Opinião

A instituição da Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais

Autores

  • Ana Maria Blanco

    é advogada sócia do escritório Ernesto Tzirulnik Advocacia mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e membro do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS).

  • Karen Machado

    é especialista em Direito Ambiental (UFRGS) especialista Certificada em Compliance CPC-A (LEC/FGV) secretária da Comissão de Direito Ambiental OAB/RS.

15 de março de 2021, 12h18

Recentemente aprovada, a Lei 14.119/21 instituiu a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (PNPSA), sendo sua principal virtude a adoção de sanções positivas. Essas sanções se alocam no reconhecimento incontroverso de uma função promocional do Direito, para além de sua função precípua, a protetora (BOBBIO, 2007, p. 24). No âmbito do Direito Ambiental, significa a consolidação de importante paradigma por meio do princípio protetor-recebedor (ou preservador-recebedor, conforme ALTMANN, 2012), em contraste e concomitância com o já conhecido paradigma expressado no princípio poluidor-pagador. A ideia elementar dessa legislação alinha-se ao que já previa a Lei 12.305/10, que instituiu, por sua vez, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), responsável, em primeiro lugar, por essa inovação em matéria ambiental: retribuir a boa conduta em vista da preservação do meio ambiente (MACHADO, 2016, p. 661-662).

No que diz respeito à pertinência da adoção de medidas dessa natureza, que visam um incentivo positivo em prol do meio ambiente, basta observar e refletir acerca dos tempos nos quais vivemos. De um lado, há o superestímulo ao consumo (sociedade do hiperconsumo), por meio de uma lógica de obsolescência, justificando uma produção industrial de bens de consumo os mais variados em larga escala, com a geração de toneladas de resíduos na maior parte não reaproveitáveis. De outro lado, presenciamos recorrentes agressões ao meio ambiente natural pela extração de bens não renováveis, pela ampliação da produção de bens de consumo com todos os impactos associados, pela expansão dos centros urbanos ou mesmo por condutas manifestamente criminosas estimuladas por interesses econômicos. Soma-se a tal realidade as limitações já verificadas dos tradicionais instrumentos de comando-e-controle, alicerçados na lógica de sanções negativas. A necessidade de considerar e instituir inovações jurídicas é, portanto, imperiosa diante do incontestável cenário de crise ambiental cujo prognóstico é de drástico agravamento.

A inovação do Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) não é só jurídica: revela-se instrumento econômico de incentivo positivo, uma vez que, nos termos da Lei 14.119/21, artigo 2º, IV, constitui-se em "transação de natureza voluntária, mediante a qual um pagador de serviços ambientais transfere a um provedor desses serviços recursos financeiros ou outra forma de remuneração, nas condições acertadas, respeitadas as disposições legais e regulamentares pertinentes".

E é instrumento com impacto econômico positivo, uma vez que, por meio do PSA, pode-se viabilizar, por exemplo, a remuneração de atividades voltadas à gestão de resíduos sólidos urbanos. Nesse sentido, sendo reconhecida a escassez na natureza de matéria-prima ou produtos não renováveis, a possibilidade de reciclar resíduos sólidos utilizados pela indústria assume relevância frente à redução dos custos de produção (MACHADO, 2020, p. 328).

O PSA, rural ou urbano, pode se dar por iniciativa exclusivamente pública, concomitantemente pública e privada ou exclusivamente privada. A sua concretização requer a observância de três etapas ou fases. Ao tempo do diagnóstico, os esforços se voltam à caraterização, identificação e definição do projeto (WALDMAN; ELIAS, 2013, p. 55). Sucedida pela fase do desenho em vista de sua consecução, passam a ser pensados e formatados os arranjos institucionais e de governança necessários, bem como os instrumentos financeiros a serem viabilizados. Por fim, ao tempo da implementação, os esforços se alocam em uma gestão adaptativa, crucial ao êxito do empreendimento.

Essa gestão deve-se manter focada à promoção de ganhos ambientais e sociais inicialmente pretendidos e para tanto requer não só a execução em si do PSA, como também seu monitoramento e avaliação periódicos, pautados pela máxima eficiência. A estipulação de um prazo de duração razoável à verificação de resultados é outra questão crucial (ALTMANN et al., 2015, p. 70), sendo recomendável entre cinco e dez anos.

Quanto à retribuição, expressão concreta da sanção positiva, comporta inúmeras possibilidades além da remuneração em pecúnia: isenção fiscal (taxas ou tributos), concessão de linhas de crédito diferenciadas, facilitação no acesso de nichos do mercado, à tecnologia e à capacitação (WUNDER, 2007 apud WALDMAN; ELIAS, 2013, p. 56).

Um exemplo de PSA urbano (ou PSAU) pode ser pensado frente aos catadores de materiais recicláveis, cada vez mais necessários aos centros urbanos dada sua manifesta contribuição à mitigação da externalidade negativa ocasionada pelo descarte de resíduos sólidos. Essa atividade há muito praticada vem sendo objeto de específica regulação desde o Decreto 5.940/06, encontrando respaldo normativo também no PNRS (artigos 18, §1, II; 19, XI; 36, §1º; e 44, II) e seu decreto regulamentador, qual seja Decreto 7.404/10 (havia também o Decreto 7.405/10, responsável pela instituição do Programa Pró-Catador, infelizmente revogado pelo Decreto 10.473/20) (MACHADO, 2020, p. 329). Tem importante impacto positivo no âmbito dos 3.293 municípios com coleta seletiva instituída, do total de 5.570 municípios brasileiros (IPEA, 2010).

Instituído o PSAU para coleta de materiais recicláveis por catadores por iniciativa pública, promove-se ganhos múltiplos a todos os envolvidos. Se de um lado, por exemplo, o município pode vir a experimentar certo custo para implementar o PSAU, de outro aufere relevante diferencial no acesso aos recursos previstos no PNRS (artigo 18). Não obstante, com a remuneração de cooperativa de catadores, permite, indiretamente, o sustento de inúmeras famílias pelo prazo previsto de duração do PSAU, reduzindo bolsões de pobreza a curto e médio prazo, e a longo prazo permitindo a ascensão social dessa camada da população. Viabiliza-se, com isso, soluções amplas e concretas de natureza ambiental e social.

Todavia, mesmo esse conhecido exemplo traz desafios à obtenção de sua máxima eficiência, desde uma melhor triagem dos materiais que permita efetivo reaproveitamento pela indústria, sobretudo por aqueles atores com dever legal de logística reversa, quanto uma remuneração equânime frente à variação de qualidade e quantidade de material coletado. Por isso, quanto à triagem, faz-se importante a capacitação dos catadores, bem como tecnologia aplicada, e quanto à remuneração a adoção de estímulos extras, absolutamente compatível com a gestão adaptativa que marca o PSA (exemplificativamente, o IPEA, em seu estudo basilar de 2010, já recomendava pagamentos por produtividade e acréscimos compensatórios graduados).

O PSA não é a solução definitiva ou perfeita à questão ambiental no meio urbano ou rural, mas representa importante oxigenação em concomitância às respostas institucionais tradicionalmente dadas, fundadas em sanção negativa. O PSA pode colocar em perspectiva novas possibilidades econômicas e de governança capazes de estimular os mais resistentes ao discurso de preservação ambiental, contribuindo, com isso, ao alcance da solidariedade social e intergeracional no que diz respeito à preservação do meio ambiente.

 

Referências bibliográficas
ALTMANN, Alexandre. Pagamento por Serviços Ambientais Urbanos como instrumento de incentivo para os catadores de materiais recicláveis no Brasil. Instituto O Direito por um Planeta Verde, São Paulo, 2013. URL: http://www.planetaverde.org/arquivos/biblioteca/arquivo_20131207155702_7421.pdf.

______. Princípio do Preservador-Recebedor: contribuições para a consolidação de um novo princípio de Direito Ambiental a partir do Sistema de Pagamento por Serviços Ambientais. São Paulo: Instituto O Direito por um Planeta Verde, [2012]. URL: http://www.planetaverde.org/arquivos/biblioteca/arquivo_20131207160003_4833.pdf.

BOBBIO, Norberto. As sanções positivas, in Da estrutura à função: novos estudos de Teoria do Direito. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. Barueri: Manole, 2007, pp. 23-32.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988, Planalto , URL: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm .

______. Decreto n° 5.940, de 25 de outubro de 2006. Diário Oficial da União, 26 out. 2006, p. 4.

______. Lei n° 12.305, de 2 de agosto de 2010. Planalto. URL: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12305.htm.

______. Decreto n° 7.404, de 23 de dezembro de 2010. Diário Oficial da União. 24 dez. 2010, p. 1.

______. Lei 14.119, de 13 de janeiro de 2021. Planalto. URL: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14119.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%2014.119%2C%20DE%2013%20DE%20JANEIRO%20DE%202021&text=Institui%20a%20Pol%C3%ADtica%20Nacional%20de,adequ%C3%A1%2Dlas%20%C3%A0%20nova%20pol%C3%ADtica.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Pesquisa sobre Pagamento por Serviços Ambientais Urbanos para gestão de resíduos sólidos. Brasília: IPEA. 2010. URL: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/100514_relatpsau.pdf.

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 24.ed., rev., ampl., e atual. – São Paulo: Malheiros, 2016.

MACHADO, Karen da Costa. Pagamento por serviços ambientais urbanos como instrumento aliado à gestão de resíduos sólidos, in Mulheres e Meio Ambiente: nosso papel fundamental – volume 2 / Org. Guerra et al. – Blumenau/SC : Editora Dom Modesto, 220.

WALDMAN, Ricardo Libel; ELIAS, Luiz Augusto da Veiga. Os princípios do direito ambiental e o pagamento por serviços ambientais/ecossistêmicos (PSA/PSE). Revista de Direito Ambiental, v. 69/2013, jan-mar, 2013. Revista dos Tribunais.

Autores

  • é advogada, sócia do escritório Ernesto Tzirulnik Advocacia, mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e membro do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS).

  • é especialista em Direito Ambiental (UFRGS), especialista Certificada em Compliance CPC-A (LEC/FGV), secretária da Comissão de Direito Ambiental OAB/RS.

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