamento de cada etapa, sendo o alijamento ou, na melhor das hipóteses, o rígido controle da participação popular, um dos principais meios de garantir que os resultados almejados fossem alcançados sem alterações relevantes. A essência do acordo de transição trouxe consequências para a amplitude do regime democrático implantado no país.

O projeto de transição conduzido “desde cima” e orquestrado pelas elites políticas gerou como consequência a estruturação de uma democracia basicamente tendo o voto como meio majoritário de exercício da soberania popular. O passado brasileiro de uma transição controlada e as suas implicações para a construção de uma democracia dissociada dos vícios autoritários e voltada para atender aos interesses da população resultou em uma democracia como uma “tarefa inacabada”, na qual os avanços progressistas da constituinte foram obrigados a conviver com resquícios autoritários.

Muitos desses avanços, mesmo antes de começarem a se concretizar, passaram a sofrer ataques com a inserção no país de medidas neoliberais, cujo foco era a priorização das políticas econômicas em detrimento das políticas sociais. O vasto rol de direitos e garantias do novo texto constitucional era entendido como “excesso democrático” inviabilizador da inserção do país na nova ordem mundial globalizada.

Mesmo com a ascensão de outros grupos políticos ao poder, ainda assim o projeto neoliberal não foi abandonado sendo observado, no máximo, uma hibridização deste, numa tentativa de conciliar programas sociais com os interesses do capital. Não obstante os avanços sociais conquistados, ainda assim foram insuficientes para reverter a situação de uma sociedade tão desigual quanto a nossa.

A partir desta porosidade dos diferentes grupos políticos no poder aos ideais neoliberais, associada aos resquícios autoritários da sociedade brasileira, se estabeleceram as condições favoráveis para que a nova forma de neoliberalismo, entendida como “razão de mundo global”, pudesse se espraiar nas mais diversas áreas da existência. Nessa nova etapa na qual estamos inseridos, caracterizada como pós-democracia, os direitos humanos são mercantilizados, os cidadãos são transformados em consumidores despolitizados e a lógica do capital promove a desconstitucionalização e a desdemocratização, tornando frágeis as formas de resistência aos seus interesses.

As ferramentas da democracia são usadas contra sua própria lógica e, no caso do Brasil, isso pôde ser observado pelas constantes reformas constitucionais de grandes impactos para o futuro do país e realizadas sem um debate público amplo e fazendo uso de instrumentos legais. Certos espaços de deliberação política reivindicados pela sociedade civil não são abertos aos cidadãos e, assim, vai sendo construída e fortalecida uma democracia “blindada” às ingerências populares[4].

O recuo democrático no Brasil tem ocorrido já a algum tempo, mas o ritmo acelerado vem desde 2016, e isso se torna cada vez mais evidente analisando os indicadores sociais que apontam para o crescimento da miséria, o acirramento das desigualdades sociais e a precarização das relações de trabalho[5].

É certo que tal situação dificulta a articulação de resistências capazes de impor limites ao exercício do poder do capital nacional e internacional na mercantilização da vida, ainda mais em países periféricos como o nosso marcado por grandes fragilidades sociais. No entanto, a dificuldade não deve ser entendida como sinônimo de impossibilidade.

Contudo, para que essa oposição possa de fato fazer frente a um inimigo tão poderoso quanto à racionalidade neoliberal, fomentada por setores conservadores, é necessário avançar para além dos modelos tradicionais representativos e partidários que reiteradamente se mostram impermeáveis a uma real participação popular, encontrando-se em processo crescente de esgotamento e contribuindo para o aumento das insatisfações que atingem a maior parte da sociedade brasileira.

As crises são momentos de difícil superação e a nossa atual situação já dá importantes sinais de retrocessos profundos no campo econômico, social, político e cultural. Mas também, é possível encarar esses momentos extremos como o motor necessário para tirar a sociedade da inércia e romper com seu papel de submissão.

Para encerrar essa reflexão, faço uso das palavras de Lilia Schwarcz (2018, p. 237) que adverte: “Problema maior é cair no canto da sereia dos governos de verve autoritária, que fazem apelos morais e prometem saídas fáceis. Andamos precisando de menos líderes carismáticos e de mais cidadania consciente e ativa”.

Notas
[1] O termo apareceu pela primeira vez na elaboração filosófica de Jacques Ranciére ainda nos anos 1990, tendo sido mais sistematicamente desenvolvido por Colin Crouch ao longo dos anos 2000.

[2] Expressão trabalhada e aprofundada pelos estudiosos Pierre Dardot e Christian Laval.

[3] Neste ponto cabe ressaltar a relevância de dois autores nacionais que vêm tratando do tema com profundidade: Luciana Ballestrin, que oferece uma interessante revisão da literatura contemporânea sobre pós-democracia e desdemocratização. Outro autor que merece destaque é Rubens Casara (2018) que produz um estudo direcionado para a caracterização do Estado brasileiro como pós-democrático marcado pela ausência de limites ao exercício do poder e à onipotência das elites.

[4] Sob a ótica da participação popular, o conceito trabalhado por Felipe Demier de “democracia blindada” ajuda na compreensão da realidade brasileira. Esse modelo que combina consenso e coerção possui estruturas de funcionamento que não abrem espaço para a participação popular e restringe os núcleos decisórios a espaços exclusivos da classe dominante. Uma série de recursos econômicos, políticos e culturais são utilizados para barrar as demandas populares de caráter reformistas.

[5] Segundo pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019, a extrema pobreza subiu no Brasil e já soma 13,5 milhões de pessoas sobrevivendo com até 145 reais mensais. Atualmente o número de miseráveis no país é maior que a população da Bolívia. (JIMÈNEZ, 2020, on-line)

Referências
BALLESTRIN, Luciana. O debate pós-democrático no século XXI. Revista Sul-americana de Ciências Políticas, Pelotas, v. 4, n. 2, p.149-164, 2018. Disponível em: <https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/rsulacp>. Acesso em: 01 jul. 2019.

CASARA, Rubens R. R. Estado Pós-Democrático: Neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. 240 p.

CROUCH, Colin. Pos Democracia. Madrid: Taurus, 2003. Tradução: Francisco Beltrán.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão de mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. 413 p. Tradução de: Mariana Echalar.

DEMIER, Felipe. Depois do golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad Editora Ltda., 2017. 112 p.

JIMÈNEZ, Carla. “Extrema pobreza sobe e Brasil já soma 13,5 milhões de miseráveis”. El País, 6/11/2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/06/politica/1573049315_913111.html. Acesso em 02.02.2020.

MUSSE, Mariana. Desafios à participação popular no Brasil contemporâneo diante da realidade neoliberal e pós-democrática, 2020. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação da Faculdade Nacional de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 273 p.

Autores

  • é doutora (2020) e mestre (2015) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pós-graduada em Direito Eleitoral pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2009), analista judiciário do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!