Opinião

A 'Guerra dos Mundos' e o Direito

Autor

  • Alfredo Attié

    é presidente da Academia Paulista de Direito titular da Cadeira San Tiago Dantas pesquisador e doutor em Filosofia da USP.

26 de março de 2021, 17h05

"I see the busy multitudes and it comes across my mind that they are but the ghosts of the past, haunting the streets that I have seen silent and wretched, going to and fro, phantasms in a dead city, the mockery of life in a galvanised body"

Um conflito entre juristas ou profissionais do Direito não pode mais ser adiado. Não são apenas posições diferentes em relação aos métodos — de imparcialidade e constitucionalidade ora em discussão — das chamadas operações anticorrupção, especialmente a "lava jato", cuja oposição talvez represente a face visível do conflito. Não acho que exagero ao definir esse confronto como a guerra de dois mundos, que têm muita dificuldade de se comunicar entre si, mais ainda de conversar com os que consideram — a meu ver, erroneamente — apenas espectadores, consumidores e vítimas de uma Justiça que está muito longe de poder ser considerada bem preparada, isso não apenas em nosso país.

O Brasil vive uma situação de injustiça permanente. Desanima a todos que não se faça justiça prontamente, corrigindo erros evidentes. Revolta mais que boa parte dos responsáveis pela Justiça se perca em debates intermináveis, valorizando mais visões próprias do que as da sociedade. Instituições e seus agentes parecem reivindicar o direito a viver em um mundo alheio ao que ocorre e às mudanças e necessidades da sociedade brasileira. Erram ao se pretenderem representantes de um moralismo defasado e ao se desejarem auto preservar. Antes, escondiam-se atrás dos autos dos processos, que — diziam — resumiria o que do mundo devia ser conhecido. Hoje, porém, sabemos que nada é assim: decisões são tomadas segundo paixões, motivos e interesses que transcendem as normas, somente depois sendo buscados argumentos racionais.

Esse é um dos lados da disputa, que oferece à sociedade o culto a atos e heróis individuais, que podem tudo, desde que os fins sejam desejados pela parte da sociedade que vive a frustração dos sonhos como rancor em relação à diversidade dos modos de existência, que aflora com muita energia. Quer ensinar às massas o que considera certo e errado, conformá-las a uma visão oficial, parcial e arbitrária.

Já o outro lado reivindica uma mudança do modo de ser e agir da Justiça, seguindo uma postura de observação e escuta. É preciso que as vítimas de injustiças, que são muitas e disseminadas na sociedade, expressem-se, desenhando o que consideram melhores caminhos; que o perfil dos profissionais do Direito se modifique, abrindo espaço para o ingresso nas carreiras públicas de quem constitui a maioria da sociedade brasileira, que vive nas periferias e ambientes invisíveis da pobreza e da humilhação, a etnias e gêneros discriminados, ressignificando ainda justiça e segurança, que se conformam à proteção dos proprietários e a violência contra todos os outros. Essa parcela dos profissionais do Direito tende a defender com mais afinco os princípios constitucionais, a reconhecer o protagonismo coletivo, a implicação entre o modo de ser da sociedade e os serviços que o Estado deve oferecer.

Diferenciam-se os lados, assim, pelo fator fundamental de obediência à Constituição e seu fundamento na soberania popular. Segundo esse princípio, o jurista não pode ser protagonista do jogo político: todo poder tem origem no povo, sendo exercido de modo direto (conselhos, petições, representações, Habeas Corpus, habeas data, júris), semidireto (leis de iniciativa popular, referendos, plebiscitos) e por representação legitimada pela eleição. Para o primeiro lado, esse princípio vale pouco, pois acha moderno que juristas imponham o que é e não é direito. Para o segundo lado, porém, a Justiça, atributo da sociedade, é a capacidade política em movimento. Os primeiros se consideram superiores. Os últimos, apenas iguais, trabalhando de modo convicto, mas discreto.

Na "Guerra dos Mundos", H.G. Wells imaginou a ação da inteligência superior marciana, que, julgando com rigor fraquezas e consequências da desrazão humana, resolveu dizimar-nos. Ninguém se pode colocar nessa posição externa e superior, impondo-nos o que pretende. Simples humanos, não queremos essa guerra, mas perseverar na construção da cidadania.

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