Breve discussão sobre a vontade da maioria nas democracias
29 de maio de 2021, 8h01
Não de hoje, significativo catálogo de comentários em redes sociais — entre outros meios — tem discutido o fundamento do poder nas democracias. Grosso modo, a questão entabulada coloca a democracia como a conjunção entre demos e poder, numa fórmula que, refletida no "simplismo desse encontro", identifica como legítimo e democrático o posicionamento da maioria. Bom resumo desse entendimento, que no romantismo de seu argumento ganha cada vez mais adeptos, pode ser encontrado na conhecidíssima opinião do jornalista Alexandre Garcia: "Nós, brasileiros, não perdemos a mania de discutir o evidente. Isso acontece porque não nos damos conta do óbvio. A Constituição começa dizendo que 'todo poder emana do povo'. Se democracia é a vontade da maioria, então o poder emana da maioria do povo. Mas uma grande maioria da dita intelectualidade contesta essa obviedade. Afirma que democracia não é a vontade da maioria" [1].
A questão, entretanto, seria tão óbvia assim? Vejamos: se democracias são regimes políticos orientados pela vontade popular, claro, mas não apenas, constituindo-se também como remédios contra maiorias eventuais, há nela alguns nós a desatar.
Observemos — nesse sentido e por exemplo — a questão posta através das lentes do filósofo político francês Pierre Rosanvallon. Segundo seu "La legitimidad democrática" [2], há novas possibilidades de legitimação dessa forma de governo, para além do exercício eleitoral. E, nesse intuito, volta a uma espécie de senso comum político para, já na introdução da obra, lembrar uma premissa que pretende quebrar: a da "ideia de que o povo é a única fonte legítima de poder". Essa ideia — que o autor chama de ficção — se estabelece de maneira sólida, claro, porque rompe com uma espécie de "mundo antigo, em que as minorias ditavam sua lei". E, sobretudo por isso, sequer foi discutida, constituindo-se na "obviedade de Garcia". Afinal, fazia uma clara e necessária oposição em um ambiente e contexto de franca ruptura com um passado autoritário: de um lado, a Igreja, por exemplo — a quem cabia dizer o direito divino ao trono —, contestada desde os dois tratados de Locke. De outro, o povo, visto agora como a nova fonte da legitimidade para governar.
Diante dessa espécie de senso comum democrático, Rosanvallon pondera que a legitimidade da democracia não se estabelece, todavia, exclusivamente a partir do povo. Ou seja, a democracia e o funcionamento de seus mecanismos são também legítimos para além dos procedimentos de escolha dos governantes, até então suficientes — repete-se, nessa ficção inquestionada — "para dar forma aos direitos da maioria contra a vontade claramente particular dos regimes despóticos ou aristocráticos" [3]. Mas, mais que isso, para Rosanvallon, tal legitimidade também se daria por imparcialidade, por proximidade e por reflexividade.
É justamente sobre essa última possibilidade de legitimidade democrática que pode recair o interesse desse debate, já que são os tribunais constitucionais as instituições que encarnam esse modo de legitimação. É a partir delas, afinal, que se estabelecem — ou se recordam — os limites ao líder executivo ou ao Parlamento, deixando claro: a expressão da maioria nas urnas não significa permissão para toda forma de discricionariedade. De outro modo, em uma dimensão que não é a da disputa eleitoral — e das diferenças que a caracterizam —, localizam-se essas mesmas instituições, voltadas à garantia do interesse geral, em tese, delimitado nos pactos políticos — ou seja, nas constituições —, espaço em que se encontram catalogados os princípios que orientam a comunidade política que os projeta.
Ditadura do Judiciário? Não. Princípios fecham interpretações. E é justamente por isso que tal premissa não significa perceber o lócus de defesa desse espaço constitucional — que são os próprios tribunais — como uma espécie de Babel de sentidos, em que se substitui o voluntarismo do governante ou "das maiorias" pelo decisionismo dos juízes. Isso, afinal, restaria como não mais que o deslocamento do arbítrio de um poder a outro.
O ponto é:
A autonomia é do Direito, que constitui o jogo de linguagem e, idealmente, coloca-se como condição de possibilidade para projetar unidade à forma de vida democrática. Não está num ou noutro poder ou mesmo numa certa abstração popular. O caminho histórico é tortuoso, e disso não se duvida, como a própria atualidade da democracia não nos cansa de mostrar. De todo modo, não há atalhos: a legitimidade democrática não está em uma ilimitada ação executiva ou proposta legislativa, ainda que a voz das ruas — espelhada em maiorias eventuais — assim o peça. Afinal de contas, desse modo, o exercício do poder sempre estaria associado à força. E isso, há de se convir, parece pouco republicano. Substituiríamos o célebre e absolutista "L'État c'est moi" por um novíssimo e "democrático" "Nous sommes l’Etat". Mas e se você, eventual leitor, não estiver entre o "nous", como seria? Eis a pergunta fundamental.
[1] Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/03/04/interna_politica,831913/alexandre-garcia-a-voz-do-povo.shtml.
[2] ROSANVALLON, Pierre. La legitimidad democrática: imparcialidad, reflexividad, proximidad. 1 ed. Tradução de Heber Cardoso. Buenos Aires: Manantial, 2009.
[3] Livre tradução para "para darle cuerpo al afianzamiento de los derechos de la mayoría frente a la voluntad claramente particular de los regímenes despóticos o aristocráticos". ROSANVALLON, Pierre. La legitimidad democrática. op. cit., p. 21.
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