Opinião

Marcelo Feller: Carta ao desembargador Antônio Carlos Malheiros

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17 de março de 2021, 11h13

TJ-SP
Em 2016, o advogado Marcelo Feller escreveu uma carta ao desembargador Antônio Carlos Malheiros, morto na madrugada desta quarta-feira (17/3). Ele autorizou a publicação do texto pela ConJur, acrescentando que a carta foi enviada naquele mesmo ano.

"E ele, humilde que era, me ligou para agradecer e para dizer que eu havia exagerado: não havia."

Leia aqui a íntegra:

Exmo. Des. ANTONIO CARLOS MALHEIROS:

Prezado Desembargador,

De que planeta você veio? Pergunto porque conhecê-lo, ainda mais em meio a um processo, é um privilégio. Nossa Justiça, assoberbada por trabalho, não tem tempo para nada. Virou máquina de decidir, em meio a fórmulas pré-fabricadas, que se distanciam do caso concreto. Mas não você.

Não tive a regalia de lhe ter como professor, muito embora eu tenha me formado na PUC, onde leciona. Conheci-o em julgamento perante o Órgão Especial, quando advoguei os interesses de 48 Centros Acadêmicos espalhados por São Paulo, na tentativa de se proibir, em habeas corpus coletivo preventivo, a prisão para averiguação de manifestantes em 2013. Ficamos vencidos. Eu, você, e as 48 faculdades. A ordem foi denegada, por unanimidade menos um. Você ficou unanimemente vencido, mas foi um vencedor. Ali, naquele ambiente hostil ao pedido defensivo, foi inteiro. Opinou com independência e altivez.

Nas últimas semanas, conheci-o novamente. Patrocinando os interesses de um adolescente, em recurso interposto pelo Ministério Público do qual compôs a Turma Julgadora. Liguei em seu gabinete para agendar despacho de memoriais. Um assessor explicou que você não estava, mas me passou seu celular. Ele não me conhecia. Essa é a autorização geral que o gabinete tem: “a gente pode passar o celular do Dr. MALHEIROS”. Não entendi nada, confesso. Nunca vi nenhuma autoridade pública fornecer assim seu número de telefone.

Marcamos um horário e, quando estive em seu gabinete, substituindo o atual Decano do Tribunal de Justiça paulista, entendi: você chegou atrasado e a primeira coisa que fez foi se desculpar pelo atraso. Verdadeira e calorosamente. Juízes em início de carreira não se desculpam quando atrasam. Você, dos mais antigos Desembargadores do Tribunal, sim.

Ao entrar no gabinete, cumprimentou com um abraço um a um dos assessores e funcionários, chamando-os pelos nomes. A uma específica, perguntou como estava a avó, escancarando a preocupação com todos que estão à sua volta. Um servidor veio nos servir um café e imediatamente lhe esticou a mão: — Como vai Dr. Malheiros? Você respondeu, chamando-o pelo nome, e devolveu a pergunta. Agradeceu, com um sorriso no rosto, o café. Você tem noção de que, com a imensa maioria dos desembargadores, aqueles que servem o fazem de cabeça baixa?

No dia do julgamento, ontem, ficou vencido. Concordava com a defesa e negava provimento ao recurso ministerial, em primoroso voto. Mas isso não importa. Espantou-me como, após o julgamento, fez questão de cumprimentar um a um dos presentes. Não apenas os Desembargadores e a Procuradora de Justiça ali oficiante — o que é corriqueiro. Mas também os servidores que ali estavam, inclusive aqueles cuja única função era servir água e café. Estes, com um abraço.

Embasbacado, confesso que cheguei no escritório e fiz a única coisa que me cabia: "joguei seu nome" no Google. E descobri o Totó: o palhaço que Vossa Excelência encarna quando lê histórias para crianças portadoras do HIV internadas no Emílio Ribas. Descobri que nos idos dos anos 70 já dormiu, junto a 15 adolescentes que o protegeram, num banco na Praça da Sé.

Descobri que, ao lado de um cantor portador da AIDS, que queria morrer cantando, Vossa Excelência com ele cantou em seus últimos momentos de vida e, com isso, alargou seu conceito de família para as uniões homoafetivas. E não só tem solidariedade com os outros, mas tenta ensiná-la para o mundo.

Descobri, e venho descobrindo, a pessoa especial que é. Traz sentimento ao Direito. Vê gente por debaixo daqueles amontoados de papéis que formam os autos. Sente a dor alheia. Ou, no melhor uso do cargo, desembarga a dor.

Em um Tribunal em que não raro advogados são desrespeitados, e partes muitas vezes sofrem da insensibilidade dos atores forenses, você transborda paixão, amor e respeito. Não apenas com advogados, mas com todos aqueles que têm o privilégio de ter, ainda que apenas por alguns instantes, a sua companhia.

NERUDA certa vez escreveu:

Se não puderes ser um pinheiro, no topo de uma colina,
Sê um arbusto no vale mas sê
O melhor arbusto à margem do regato.
Sê um ramo, se não puderes ser uma árvore.
Se não puderes ser um ramo, sê um pouco de relva
E dá alegria a algum caminho.
Se não puderes ser uma estrada,
Sê apenas uma senda,
Se não puderes ser o Sol, sê uma estrela.
Não é pelo tamanho que terás êxito ou fracasso…
Mas sê o melhor no que quer que sejas.

Você, Desembargador Malheiros, Totó, é. É pinheiro no topo da colina. Espalha alegria em seus caminhos e, Sol que é, tem tanto a ensinar a algumas estrelas. Ou, nos dizeres de PESSOA, você põe quanto és no mínimo que fazes. Você definitivamente não é desse planeta. Se é, a espécie está em extinção.

Quisera eu, e o mundo, que existissem mais autoridades e poderosos que se lembrassem, diariamente, que são mortais. Apenas homens. E que, com a sua humildade, não confundissem o poder e o cargo com superioridade.

Memento Mori.

Um fortíssimo abraço, com uma admiração que não cabe no peito,

Marcelo Feller

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