Direito Civil Atual

Contribuições do Direito Civil para a ordenação eficiente do espaço urbano

Autor

  • Pedro Eduardo Clemesha

    é advogado; mestrando em Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; bacharel pela mesma instituição; pós-graduado em Direito Privado; e pesquisador vinculado à Rede de Direito Civil Contemporâneo.

1 de novembro de 2021, 10h40

I. Autoritarismo do Estado e ordenação do espaço urbano
A tarefa de ordenação jurídico-política do espaço1 urbano é sem dúvida interdisciplinar.2 Não apenas porque o planejamento da cidade depende de opções políticas que escapam ao limitado âmbito do Direito, mas também porque, na sua dimensão jurídica, é necessária uma comunhão de esforços de diferentes áreas do Direito. Uma adequada disciplina da cidade precisa, então, para sua funcionalidade, conjugar institutos e conceitos hauridos do Direito Público com outros hauridos do Direito Privado: é evidente a necessidade de uma interface entre, principalmente, o Direito Administrativo e o Direito Civil.

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Não é fácil, contudo, identificar o preciso papel que o Direito Civil e seus cultores devem assumir nessa construção comum.

De um lado, na ordenação do espaço urbano as antigas formas de vida e seus instrumentos jurídicos tradicionais são desafiados por diversos fatores disruptivos. Por outro, a ordenação do espaço urbano sempre expressa uma dimensão estética do poder do Estado, e a história do urbanismo não desconhece momentos de apequenamento da sociedade civil em que o anseio estético do Estado resvalou em arroubos autoritários à liberdade individual, à propriedade privada e às prerrogativas jurídicas da pessoa.

Dessa forma, se, de um lado, os civilistas devem cumprir um papel de adaptação e atualização do objeto de sua ciência ao tempo presente, de outro, devem assegurar a conservação da esfera individual de direitos dos cidadãos, e a manutenção da autonomia privada.

Por sua vez, o Direito Administrativo não pode ignorar o fato de que os particulares são verdadeiros protagonistas e não meros espectadores do processo de urbanização. Reconhecer o protagonismo da sociedade civil na conformação do espaço urbano, como pressuposto descritivo básico do processo de urbanização, não significa negar ao Estado o papel de ordenador por excelência, a nível deôntico. Porém, o Estado não é o concretizador por excelência do processo de urbanização. Esse posto pertence à sociedade civil.

Bem por isso, o Estatuto da Cidade e a maior parte das Lei Orgânicas Municipais por vezes se revelam, na prática, ineficazes na ordenação da cidade, pois disciplinam a urbanização pela óptica quase que exclusiva da atuação do Estado, desconsiderando o fato de que o processo de urbanização será concretizado, em larga medida, por meio de relações privadas. A política urbana, por conseguinte, precisa contemplar uma maior articulação entre os setores público e privado, e a Administração Pública precisa, na sua consecução, buscar soluções pragmáticas que tenham por finalidade harmonizar o interesse público com os interesses privados legítimos. Naturalmente, a dificuldade está nos meios.

Nessa esteira, a disciplina jurídica dos loteamentos pode ser um poderoso instrumento de ordenação do espaço urbano e de implementação de infraestrutura de qualidade. Tema de especial relevância e atualidade é o da disciplina das “áreas públicas” nos loteamentos, que se mostra, à luz das considerações acima tecidas, como uma oportunidade para o Direito Civil contribuir com a ordenação eficiente do espaço urbano.

II. Breve panorama do loteamento como atividade econômica e como categoria jurídica
O loteamento, enquanto atividade econômica,3 surge de forma organizada já na primeira metade do século XIX. Na França oitocentista, a aspiração da ascendente burguesia industrial ao luxo das grandes propriedades aristocráticas4 levou ao surgimento dos primeiros loteamentos urbanos nas redondezas de Paris, simultaneamente à notória reforma urbana da capital francesa levada a cabo pela vontade do Imperador Napoleão III e pelo gênio de Georges-Eugène (Baron) Haussmann.

Não tardou para que, notadamente após a Primeira Guerra Mundial, se proliferassem na França os loteamentos voltados ao público de baixa renda, muitas vezes com escasso ou nenhum planejamento hídrico ou integração urbana, e sem a reserva de áreas comuns. Essa urbanização caótica em “lotissements défectueux”, resultante do parcelamento desregrado ou a non domino do solo, contribuiu para a superveniência da Lei Cornudet (de 1919) a primeira lei propriamente urbanística da França, que impôs uma série de regras e limitações de direito público ao direito de lotear e ao direito de construir sobre os lotes derivados, atribuindo pela primeira vez conotação jurídica à palavra lotissement.

Antes de 1919, os loteamentos eram juridicamente viabilizados exclusivamente por meio de contratos de direito privado, sem qualquer ingerência do Estado.

Waldemar Ferreira5 preleciona que, já na pioneira legislação francesa, os loteamentos eram caracterizados a partir de três elementos fundamentais: (i) divisão dos terrenos em parcelas; (ii) intenção do proprietário de vender ou alugar as parcelas; (iii) abertura de ruas novas; elementos estes aos quais os tratadistas acrescentaram ainda um quarto: (iv) edificação de construções para o uso e habitação.

A legislação brasileira tardou a acolher uma definição clara de loteamento. Foi com o advento da Lei n. 6.766 de 1979 (Parcelamento do Solo Urbano), que representou um marco na legislação urbanística pátria, que passou-se a definir loteamento como “a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes”, não escapando dos quatro núcleos conceituais reconhecidos pelos juristas franceses.

A Lei de Parcelamento do Solo Urbano traz, ao lado da figura do loteamento, o desmembramento enquanto “subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com aproveitamento do sistema viário existente, desde que não implique na abertura de novas vias e logradouros públicos, nem no prolongamento, modificação ou ampliação dos já existentes”.

III. Novas formas de habitação urbana e a necessidade de uma disciplina adequada das áreas públicas nos loteamentos
É importante observar que as áreas públicas nos loteamentos, compreendidas em sentido bastante lato, podem ser de titularidade do Estado6, de concessionárias de serviço público,7 ou de particulares (área comum do condomínio).8

Os conceitos de parcelamento e de desmembramento, trazidos pela Lei de Parcelamento do Solo, deveriam se articular adequadamente com a legislação condominial. Contudo, o modelo de condomínio subjacente à Lei 4.591 de 1964 é o condomínio edilício, intimamente relacionado à atividade de incorporação imobiliária: o incorporador edifica as unidades autônomas e as áreas de uso comum que integrarão o condomínio. É isso o que se depreende do art. 9º do referido diploma. 9

Pela conjugação da Lei de Parcelamento do Solo com a Lei do Condomínio, tem-se, portanto, o loteamento como antecedente lógico à incorporação imobiliária e à constituição do condomínio (embora esta última não seja necessariamente subsequente à incorporação).

Ocorre que, nas últimas décadas do Século XX, o país assistiu à popularização de modelos de condomínio bastante diversos daquele idealizado originalmente pelo legislador.

Notadamente, duas figuras que muito se popularizaram no Brasil, inclusive enquanto verdadeiros modelos de negócio, escapam a essa sistemática: o condomínio de lotes e o condomínio de acesso controlado.

De plano se pode constatar que a definição de condomínio trazida pela Lei Caio Mário é incompatível com a figura do condomínio de lotes não edificados. Para além de um problema conceitual, o modelo de negócio é totalmente distinto. Principalmente no tocante à disciplina das áreas públicas nos loteamentos, parece bastante evidente que a sistemática da doação compulsória de um porcentual da gleba ao Estado, para destinação a áreas de uso comum do povo (lógica que sequer faz sentido na sistemática do condomínios em geral, em que as áreas comuns são de propriedade do condomínio) se torna acentuadamente incompatível com os condomínios de acesso controlado, em que as áreas comuns, por definição, não são de livre acesso à população em geral.

Esse descompasso entre a legislação e a realidade das novas formas de habitação nas cidades foi percebido pelo legislador. A lei n. 13.465 de 2017, a chamada “Lei da Reurb”, traz diversas inovações importantes para o direito urbanístico e mais especificamente para o regime condominial e para o regime dos loteamentos.

Uma das novidades, que em parte resolve o referido descompasso, é o advento da disciplina jurídica do condomínio de lotes. 10

Também constitui importante inovação a recepção da figura do loteamento de acesso controlado. Os “condomínios fechados” finalmente receberam tratamento legislativo próprio, pela reforma trazida à Lei de Parcelamento do Solo. 11

No entanto, as inovações legislativas não resolvem grande parte dos problemas práticos de articulação e harmonização entre os diplomas normativos citados. Algumas das principais questões que se colocam dizem respeito à natureza jurídica do condomínio de lotes (seria essa uma nova modalidade de parcelamento do solo?), e à disciplina jurídica adequada dos espaços públicos no condomínio de lotes, especialmente nos loteamentos de acesso controlado.

Isso porque, nessas áreas, conforme já se aduziu, o controle de acesso desvirtua a antiga ratio legis de obrigar o particular loteador a uma “compensação” social por meio de destinação de áreas do loteamento à construção de bens que seriam autenticamente públicos, de uso comum do povo ou de uso especial da administração.

À guisa de conclusão, observa-se a importância de a dogmática jurídica trilhar seu caminho e sua evolução com base, de um lado, no direito posto, e, de outro, na necessidade de compatibilização das novas formas de vida com as inveteradas formas jurídicas. As inovações legislativas trouxeram avanços, e redefiniram, em última análise, a moldura normativa que deve orientar a solução da problemática disciplina das áreas públicas nos loteamentos, compreendidas estas no sentido lato acima explicado. Fornecer subsídios ao preenchimento da moldura, agora, cabe à dogmática.

Nos parece indubitável que a disciplina jurídica dos loteamentos pode ser um poderoso instrumento de ordenação do espaço urbano e de implementação de infraestrutura de qualidade, e com ela o Direito Civil tem muito a contribuir.


1 Opta-se pelo emprego do termo espaço, e não do termo solo, pois a noção de espaço, que conta com grandes subsídios teóricos da Geografia, é muito mais compreensiva e expressa melhor o objeto da ordenação que se pretende pelas vias legislativa e executiva.

2 “Interdisciplinaridade é a combinação entre duas ou mais disciplinas com vista à compreensão de um objeto a partir da confluência de pontos de vistas diferentes” TOMASEVICIUS, Eduardo. et. al. Augusto Guzzo Revista Acadêmica, São Paulo, v. 1, n. 19, p. 162-172, jan./jun. 2017. p. 164.

3 Isto é, o parcelamento do solo com abertura de ruas novas, com vistas à alienação de unidades parcelares, tendo por objetivo a geração de valor.

4 Na história da arquitetura, essa tendência se expressa na popularidade dos estilos neogótico e neorrenascentista na urbanização da França durante o Segundo Império.

5 FERREIRA, Waldemar. O loteamento de terrenos urbanos de propriedade particular e o domínio público dos espaços livres. Revista Da Faculdade De Direito, Universidade De São Paulo, vol. 47, dez. 1951. p. 131.

6 Podem ser bens públicos de uso comum do povo (rios, estradas, ruas, praças etc.), bens públicos de uso especial (escolas públicas, hospitais públicos, asilos públicos etc.), ou eventualmente podem ser mesmo bens dominicais (pense-se no caso de áreas doadas ao município, mas que não receberam qualquer destinação).

7 São as áreas afetadas à prestação de serviços públicos, que podem inclusive ser edificadas (estações elevatórias de água e esgoto, subestação de energia etc.).

8 Nessa hipótese, a área comum pode ser de titularidade de condomínio edilício horizontal, ou de condomínio de lotes, ambos podendo ser de acesso livre ou controlado. A distinção pode ser relevante caso se entenda que o condomínio de lotes e o condomínio de acesso restrito devem ter tratamento diverso do previsto na lei de parcelamento do solo, especialmente no tocante à doação obrigatória ao município de fração do terreno que se pretende lotear.

9 Art. 9º Os proprietários, promitentes compradores, cessionários ou promitentes cessionários dos direitos pertinentes à aquisição de unidades autônomas, em edificações a serem construídas, em construção ou já construídas, elaborarão, por escrito, a Convenção de condomínio, e deverão, também, por contrato ou por deliberação em assembléia, aprovar o Regimento Interno da edificação ou conjunto de edificações.

10 Por força da lei, o Código Civil Brasileiro passa a viger com o acréscimo do art. 1.358-A.

11 As inovações constam dos §§ 7º e 8º do Art. 2º da Lei, bem como do § 4º de seu art. 4º.

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  • é advogado; mestrando em Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; bacharel pela mesma instituição; pós-graduado em Direito Privado; e pesquisador vinculado à Rede de Direito Civil Contemporâneo.

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