Opinião

A necessária revisitação do paradigma firmado no REsp n° 1.339.313/RJ

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23 de março de 2021, 7h13

Em junho de 2013, a 1° Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou, sob a sistemática dos recursos especiais repetitivos, o Recurso Especial n° 1.339.313/RJ (Tema n° 565), de relatoria do ministro Benedito Gonçalves, oportunidade em que firmou a tese segundo a qual "a legislação que rege a matéria dá suporte para a cobrança da tarifa de esgoto mesmo ausente o tratamento final dos dejetos, principalmente porque estabelece que o serviço público de esgotamento sanitário somente existirá quando todas as etapas forem efetivadas, tampouco proíbe a cobrança da tarifa pela prestação de uma só ou de algumas dessas atividades" [1].

Pensamos ser oportuno revisitar esse precedente, a fim de compatibilizar o deslinde nele estampado com o novo marco regulatório do setor (Lei n° 14.026/2020).

Para tal, necessário um breve escorço fático considerado pelo STJ na edição do paradigma.

Na origem, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro havia sedimentado entendimento no sentido de ser devida a repetição de indébito da tarifa de esgoto, em desfavor da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Estado do Rio de Janeiro (Cedae), ante a incontroversa ausência de esgotamento sanitário em determinadas localidades.

Com arrimo na alínea "a" do permissivo constitucional, a parte recorrente alegava o malferimento do artigo 3º da Lei n° 11.445/2007, ao fundamento de que os dejetos produzidos nos imóveis são encaminhados a galerias nas quais recebem tratamento sob sua exclusiva responsabilidade, em fase complementar da prestação do serviço, circunstância que justificaria a cobrança da exação integralmente.

A corte superior, então, encampou os argumentos suscitados no especial interposto pela estatal fluminense, entendendo, por maioria, pela legalidade da cobrança da tarifa de esgoto, ainda que não realizado o tratamento final dos dejetos.

O relator concluiu pela existência de suporte legal para a tarifação do serviço mesmo quando não procedido o completo tratamento sanitário dos dejetos, "principalmente porque não estabelece que somente existirá serviço público de esgoto sanitário quando todas as etapas estiverem presentes, tampouco proíbe a cobrança da tarifa pela prestação de uma só ou de algumas destas atividades", no que foi acompanhado quase pela totalidade do colegiado.

Contudo, com a edição da Lei n° 14.026/2020, o chamado Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico, foram promovidas significativas mudanças na Lei n° 11.445/2007, diploma que serviu de fundamento ao apontado precedente.

Isso porque, consoante se extrai da exposição de motivos do Projeto de Lei n° 41.162/2019 [2], o legislador, além de buscar a captação de recursos privados fruto incontestável da política econômica verificada atualmente no país , preocupou-se com a promoção da eficiência do setor, por meio do aperfeiçoamento da atividade regulatória, o que, por conseguinte, reflete na qualidade e nos preços dos serviços.

Tal política pública se mostra extremamente conveniente, porquanto é patente o fracasso da Lei n° 11.445/2007 em atingir o ideal de desenvolvimento em matéria de saneamento básico muito embora o diploma tenha, segundo Artur Porto Alegre, o mérito de alçar o abastecimento d'água e o esgotamento sanitário à sua "maioridade" enquanto serviços públicos [3].

Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), extraídos, ainda, da exposição de motivos do PL n° 41.162/2019, apontam que apenas 52,2% dos brasileiros são servidos por coleta de dejetos ou fossa séptica, e mesmo tais usuários não têm garantido o adequado tratamento do esgoto; é dizer: o serviço público é prestado de forma limitada e deficitária, e, mesmo quando prestado, é, em muitos casos, incompleto.

Esse quadro, que perdura até os dias atuais, era, justamente, o substrato fático da controvérsia examinada no julgamento do repetitivo em comento. Em outras palavras, os consumidores, ao testemunharem o descaso com o manejo dos dejetos produzidos em suas residências, fruto da falha na atividade desempenhada pela Cedae, passaram a questionar a legalidade da tarifação do serviço ressalte-se que nem mesmo a sociedade de economia mista, em suas razões recursais, pôs em xeque, categoricamente, a incompletude na prestação do serviço, cingindo-se a defender a higidez da cobrança em função da manutenção e desobstrução das ligações de esgoto, e do tratamento do lodo formado nos ductos, o que, como decidido no exame do Tema n° 565, pelo Superior Tribunal de Justiça, foi suficiente para justificar a cobrança tarifária plena.

Ocorre que a mensuração da remuneração da concessionária deve ser enxergada não sob a óptica da unidade consumidora (que, decerto, deve arcar com os custos, a manutenção e expansão do serviço), mas, sim, sob a perspectiva da adequada e efetiva prestação do esgotamento sanitário em todas as suas fases, mormente face ao disposto nos artigos 3º, I, "b", e 30, III, da Lei n° 11.445/2007, alterados pela Lei nº 14.026/2020.

Com efeito, a novel redação do artigo 3º, I, "b", do estatuto dispõe que o esgotamento sanitário é "constituído pelas atividades e pela disponibilização e manutenção de infraestruturas e instalações operacionais necessárias à coleta, ao transporte, ao tratamento e à disposição final adequados dos esgotos sanitários, desde as ligações prediais até sua destinação final para produção de água de reúso ou seu lançamento de forma adequada no meio ambiente". Da leitura conjugada com a redação anterior do dispositivo, percebe-se que o legislador cuidou em priorizar a produção de água de reuso estendida, igualmente, à disciplina contratual da matéria, conforme o artigo 10-A do mesmo estatuto , bem como assegurou que o lançamento do produto no meio ambiente deve se dar de forma adequada.

Por sua vez, o artigo 30, III, da Lei de Diretrizes Nacionais para o Saneamento Básico, mediante o emprego da expressão "considerará", estampa, hodiernamente, a imposição da quantidade mínima de utilização, do adequado atendimento dos usuários, e da proteção ambiental como fatores determinantes da política remuneratória do serviço de saneamento básico.

Diante desse contexto normativo, mesmo ainda vigente o Decreto n°  7.217/2010 norma regulamentadora das diretrizes nacionais para o saneamento básico, que serviu de lastro interpretativo para a conclusão alcançada pelo Superior Tribunal de Justiça , entendemos que não mais se sustenta a afirmação de que a legislação de regência deixa margem à prestação efetiva do serviço de saneamento básico sem a efetivação de todas as etapas a ele atinentes. Consequentemente, não cabe a imposição do pagamento in totum da tarifa de água e esgoto aos usuários que não têm acesso a um serviço íntegro, por deficiências atribuíveis à própria prestadora e ao poder público.

Conclusão distinta, à vista das recentes alterações legislativas no tema, impõe um duplo ônus aos consumidores, fático e financeiro, uma vez que não receberão a serventia apropriada, mas terão dispêndios como se assim fosse.

Ademais, partindo do conceito objetivo de serviços públicos, consagrado nas sempre festejadas lições de Celso Antônio Bandeira de Mello [4], a utilidade ou comodidade material, oferecida mediante sua prestação, interessa a toda coletividade. Tal compreensão ganha especial relevo quando se fala no saneamento básico sob a perspectiva ambiental, cuja abordagem como direito fundamental, nos moldes do artigo 225 da Constituição da República, revela a urgente necessidade de melhorias e investimentos no que toca ao destino dos dejetos sanitários, o qual reverbera, sem dúvidas, na saúde da população, e põe por terra o fundamento perfilhado pela 1ª Seção do STJ, de que o tratamento final de efluentes seria mera fase "posterior e complementar" do serviço.

Nesse toar, concluímos, a partir das transformações no espírito da Lei n° 11.445/2007, promovidas pelo Novo Marco Legal do Saneamento Básico (Lei n° 14.026/2020), ser oportuno que o Superior Tribunal de Justiça se debruce novamente sobre a controvérsia da legalidade da cobrança da tarifa pela prestação de uma ou somente de algumas das etapas do esgotamento sanitário, e reflita sobre a tese firmada no julgamento do RE n° 1.339.313/RJ.

 


[1] REsp 1339313/RJ, relator ministro Benedito Gonçalves, 1° seção, julgado em 12/06/2013, DJe 21/10/2013. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=201200593117. Acesso em 12.03.2021.

[3] O Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico / Augusto Neves Dal Pozzo, coordenação. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 119-134.

[4] Serviço Público e Concessão de Serviço Público. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 35-37.

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