Segunda Leitura

Reflexões sobre o Ministério Público no pós-Covid-19

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

21 de março de 2021, 8h02

A Covid-19 pegou-nos de surpresa, estendeu-se no tempo e põe-nos a pensar sobre o novo normal. Muitas são as dúvidas, poucas as certezas. Mas, inquestionavelmente, ela criou impactos profundos no ambiente social, político e econômico, impactos esses que sequer sabemos o alcance. Como não podia deixar de ser, a Administração Pública também está, e continuará sendo atingida pelas mudanças

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No quadro que ora se apresenta, o Ministério Público não é exceção. De órgão sem estrutura e prerrogativas até 1988, passou a ser, com os poderes que lhe deu a Constituição, protagonista de relevo. Todavia, o enorme reconhecimento que conquistou chegou a um ponto de estabilidade. E outras carreiras avançam em espaços que, outrora, eram seus (Defensoria Pública e AGU).

Por isso, adaptar-se e planejar o futuro é o que se tem a fazer, ainda que, repentinamente, novas cepas e novos fatos possam surgir no horizonte, criando uma nova realidade. Vejamos.

O artigo 43, inciso X, da Lei Orgânica Nacional do MP, exige que o promotor de Justiça resida na comarca. Contudo, justifica-se a exigência se os processos forem online? A norma, relevante em um município de porte menor, tem algum significado em uma cidade na periferia de uma capital, com 800 mil habitantes? Deve ser mantida? Abolida? Flexibilizada? Vejamos um caso que retrata os novos tempos.

A unidade do MP Federal em Ponta Porã (MS), cidade que conta com subseção da Justiça Federal, foi transferida para Dourados, a cem quilômetros de distância. Motivo? A insegurança dos procuradores e servidores do órgão, porque a sede ficava a 350 mestros da fronteira com o Paraguai, sendo a violenta região dominada por organizações criminosas. Mas, como ressaltou o Campo Grande News, "a saída do órgão federal da cidade tem uma forte simbologia: o Estado que pede para sair diante do crime" [1].

Aspecto bem mais ameno e que passa por mudanças também, é o da liturgia dos atos solenes no órgão e no Poder Judiciário. A liturgia, que tem sua origem nas práticas da Igreja Católica, é definida pelo dicionário online como "conjunto dos modos usados no desenvolvimento dos ofícios e/ou sacramentos; rito ou ritual" [2]. Com forte simbologia no Poder Judiciário, ela se constitui de regras legais ou tácitas. Assim, por exemplo, as vestes talares dos atores no julgamento têm por finalidade dar-lhe um caráter solene e que imponha respeito.

Pois bem, como será a liturgia nos julgamentos online? Há prenúncios de informalidade, como o uso de roupas esporte e o tratamento informal na segunda ou terceira pessoa? Qual é o limite? Levaremos aos atos solenes a vulgaridade dos bares?

Na mesma linha, a arquitetura judiciária. O juiz francês Antoine Garapon, estudioso da simbologia das práticas da Justiça, ensina que:

"O aspecto exterior de uma igreja, com a sua multiplicação de torrinhas, pilares e coruchéus, tende a evocar essa montanha cósmica que culmina no campanário. Pode-se dizer o mesmo do palácio da justiça que, como vimos, está elevado em relação ao nível da cidade" [3].

Como serão os novos prédios do Ministério Público que, muito embora não sigam o modelo arquitetônico romano dos tribunais, continuarão a crescer em tamanho? Seguirá o modelo tradicional com os servidores em casa, mesmo não sendo mais necessário um computador, uma mesa, uma cadeira, uma vaga na garage para cada um no prédio?

Tudo indica que não. Gabinetes, salas de reuniões e equipamentos em geral serão compartilhados. Salões sem maior finalidade poderão ser cedidos à sociedade para práticas de interesse cultural, como exposição de quadros ou peças relacionadas com a memória da instituição. O auditório poderá abrigar congressos, palestras, ainda que estranhas ao Direito, quiçá em conjunto com as universidades. A economia será flagrante, inclusive com luz, água e outros recursos, podendo o orçamento ser remanejado para despesas com capacitação dos servidores e outras necessidades.

E o princípio do promotor natural, fundado no artigo 5º, inciso LIII, da Constituição, terá razão de ser? As ações, cada vez mais, serão coletivas. Os problemas da ação de uma organização criminosa que se estenda por toda uma região, às vezes ultrapassando as divisas de um estado, não podem ser resolvidos a partir do promotor de cada comarca. Ao contrário, exigem ação unificada de agentes especializados.

A propósito, no âmbito criminal, o TRF-4, através da Resolução nº 43/2019, que dispõe sobre a especialização e regionalização de competências, decidiu, entre outras coisas, que ao Juízo Federal da 11ª Vara de Curitiba (ambiental e agrária), cabe processar e julgar os processos ambientais de Paranaguá. O que era impensável no passado, tornou-se realidade incontestada, pelo bons resultados colhidos pela vara que conta com boa estrutura e juízes especializados.

Outro aspecto a ser considerado é o papel do MP no processo com juiz de garantias. Referida iniciativa do Congresso foi suspensa por liminar do ministro Luiz Fux. Porém, dia virá em que o conflito será decidido no STF. Caso a maioria entenda que a criação do juiz de garantias não é inconstitucional, o MP terá que avaliar o seu papel neste novo rito processual. A redação dada ao artigo 3º do CPP praticamente ignora o MP. Então, de órgão encarregado do controle externo da polícia, passará o MP a um mero expectador?

O relacionamento com a sociedade deverá ser incrementado, ainda que de forma virtual. Iniciativas devem ser discutidas e aprovadas. Na medida que o MP se distanciar da coletividade, estará perdendo, pouco a pouco, a sua legitimidade.

Nesse passo, louvável iniciativa do MP de Mato Grosso do Sul serve como bom exemplo. Naquela unidade criou-se o Núcleo de Apoio Jurídico Ambiental (Nupam), em parceria com a Universidade Católica Dom Bosco. São três estagiários de pós-graduação e oito de graduação. Eles atuam de forma virtual nos ICs (inquéritos civis) ambientais, geralmente e infrações ao Código Florestal. São como uma assessoria remota aos promotores. Seguem um fluxograma de como tramitar os ICs, atuando desde a instauração até a celebração de termo de ajustamento de conduta ou da propositura da ação civil pública [4].

Além da interlocução com universidades, ONGs e outras pessoas jurídicas, é preciso também capacitar-se para as discussões individuais. Por exemplo, nos ICs não deve o agente do MP comportar-se de forma superior ou ser intransigente criando uma aura de má vontade. É preciso criar confiança no infrator e seu advogado, saber negociar, defender a sociedade sem criar inimigos que procurarão dar-lhe resposta em leis mais restritivas.

Na área ambiental o gargalo está na existência de três tipos de responsabilidade (administrativa, civil e criminal) e das soluções serem individualizadas. Nenhum acusado, bem assessorado, fará acordo em uma, sabendo que responderá nas outras. Imagine-se um caso de corte de árvores irregular, que admita acordo de não persecução penal. Se o acusado aceitar a proposta terá, inevitavelmente, que confessar e, com isto, será condenado a uma indenização na ação civil pública. É, pois, absolutamente necessário que o acordo envolva as três esferas, sanção administrativa, reparação civil e infração penal.

O estado de Minas Gerais deu o primeiro passo nesse sentido. Através de reuniões e discussões entre representantes do TJ-MG, do MP-MG e da Feam (órgão ambiental estadual), deliberou-se que as três espécies de responsabilidade seriam discutidas por todos no Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc). O Decreto 4772/19, dá a base normativa ao acordo. Ele só não entrou em execução porque mudou a presidência de dois dos aderentes (TJ-MG e Feam) e os novos gestores estão analisando a matéria. Espera-se que o bom exemplo venha a ser seguido por órgãos congêneres.

Aspecto essencial e de maior complexidade, mas que precisa ser enfrentado, é a alteração das funções dos procuradores da Justiça, procuradores regionais da República e dos subprocuradores-Gerais da República. Atualmente, salvo os que se encontram em um conselho, coordenadoria ou câmara, eles se limitam a dar pareceres em processos. Por óbvio é pouco, muito pouco, para pessoas com elevado preparo cultural e experiência. Já é tempo de tais profissionais terem atualizadas as suas funções. Por óbvio, tal tipo de mudança é difícil. Mas é preciso o primeiro passo, aceitando a necessidade e depois se criando uma comissão em cada unidade, que apontará os caminhos possíveis. Quiçá com regra de transição.

Mas tudo isso reclama tempo, ideias, pessoas destacadas apresentando sugestões. Para isto, pode-se criar um setor com o nome de Fábrica de Ideias, think tank no dizer norte-americano, que juntará pessoas especializados que discutirão e conduzirão discussões sobre assuntos de política institucional, pesquisas, reflexos econômicos e procedimentos estratégicos da classe. Isso já é feito em diversas seções judiciárias da Justiça federal, como, por exemplo, o projeto Inovajus da JF em São Paulo [5].

Por fim, agora e na pós-pandemia, muitos enfrentarão problemas psicológicos, como a ansiedade e a depressão. É preciso ocupar a mente, envolver-se em projetos e cuidar do físico através de exercícios. E lembrar a lúcida lição do psiquiatra Augusto Cury, para quem "mais de 90% das nossas preocupações sobre o futuro não se materializarão. E os outros 10% ocorrerão de maneira diferente do que desenhamos" [6].

Em suma, o Ministério Público, tal como outras instituições, deve preparar-se para o amanhã, pois as instituições, tal qual as pessoas, quando param já estão retrocedendo.

 


[3] GARAPON, Antoine. Bem julgar. Ensaio sobre o ritual judiciário. Lisboa: Instituto Pìaget, 1997, p. 41.

[4] Em dois anos de funcionamento, NUPAM auxilia em mais de 600 procedimentos de 56 Promotorias de Justiça. Disponível em: https://www.mpms.mp.br/noticias/2020/08/em-dois-anos-de-funcionamento-nupam-auxilia-em-mais-de-600-procedimentos-de-56-promotorias-de-justica. Acesso em 20/3/2021.

[6] CURY, Augusto, Ansiedade, como enfrentar o mal do século. São Paulo, Saraiva, 2017, p. 135

Autores

  • é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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