Opinião

Caso Lula (tríplex): há prescrição?

Autores

  • César Peres

    é advogado criminalista presidente da Anacrim-RS ex-presidente da Acriergs (Associação das Advogadas e Advogados Criminalistas do RGS).

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  • Leonardo Avelar Guimarães

    é advogado criminalista professor da PUC Minas coordenador da pós-graduação lato sensu em Ciências Penais da PUC Minas e doutorando em Direito pela Universidade de Salamanca (Espanha).

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20 de março de 2021, 14h51

Depois da decisão do ministro Luiz Edson Fachin, do STF, nos embargos de declaração no HC nº 193.726/PR, que anulou as ações processuais penais relativas ao ex-presidente Lula na 13º Vara Federal de Curitiba, instaurou-se, no meio jurídico, intenso debate quanto a se teria ou não ocorrido a extinção da punibilidade pela incidência da prescrição da pretensão punitiva naqueles processos.

Para essa discussão, se impõem algumas considerações acerca do método legal para o cálculo da prescrição.

Inicialmente, salienta-se que, com o advento da Lei 12.234/2010, a pena aplicada não tem qualquer efeito sobre o prazo prescricional relativo ao período anterior ao recebimento da denúncia.

Confira-se o Código Penal:

"Artigo 110 — A prescrição depois de transitar em julgado a sentença condenatória regula-se pela pena aplicada e verifica-se nos prazos fixados no artigo anterior, os quais se aumentam de um terço, se o condenado é reincidente.
§1º. A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada, não podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa. (Redação dada pela Lei nº 12.234, de 2010)".

Ou seja, a mudança legislativa suprimiu a possibilidade de ocorrência da prescrição retroativa antecipada (CIRINO DOS SANTOS, Juarez, "Direito Penal: parte geral" — 9.ª ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 666), aquela que se operava se, entre o cometimento do fato e o recebimento da denúncia, houvesse transcorrido o prazo do inciso previsto para a espécie no artigo 109 do CP, tendo em conta a pena efetivamente aplicada (que, nesse ponto, parece ser supinamente inconstitucional, por ferir o princípio da proporcionalidade, assunto para um outro artigo).

Assim, se, por exemplo, antes da alteração alguém fosse condenado pelo crime do artigo 317 do CP (corrupção passiva) —  pena de dois a 12 anos de reclusão —, a uma pena de três anos, transcorridos mais de oito anos entre a data do fato e o recebimento da denúncia (primeiro marco interruptivo da prescrição), operar-se-ia a extinção da punibilidade pela ocorrência da já referida prescrição da pretensão punitiva retroativa antecipada (anterior ao início da ação processual penal), a teor do inciso IV do artigo 109 do CP [1].

Com a alteração legal, a prescrição nesse caso operar-se-ia tendo-se em conta a pena máxima prevista para o tipo — 12 anos, nada importando o quantum fixado na sentença. Portanto, aqui seria necessário o intervalo de 16 anos (inciso II) entre o fato e o recebimento da denúncia para a incidência do instituto.

Como mostra a melhor doutrina (Bitencourt, Cezar Roberto. "Tratado de direito penal: parte geral — vol. 1" — 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 926), para calcular a prescrição da pretensão punitiva em abstrato, isto é, antes do recebimento da denúncia, leva-se em conta a pior situação possível para o acusado, ou seja, toma-se a pena máxima prevista para o tipo e acrescentam-se eventuais qualificadoras e majorantes em tese cabíveis em seu grau máximo (cuja viabilidade de admissão deve ser apreciada de modo fundamentado pelo Judiciário no ato decisório de recepção da denúncia — até para que tais marcos não fiquem ao sabor da opinião do acusador) e aplicam-se as minorantes em grau mínimo. Aqui não se leva em conta os acréscimos relativos à continuidade delitiva e nem ao concurso formal próprio (cúmulo formal), pois, ainda que se tenha o concurso de crimes, a análise da prescrição é específica para cada delito (artigo 119, CP). Obviamente, também não se computam os aumentos oriundos do concurso material e nem do concurso formal impróprio, por tratar-se de situações em que a pena é aplicada em cúmulo material. Também não se consideram as agravantes e atenuantes.

No caso do processo relativo ao tríplex, ainda exemplificativamente, como já existe decisão condenatória, deixa-se de levar em consideração as imputações propostas na denúncia (corrupção passiva, último ato em 23/1/2012, por sete vezes, em concurso material com o delito de corrupção passiva qualificada, em sua forma majorada, previsto no artigo 317, caput, e §1º, c/c artigo 327, §2º, do CP; e lavagem de capitais, prevista no artigo 1º c/c artigo 1º, §4º, da Lei nº 9.613/98, no período compreendido entre 08/10/2009 e a data da denúncia (14/9/2016), por três vezes, em concurso material, e do delito de lavagem de capitais, previsto no artigo 1º c/c o artigo 1º, §4º, da Lei nº 9.613/98, e pela prática, no período compreendido entre 1/1/2011 e 16/1/2016, por 61 vezes, em continuidade delitiva, do delito de lavagem de capitais, previsto no artigo 1º c/c o artigo 1º § 4º, da Lei nº 9.613/98), para considerar como parâmetro o disposto na sentença [2], já que esta não poderá mais ser alterada para piorar a situação do réu, sob pena de reformatio in pejus, haja vista a sua anulação em impugnação defensiva (corrupção passiva: artigo 317, caput, e §1º, do CP, e lavagem de capitais: artigo 1º, caput, inciso V, da Lei n.º 9.613/1998).

O alegado crime de corrupção reconhecido na sentença (somente a imputação relativa à reforma do apartamento, porque, com relação ao suposto recebimento do imóvel, de 2009, este já está prescrito desde 2015, já que, nesse caso, não se aplica a mudança introduzida pelo §1º do artigo 115 do CP acima mencionada, que aconteceu em 2010) teria tido seu último ato em 23/1/2012 (folha 4), segundo a denúncia; e em 13/10/2014 (folha 62), segundo a sentença. Esta reconhece apenas a modalidade receber do tipo do artigo 317 do CP, razão pela qual está se considerando o delito para todos os fins na modalidade material.

A pena máxima abstratamente cominada para o tipo penal, como já dito, é de 12 anos. Levando-se em conta a causa de aumento reconhecida na sentença (um terço), a pena máxima cominada abstratamente para a imputação é de 16 anos de reclusão. Logo, à luz do artigo 109, I, do CP, a prescrição se daria em 20 anos, não fosse a existência do artigo 115, segunda figura, do CP (acusado maior de 70 anos), que reduz o prazo prescricional para dez anos.

Daí que, em tese, anulado o recebimento da denúncia, continua o prazo prescricional a fluir, vindo a ocorrer a prescrição (analisando-se pela pena em abstrato), na espécie, no dia 22/1/2022.

No caso do delito de lavagem, estranhamente, a condenação se deu por fato que teria ocorrido até a data da denúncia, 14/9/2016 (a ocultação do imóvel tratar-se-ia, na ótica do juízo sentenciante, de um crime permanente).

Tendo em vista a inexistência de causas de aumento ou diminuição, a pena a ser considerada para fins de cálculo da prescrição pela pena em abstrato, é, portanto, a pena máxima prevista para o tipo penal — dez anos de reclusão.

Considerando a previsão do artigo 109, II, CP, a prescrição se operaria em 16 anos, não fosse, novamente a incidência do artigo 115 do CP, o qual determina que seja o marco reduzido pela metade — oito anos. Neste caso, a prescrição se dará em 13/9/2024.

A par disso, um acréscimo merece ser pontuado sobre a imputação relativa à lavagem de capitais: ainda que se entenda que a apontada ocultação da propriedade do imóvel seja considerada como delito permanente — conclusão plenamente discutível —, tal como asseverado na sentença, então melhor se ter como data do fim da permanência o dia em que o poder público tomou conhecimento da dita ocultação (e não a data da denúncia), quando foi levada a efeito a operação de busca e apreensão dos telefones celulares de executivos do Grupo OAS, assim como a prisão cautelar de tais pessoas — 10/11/2014 (folha 63 da sentença). Nesse caso, a prescrição se operaria em 9/11/2022.

Noutro prisma, entende-se que, desde já, é possível trabalhar com a análise da metodologia e com os marcos temporais da prescrição retroativa da pena, quais sejam: a pena em concreto como quantum de referência para a verificação do prazo prescricional e, como marco inicial para tal exame, a decisão de recebimento da denúncia. E duas são as razões para esta conclusão:

A uma, a decisão de invalidação do procedimento pela incompetência do juízo federal do Paraná decorreu de impugnação, via Habeas Corpus, exclusiva da defesa; por óbvio, essa anulação não pode redundar em qualquer prejuízo para o acusado (non reformatio in pejus indireta), seja no que toca aos aspectos penais, seja nos processuais do caso.

A duas, a ratio jurídica da regulação de prazos relativos à prescrição retroativa penal é justamente o estabelecimento de um tempo legal para a realização do processamento e do julgamento do caso penal, no que também vem a abraçar outro princípio fundamental do processo (duração razoável do procedimento e julgamento). Logo, a despeito da invalidação do procedimento desde a decisão de recebimento da denúncia pela decisão monocrática no STF, esse provimento judicial ainda mantém seus efeitos penais, notadamente para a análise da prescrição. Com efeito, causaria espécie e seria um contrassenso para com a previsão normativa da prescrição desconsiderar o tempo em que o processo tramitou perante o juízo incompetente e produziu diversos efeitos, inclusive relativos às cautelares e a própria prisão a que esteve submetido o acusado. Ora, ainda que o procedimento estivesse em curso fora do juízo natural do caso, toda a discussão processual relativa a este pressuposto processual fez (e ainda faz) parte, inequivocamente, do tempo de duração do procedimento para o julgamento da causa, razão de ser da espécie prescricional em discussão. Pensar de outro modo causaria o seguinte resultado interpretativo: as agências persecutórias estariam autorizadas a simplesmente errarem na atribuição do juízo competente para o caso, mas todo o tempo transcorrido —  inclusive para o reconhecimento da nulidade — poderia ser desconsiderado, possibilitando uma nova persecução sem qualquer consequência normativa quanto ao prazo do procedimento. Dito de outro modo: se a norma relativa à prescrição objetiva justamente colocar limite na atuação da persecução penal, mesmo que haja erro de procedimento no exercício do poder-penal-persecutório, a regra de controle do tempo de atuação não pode simplesmente ser afastada. Do contrário, o torpe se beneficiaria da própria torpeza [3].

Essas considerações sobre a relevância e a possível convalescência do marco temporal da prescrição retroativa (recebimento da denúncia anulada), obviamente, serão trazidas ao campo de discussão processual pela defesa, em caso de novo processo, caso haja o transcurso do prazo prescricional entre aquele marco e a eventual nova sentença condenatória.

Sim, porque, no caso do crime de corrupção passiva, pelo qual Lula foi condenado a uma pena de cinco anos e seis meses — considerando o novo patamar definido pelo STJ — tendo em vista a combinação entre o artigo 109, III, e o artigo 115, ambos do CP, a prescrição se operaria em seis anos.

Assim, com base na tese sustentada (permanência dos efeitos penais da decisão de recebimento da denúncia) e como a peça inicial acusatória foi recebida em 20/9/2016, a sentença condenatória, no novo processo, deve de ser prolatada até o dia 19/9/2022, quando, a partir de então, haveria a prescrição retroativa. Quanto ao delito de lavagem dinheiro, cuja pena aplicada foi de três anos e quatro meses, diante da combinação do artigo 109, IV, c/c 115 do CP, tem-se que a prescrição retroativa se opera em quatro anos; portanto, considerando novamente que o recebimento da denúncia se deu em 20/9/2016, como naturalmente não houve condenação válida até 19/9/2020, a causa extintiva da punibilidade se operou nessa data.

 


[1] "Art. 109.  A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto no § 1o do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se: (Redação dada pela Lei nº 12.234, de 2010).
I – em vinte anos, se o máximo da pena é superior a doze;
II – em dezesseis anos, se o máximo da pena é superior a oito anos e não excede a doze;
III – em doze anos, se o máximo da pena é superior a quatro anos e não excede a oito;
IV – em oito anos, se o máximo da pena é superior a dois anos e não excede a quatro;
V – em quatro anos, se o máximo da pena é igual a um ano ou, sendo superior, não excede a dois;
VI – em 3 (três) anos, se o máximo da pena é inferior a 1 (um) ano".

[2] Decisão que, quanto aos fatos, foi confirmada pelo TRF da 4.ª Região e pelo STJ, respectivamente na Apelação Criminal n.º 5046512-94.2016.404.7000/TRF e no Recurso Especial 1.765.139/PR.

[3] CPP: Art. 565. Nenhuma das partes poderá arguir nulidade a que haja dado causa, ou para que tenha concorrido, ou referente a formalidade cuja observância só à parte contrária interesse.

Autores

  • é advogado criminalista, presidente da Anacrim-RS, ex-presidente da ACRIERGS (Associação das Advogadas e Advogados Criminalistas do RGS).

  • é advogado criminalista, professor da PUC Minas, coordenador da pós-graduação lato sensu em Ciências Penais da PUC Minas e doutorando em Direito pela Universidade de Salamanca (Espanha).

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