Opinião

Acordos de não persecução e ambiguidades das normas legais

Autor

  • Antonio Fonseca

    é advogado PhD pela Universidade de Londres membro sênior do MPF e titular da Câmara Anticorrupção da PGR (mandato de 02/10/2018 a 31/3/2021).

10 de março de 2021, 6h37

Questiona-se até quando é admissível concluir acordo de não persecução em matéria penal e acordo em matéria cível. O primeiro está previsto no Código de Processo Penal e o segundo, na Lei de Ação de Improbidade (LIA). Para uns, os acordos são instrumentos pré-processuais, devendo ser concluídos antes da denúncia ou do processo judicial; para outros, tais acordos podem ser concluídos depois da sentença de primeiro grau. Quem está com a razão? A discussão tem a ver com o escopo do acordo, enquanto mecanismo físico ou intelectual utilizado pela acusação e defesa para pôr fim à pretensão punitiva do Estado e realizar a prestação jurisdicional.

Restringir a celebração do acordo para antes do processo judicial poderá reduzir drasticamente a busca por esse instrumento. Ampliar demais o tempo para negociação poderá tornar o instrumento um jogo da defesa, com pouco ou nenhum interesse para a acusação. Neste artigo, defendo que o acordo de não persecução penal ou de não persecução cível deva ser admitido até no prazo do recurso da decisão de tribunal que encerrar o juízo de prova. As ambiguidades das normas legais justificam essa interpretação.

Persecução: o que é
O direito de punir não é autoaplicável. Pelo contrário, exige que se reúna elementos de prova. O propósito é formar um juízo da infração cometida pelo agente, definir a conduta típica e as penalidades aplicáveis. Feita a formação mínima dos elementos de autoria e materialidade, estarão presentes as condições da ação e da prestação do Estado, que é a satisfação da sociedade com a punição do acusado. O conjunto dessas atividades chama-se persecução, que ocorre dentro da lei numa dinâmica aberta à participação de dois ou mais órgãos; começa após a notícia de fato e vai até a conclusão do processo.

Acordo: o que é e como se realiza 
O acordo, enquanto documento, é um instrumento físico; enquanto vontade livre de mais de uma pessoa, é um instrumento intelectual que exterioriza escolhas, definidoras de condições que envolvem uma necessidade ou suficiência em termos de "reprovação" e "prevenção", quando se tratar de infração. As condições decorrem da lei e da estipulação do Ministério Público. As condições para o ANPC deveriam estar na lei. Mas as condições estipuladas pelo legislador não foram validadas pelo presidente da República, que vetou o dispositivo do projeto de lei que adicionava à LIA o artigo 17-A. Entre as condições vetadas, figuram as que consideram "a personalidade do agente, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do ato de improbidade, bem como as vantagens, para o interesse público, na rápida solução do caso". Embora vetados, tais elementos estão presentes em outras normas do Direito brasileiro, portanto podem, em princípio, ser levados em consideração pelos negociadores do acordo.

Primeira ambiguidade 
A norma legal chama de acordo de não persecução, mas não é possível celebrar acordo sem começar e desenvolver um mínimo de persecução. E quanto às partes, acusação e defesa, necessitam de persecução para negociar um acordo é uma questão que, ordinariamente, lhes diz respeito, dentro da perspectiva da reprovação e prevenção da conduta do agente.

Segunda ambiguidade
O acordo somente se legitima no ambiente de liberdade e confiança. E quanto tempo acusação e defesa precisam para a transação, depende de condições objetivas e subjetivas. Não se pode descartar o elemento confiança; e quando este entra em jogo, defesa, acusação, juiz e homem da rua não têm a mesma percepção no resultado da persecução que antecede o processo. Logo, buscar o conforto de uma avaliação judicial definitiva, para além do juízo formado pela acusação, pode ser crucial para a transação. Daí, qualquer desenho legal que imponha às partes, defesa e acusação, definir o acordo de vontades antes do processo, ou logo no início deste, pode parecer contraproducente; pior do que isso, pode tornar o instrumento pouco atrativo para os polos rivais no cenário da persecução e punição.

Terceira ambiguidade 
A repercussão social da conduta do agente poderá ser levada em conta para agravar a punição ou recusar o acordo? Em princípio, o órgão da acusação poderá considerar a repercussão social, por exemplo, para agravar as condições. Mas utilizar a repercussão social como motivo para afastar acordo, sem norma legal expressa, parece razoável que tal recusa deva passar pelo crivo da consulta pública apropriada para legitimar uma certa diretriz abstrata ou uma proposta em caso concreto de negociação. Um exemplo prático é a fraude em processo de compras de produtos ou serviço para o setor de saúde ou educação. É certo que a corrupção sistêmica afeta o desempenho dessas políticas públicas e os interesses de um sem número de cidadãos. Mas usar a repercussão social para não celebrar acordo ao arbítrio unicamente da acusação parece discutível.

A efetividade da solução consensual, além da dupla função da repressão e prevenção, poderá exigir participação institucional ou social, um processo de prestação aberta aos agentes interessados na persecução, seja no juízo ordinário (em que se realiza o exame de prova) ou na instância extrajudicial. Essa abertura é boa para a saúde do sistema. O Ministério Público brasileiro jamais poderá carregar nos próprios ombros a excelência da persecução sem se articular, apropriadamente, com canais da administração pública e das instituições sociais. A consulta pública ou a oitiva em procedimento de negociação do acordo é a forma de operacionalizar essa participação, que é exortada pela ONU, por exemplo, quando trata dos ODS (objetivos de desenvolvimento sustentável), particularmente os ODSs 9 (tecnologia e inovação), 16 (paz, justiça, governança e instituições eficazes) e 17 (governança e apoio). A doutrina segue a mesma linha, ao mencionar as falhas de diálogo entre as instituições no trato das políticas públicas, direitos sociais e justiça. A falta de articulação tem sido apontada como causa desorganizadora das decisões da justiça. Portanto, a solução consensual precisa ter o respaldo institucional e social. Ainda que desafiante, abrir espaço a essa articulação é preciso, para lidar com ambiguidades e qualificar a prestação jurisdicional como entrega de qualidade.

Quarta ambiguidade
Tem-se notícia de que órgãos do Ministério Público invocam para si a atribuição de homologar esses acordos. Mas punição por infração criminal e por improbidade é reservada à jurisdição, essencialmente pela natureza de restrição de direitos do acusado. A ideia de instrumento pré-processual parece decorrer da norma que, no caso de recusa de homologação, prevê a complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia. Mas outras normas determinam a homologação judicial, justamente pela punição ser reservada à jurisdição, dotada de predicados (por exemplo, imparcialidade) que a acusação não detém. No aspecto, as normas do artigo 28-A do CPP, sobretudo o §14, e a do artigo 17 da LIA, § 1º e 10-A, não deixam qualquer dúvida da necessidade de processo judicial e de concurso do juiz.

Quinta ambiguidade
Qual é o efeito da homologação? Em princípio, homologar é reconhecer que um ato ou fato jurídico está conforme o Direito ou a norma legal, num juízo de delibação, isto é, de cognição não exauriente; em outras palavras, significa observar o preenchimento de requisitos formais sem aprofundamento do mérito. No caso do ANPP, o juiz ouvirá o investigado. O propósito é perscrutar a voluntariedade e legalidade. Diz a norma legal que o juiz poderá considerar as condições inadequadas, insuficientes ou abusivas. É possível avaliar tudo isso num juízo de mera delibação? A regra tem função de delimitar o controle judicial da atividade da acusação, que tem participação ativa na persecução, sobretudo no período que precede o processo judicial.

O conteúdo do acordo é semelhante ao de decreto judicial. Contém disposições de reparação do dano, renúncia de bens e direitos havidos como instrumento ou proveito do crime, prestação de serviço à comunidade, pagamento de prestação pecuniária e cumprimento de alguma outra condição que a acusação estipular. Quanto ao ANPC, no cardápio das penas por improbidade constam, também, perda da função pública, suspensão em parte ou no todo dos direitos políticos, multa civil e proibição de contratar com o poder público. Cabe incluir ou negociar tais penas no ANPC? Vale observar que nas condições vetadas, disposições correspondentes ao que seria o artigo 17-A da LIA, não constavam tais penalidades. O que permite presumir que aquelas condições não sancionadas eram lenientes. Seja como for, a natureza das penalidades reforça, portanto, a participação do controle judicial de primeiro grau e, quando aplicável, de segundo grau. Resultado diverso se terá na ousada hipótese de a acusação resolver considerar a infração como sujeita apenas à reparação de dano e devolução do proveito dela; o acordo não passará, tecnicamente, de um ajustamento de conduta, negociável à luz da lei de ação civil pública. Essa hipótese dispensaria a homologação judicial.

Acordos de não persecução como política do Parquet
Uma política pública é um mecanismo que atrai o interesse de um certo número de atores e clientes. O sucesso de tal mecanismo dependerá de como esses atores se organizam, se relacionam e operam escolhas. Os acordos de não persecução poderão se constituir em afirmação de papel de defesa do interesse social, como missão do Ministério Público. Dito isso, questiona-se: os membros do Parquet gozam da confiança para carregar nos ombros com sucesso a questionada política? A julgar pelos debates no Congresso Nacional e manifestações na mídia, os tribunais aplaudem os acordos de não persecução como caminho para desafogar as suas pautas de julgamento. Mas será que os tribunais creditam aos membros do Parquet essa confiança absoluta? Será que os tribunais consideram suficiente o controle da atuação da acusação somente pelo juiz de primeiro grau? O que a defesa e as organizações sociais interessadas têm a dizer sobre tudo isso? Enfim, será que a defesa, a acusação e a sociedade em geral podem se beneficiar caso os tribunais possam também exercer controle sobre celebração de acordos?

Não existem respostas prontas a todas essas questões. A falta de resposta segura para o questionamento pode ser um indicativo de que, pelo menos nessa fase inaugural de aplicação dos acordos como novidade legal, eles não devem se constituir numa política do Parquet, mas numa política compartilhada. A partir desse pressuposto, restringir os acordos a mecanismos pré-processuais faz com que todos percam, pela falta de horizonte na construção compartilhada de um projeto de entrega de qualidade da prestação jurisdicional.

Conclusão
Acordos como mecanismos de abreviação da persecução. Os acordos devem desestimular o alongamento da persecução. A ideia de que todos têm o direito à razoável duração do processo é um valor ao qual os ditos acordos devem estar a serviço. Esse objetivo, no entanto, deve atrair todos os interessados na rápida prestação jurisdicional. Não existem evidências de que estender a possibilidade de acordo até o prazo de recurso da decisão que encerrar o juízo de prova, na instância ordinária, seja o melhor caminho para o sucesso da política de acordos. Acredita-se que esse marco parece emprestar à política maior chance de sucesso, a despeito das ambiguidades. Sucesso significa converter a prática do acordo num negócio bom para todos. Acusação acredita que o acordo poderá ter mais chance de acontecer quando celebrado no início da persecução, sob condições lenientes. A defesa poderá precisar de mais tempo para se convencer de que, ainda que sob condições menos favoráveis, vale a pena livrar-se de um processo e repaginar a vida profissional e pessoal. Ter uma segunda decisão sobre as condições do acordo também parecerá significativo para os tribunais. Na verdade, tudo isso é relativo. É importante dar mais chance ao acordo e tirar dele o melhor proveito; para isso, um pouco de generosidade dos atores é preciso.

Autores

  • é membro do Conselho de Ética do Instituto Ética Saúde, advogado executivo, consultor em sistemas de ética & compliance. É membro sênior do Ministério Público Federal, sócio fundador de Flair – Compliance e Educação Corporativa.

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