Opinião

Consenso sobreposto razoável no combate à Covid-19 no Brasil

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31 de março de 2021, 13h35

A recente Lei Federal nº 14.125, promulgada no último dia 10, a qual dispõe sobre a aquisição e distribuição de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado, possibilita uma discussão fértil sobre a compreensão da sociedade como um sistema equitativo de cooperação. Para tanto, serão empregadas algumas reflexões do pensador John Rawls que podem contribuir para o aprimoramento de um debate público, racional e contemporâneo sobre o tema.

Contextualizando as inovações normativas, tem-se a atual possibilidade de as empresas privadas adquirirem diretamente (leia-se importação) vacinas contra a Covid-19, com as seguintes condições: a) que sejam doadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), a fim de serem utilizadas no Plano Nacional de Imunização (PNI); e b) que, após o término da imunização dos grupos prioritários previstos, possam distribuir e aplicar vacinas em qualquer estabelecimento ou serviço de saúde, desde que faça a doação de 50% das vacinas ao SUS e utilize as demais de forma gratuita.

Não há dúvida de que essa situação levanta várias questões de ordem moral, de modo que ficam evidenciadas algumas funções da Filosofia Política, conforme defende Rawls, tais como a resolução de conflitos políticos profundamente controversos e o modo como um povo pensa o conjunto de suas instituições políticas e sociais (função de orientação) [1].

Duas questões fundamentais se sobressaem: a decisão de autorizar empresas privadas a essa aquisição de vacinas é justa? Em caso afirmativo, através de que critérios de justiça ela se orienta?

Como referenciais teóricos para solução, serão utilizados alguns conceitos empregados por John Rawls, que embasam sua "teoria da Justiça como equidade", encontrados nas obras "Teoria da Justiça", "Justiça como Equidade" e "Liberalismo Político".

Antes disso, é indispensável apresentar como está organizado o sistema de saúde no Brasil. Por um lado, o direito à saúde está consolidado na Constituição Federal como um direito social e dever do Estado, o qual deverá ser "garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação" [2].

Em outro artigo constitucional, reconhece-se que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada [3].

Em termos gerais, o arranjo institucional vigente no país reconhece o direito à saúde tanto como um dever do Estado, o qual deve cumprir suas obrigações através de critérios de justiça distributiva (aqui, consta o princípio da integralidade na assistência à saúde [4]), quanto uma atividade econômica livre à iniciativa privada (sob a lógica da justiça alocativa).

De modo usual, o Sistema Único de Saúde enfrenta vários desafios por sua complexidade e críticas por má gestão e baixa qualidade do serviço prestado para a maior parte da população. Contudo, a justificativa moral que se apresenta para os serviços privados nessa área é que as pessoas com mais condições financeiros retiram a pressão sobre o sistema universal público de saúde ao optarem pela utilização de assistência particular à saúde.

Na área de imunização, o Brasil é exemplo mundial em campanhas de vacinação pública, sem impedir, no entanto, que a iniciativa privada ofereça o mesmo serviço de maneira complementar.

Ocorre que a pandemia do Covid-19 tem contornos e desdobramentos inéditos. E a atuação estatal deve ser analisada sob um enfoque claro quanto à sua correção moral, eficiência e estabilidade.

A solução intuitiva para o controle da proliferação do vírus e para o retorno progressivo à normalidade é a imunização maciça da população. O Estado brasileiro tem esse dever constitucional de viabilizar campanhas de vacinação, através de padrões epidemiológicos que atendam ao critério da justiça distributiva da necessidade prioritária de cada grupo de pessoas.

Contudo, por uma série de intercorrências de natureza política, o governo federal não vem coordenando um serviço de logística (desde a importação até a distribuição dos insumos) para a imunização da população num ritmo adequado. Diante desse quadro, inovou-se na ordem jurídica para possibilitar a importação direta de vacinas por empresas privadas.

A justificativa, em momento algum, deu-se por limitações orçamentárias. Não se duvida da capacidade do Estado de levantar recursos financeiros, mesmo que mediante endividamento público, para oferecer um serviço de imunização universal e gratuito. Dito de outro modo, a justificativa para a participação da iniciativa privada não foi, nem poderia ser, alguma omissão ou deficiência financeira estatal.

Em verdade, o cenário político apontava uma conjuntura diplomática delicada entre o Brasil e países produtores das vacinas, bem como a demora na sua adesão ao consórcio da Organização Mundial de Saúde para a compra de vacinas. Nesse contexto, a participação de empresas privadas pode prestar uma cooperação essencial na aquisição e distribuição das vacinas contra a Covid-19.

Além disso, as condições impostas à iniciativa privada de obrigação de doação integral de todas as compras até que sejam vacinados todos os grupos prioritários (algo em torno de 77 milhões de pessoas [5]), para que, só então, seja permitida a aplicação particular, desde que gratuita, afastam a conclusão de que o Estado brasileiro tenha formatado um modelo com prioridades econômicas no enfrentamento dessa crise sanitária pandêmica.

Nesse momento, respondem-se as duas perguntas: é justa a decisão de autorizar empresas privadas a fazer essa aquisição de vacinas?

Em que pese a complexidade do tema e a brevidade dessas reflexões, entende-se de maneira afirmativa, por reconhecer o valor do aspecto temporal na eficiência da resposta contra a pandemia. Não cumprindo o Estado com sua obrigação constitucional, a cooperação social surge como uma alternativa e como um dever de todos, de modo que as ações privadas se contextualizam com um critério realista de justiça [6].

Sendo positiva a primeira resposta, cabe ponderar o critério de justiça mais adequado ao caso: se as empresas privadas agem a partir de uma visão utilitarista de seus próprios interesses; ou se cumprem a visão de Rawls sobre a justiça como equidade, na medida em que dão aplicação, especialmente, ao princípio da diferença.

Como recurso teórico para orientar a solução, articula-se o conceito de consenso sobreposto de John Rawls.

Para ele, essa noção de consenso torna a visão de uma sociedade bem-ordenada mais realista e a ajusta às condições históricas e sociais de sociedades democráticas [7].

Seu propósito é justificar que uma concepção política pública de justiça (a sua intenção deliberada é a de apresentar um conceito substancial de justiça) pode conviver com um pluralismo razoável de visões de mundo (que ele define como doutrinas abrangentes). Assim, questões fundamentais de justiça política podem estar alicerçadas em concepções morais, religiosas e filosóficas razoáveis, embora opostas [8].

A esse arranjo duradouro e com um corpo significativo de adeptos, Rawls definiu como consenso sobreposto. São teoremas das teorias abrangentes de justiça de cada cidadão.

Assim, uma sociedade bem-ordenada, regulada por uma concepção pública de justiça, precisa ser endossada por doutrinas abrangentes muito diferentes e até irreconciliáveis [9]. Daí a convicção de que sua concepção de justiça como equidade é o exemplo mais elaborado da teoria da escolha racional.

Aproximando esses conceitos da hipótese da importação de vacinas pela iniciativa privada, a motivação de cada empresa é irrelevante para a avaliação da correção moral da lei. De fato, quer seja por buscar vacinar seus empregados, executivos ou familiares, quer seja por sua vontade de retomarem as atividades econômicas mais rápido (essas visões utilitaristas), ou quer seja por sua compreensão de dever de cooperação com o bem comum (visão kantiana), essas justificativas integram o campo das doutrinas abrangentes de mundo inerente a cada um.

O que importa, efetivamente, é que o modelo adotado pela Lei nº 14.125/2021 faz com que pessoas com mais capacidades de adquirir vacinas no mercado internacional promovam a aceleração da imunização dos grupos prioritários, integrados por pessoas com maiores riscos de letalidade.

Sendo assim, defende-se a tese de que a importação de vacinas por empresas privadas atende, por empréstimo da teoria da justiça de Rawls, aos seus dois princípios de justiça, na medida em que se permite, não se obriga a aquisição (princípio da liberdade). E se cumpre o princípio da diferença, porque a ação da iniciativa privada pode promover maior benefício aos membros mais desfavorecidos da sociedade (no caso, de todos os grupos prioritários).

 

Referências bibliográficas
RAWLS, John. Uma teoria da justiça; 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

______. Justiça como Equidade. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

______. Liberalismo Político. 2ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2000.

WALZER, Michael. As esferas da Justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

 

[1]     RAWLS, John. Liberalismo Político, pg. 05.

[2] artigo 196, caput, da CF.

[3] artigo 199, caput, da CF.

[4] artigo 7º, II, da Lei Orgânica da Saúde: "II – integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema".

[6] Para tanto, vale aprofundar os estudos a partir da visão comunitarista de Michael Walzer, apresentado em sua obra Esferas da Justiça.

[7] RAWLS, John. Justiça como equidade, pg. 44.

[8] RAWLS, John. Justiça como equidade, pg. 45.

[9] RAWLS, John. Justiça como equidade, pg. 48.

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