Opinião

Afinal de contas, nem tudo são flores...

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29 de março de 2021, 19h21

A mulher, ao longo da história e em todos os lugares, tem sido submetida à dominação e à violência, fato amplamente documentado e que se reflete na literatura e nas artes.

Encontramos, com fartura, obras reprodutoras de mensagens machistas, como aquela que traz o refrão "se te agarro com outro te mato, te mando algumas flores e depois escapo", do compositor argentino Cacho Castaña. É o macho traído que se arvora no direito de matar a mulher, envia flores para o enterro por puro escárnio e, ao final, exalta sua impunidade.

Apesar de menos abundante, há obras que denunciam a violência e, para usar um exemplo também com flor, há uma célebre canção de Noel Rosa e Francisco Alves que proclama: "Na mulher não se dá nem com uma flor". A letra, mais adiante, reforça a falta de razão do agressor: "Embora haja o que houver, eu me sinto sem razão batendo na mulher".

Coexistimos com a violência de gênero e aqui o foco é aquela praticada pelo homem contra a companheira, violência que tem como características a repetição e a escalada em termos de gravidade, cujo ápice é o feminicídio.

Mulheres, de uma forma geral, gostam de flores. Não aquelas da canção de Castaña, enviadas por zombaria e consagração de um assassinato. Porém, as flores presenteadas pelo companheiro abusivo podem ser uma sinistra armadilha, como aquela decantada no poema "I Got Flowers Today", de Paulette Kelly.

Nesses versos, apesar de não ser seu aniversário e nenhuma outra data especial, a mulher recebia flores de seu companheiro, com quem, na véspera, havia tido a primeira discussão. Depois, recebia flores de novo, dessa feita após ter sofrido agressões físicas na noite anterior. Posteriormente, mais flores, só que dessa vez as agressões tinham sido ainda mais graves. Outro dia, mais flores, afinal tinha sido mais uma vez agredida e também ameaçada de morte. Mais flores por outra agressão, pior do que as anteriores, e a vítima chega a cogitar a separação, mas tem vários medos. A mulher sempre, ao final de cada estrofe, manifestava seu entendimento de que as flores eram um pedido de perdão. Até que chegou o último buquê. Não são as flores derradeiras porque o casal se separou, mas porque a mulher não conseguiu vencer o silêncio e buscar ajuda a tempo. Assassinada na véspera, essas últimas flores foram enviadas pelo abusador, só que agora para seu funeral. Até lembra o refrão de Carlos Castaña.

O poema de Paulette retrata o ciclo de violência e perdão, que marca a relação abusiva do agressor com a vítima, e traz importante mensagem à mulher agredida, que é não adiar as ações que podem lhe salvar a vida.

Hoje, sabendo-se, como cantou Noel, que um homem não bate em mulher nem com uma flor, esteja a mulher sempre alerta, pois, afinal, nem tudo são flores… E nem precisa ser.

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