Controvérsias Jurídicas

O crime de homofobia e a legalidade estrita

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

27 de maio de 2021, 8h01

Duas recentes tragédias reacenderam a pauta do combate ao racismo. Em maio de 2020, o mundo assistiu atônito ao assassinato de George Floyd por membros da polícia de Minneapolis (EUA), imobilizado e asfixiado até a morte, após um de seus assassinos ter pressionado o joelho sobre seu pescoço. Nas cenas divulgadas, nota-se o comportamento indiferente dos policiais, os quais, mesmo após ouvirem as suplicas da vítima  "I can't breath" —, continuaram subjugando-a até a morte. Aqui no Brasil, em novembro passado, véspera da comemoração do Dia da Consciência Negra, ocorreu o assassinato de José Alberto Ferreira Freitas, homem negro brutalmente espancado por seguranças de uma rede de supermercados. Pelas imagens, é possível verificar que a vítima, após ser imobilizada, continuou recebendo socos e pontapés até a morte.

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Mesmo sem comprovação explícita de que tais homicídios tenham relação com preconceito racial, é de se indagar se isso ocorreria se a vítima não fosse negra, o que nos leva à reflexão sobre o racismo estrutural encrustado na cultura ocidental, bem como acerca de outras formas de discriminação, como o preconceito por orientação sexual.

O racismo estrutural vai além de discriminações pontuais e se relaciona ao alijamento das minorias em seus nexos de sociabilidade. Não se limita a ofensas ou agressões individuais, em razão de cor, raça, credo, identidade de gênero, orientação sexual ou procedência nacional, mas alcança a construção ideológica de superioridade de determinados grupos sobre outros. Nasce daí a raiz do ódio e do desprezo que explodem em atos de violência e crimes repulsivos.

O respeito mútuo e a dignidade da pessoa humana são pilares de nosso ordenamento jurídico. A Constituição Federal considera princípio constitucional sensível o combate à discriminação e a promoção do bem comum, sem qualquer forma de preconceito.

Em cumprimento a tais mandamentos, a Lei 7.716/89 tipificou como crime o preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Não incluiu, no entanto, em lamentável omissão, a homofobia.

Criou-se, assim, um vácuo de impunidade. Tomemos como exemplo o icônico caso de um jovem que caminhava pela Avenida Paulista quando foi golpeado no rosto com uma lâmpada bastonete fluorescente, pelo fato de ser, a juízo de seus agressores, homossexual. Outro exemplo nefasto, diz respeito ao grupo neonazista "Carecas do ABC", de inspiração skinhead, o qual atacava homossexuais em Santo André. A punição, nesses casos, limitou-se a tipos tradicionais de nossa legislação, como o do artigo 129 do Código Penal (CP), que trata da lesão corporal genérica.

Tais fatos, entre inúmeros outros, reacenderam a discussão sobre a criminalização da homofobia. Na Câmara dos Deputados tramitava o PL 122/2006, equiparando tal prática discriminatória aos crimes da Lei 7.716/89. Sua aprovação, todavia, não ocorreu devido à resistência de grupos conservadores. Até meados de 2014, havia consenso de que os elementos de discriminação da Lei nº 7.716/89 eram taxativos [1].

Tal interpretação foi alterada no julgamento do MI 4733/DF, de relatoria do ministro Edson Fachin, e da ADO 26/DF, de relatoria do então ministro Celso de Mello, ajuizados na Suprema Corte nos anos de 2012 e 2013, sob o argumento de que os incisos XLI e XLII do artigo 5º da Constituição Federal (CF) configuram mandados de criminalização e obrigam o legislador a criar leis contra práticas racistas [2].

Os argumentos trazidos pelos writs foram no sentido de que, como a CF prevê punição a qualquer ato discriminatório e o Congresso Nacional não se manifestou até o momento para editar lei própria sobre a questão da homofobia, tais atos deveriam ser incluídos na Lei nº 7.716/89, mediante interpretação extensiva do conceito de racismo.

Quanto ao MI 4733/DF, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente o pedido, reconhecendo a omissão legislativa e aplicando, com efeitos prospectivos, até que o Congresso Nacional edite lei específica, a extensão dos crimes de preconceito por cor, etnia, religião, raça e procedência nacional à discriminação por orientação sexual e identidade de gênero.

A ADO 26/DF também foi julgada procedente, garantindo eficácia geral e efeito vinculante ao reconhecimento da mora inconstitucional do Congresso Nacional na elaboração de lei específica para incriminação da homofobia. Também foi declarada a inconstitucional omissão normativa do Poder Legislativo, cientificando o Congresso Nacional nos termos dos artigos 103, §2º, CF e 12-H, caput, da Lei nº 9.868/99.

Subsidiando o entendimento da corte, foi dada interpretação conforme à Constituição Federal, reconhecendo condutas homofóbicas como espécies de racismo social, consubstanciadas na segregação e inferiorização de segmentos da sociedade.

Essa interpretação do STF, embora elogiável em seu mérito, não deixa de ser afrontosa ao princípio da legalidade estrita, base de sustentação do Estado de Direito. Enganosa pelo benefício imediato que gera, é perigosa no que tange ao precedente de o Poder Judiciário conferir-se a capacidade de legislar e criar novos tipos penais, bem como admitir explicitamente a analogia e interpretação extensiva em norma penal incriminadora.

Além de estar previsto nos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo 2º, XI, e a Convenção Americana de Direitos Humanos, artigo 9º, o princípio da legalidade encontra fundamento na Constituição Federal, em seu artigo 5º, XXXIX, e é garantia fundamental do cidadão, insuscetível de mudança até mesmo por emenda constitucional (CF, artigo 60, §4º). A reserva legal corresponde à intransigente necessidade de lei para a criação de novos delitos e cominação de suas respectivas penas.

Em que pese a indignação que provocam atos discriminatórios de qualquer natureza, é inequívoco que somente o Poder Legislativo tem competência para criar normas incriminadoras: "Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal" (CF, artigo 5º, XXXIX). Somente a lei em seu sentido formal é apta para criminalizar condutas.

De acordo com Celso de Mello: "Em matéria penal, prevalece o dogma da reserva constitucional de lei em sentido formal, pois a Constituição da República somente admite lei interna como única fonte formal e direta de regras de direito penal, a significar, portanto, que as cláusulas de tipificação e cominação penais, para efeito de repressão estatal, subsumem-se ao âmbito das normas domésticas de direito penal incriminador, regendo-se, em consequência, pelo postulado da reserva de Parlamento" [3].

A aceitação de interpretação extensiva de norma penal incriminadora para satisfazer anseios imediatos de qualquer espécie, por mais nobres que sejam, acarreta danos à segurança jurídica. Além disso, a taxatividade é corolário da legalidade estrita, observando também que falta ainda a descrição pormenorizada dos elementos típicos "homofobia" e "transfobia". Torna-se, assim, excessivamente aberta a operação de adequação típica da conduta humana material à definição abstrata da lei. Assim sendo, o novo entendimento do STF, além de violar os princípios da legalidade e da reserva legal, criou um tipo penal genérico, trazendo insegurança jurídica quanto aos fatos que devam ou não ser enquadrados na Lei de Racismo, a título de delito de discriminação por orientação sexual.

A notória lentidão dos processos de transformação legislativa, refletindo o enorme abismo entre o referencial sociológico e sua regulação abstrata, tem levado nosso Poder Judiciário a suprir esse vácuo, o que é plenamente compreensível, no entanto, a invasão de matéria reservada exclusivamente ao legislador, afronta o princípio da separação dos poderes, acarreta insegurança jurídica e leva ao desequilíbrio do sistema de checks and balances.

Ao Judiciário falta a representação conferida pelo mandato popular, sendo a natureza de sua atuação eminentemente técnica. A tipificação de condutas por interpretação extensiva ou analogia pode ser o início de uma indesejável caminhada em direção a um novo Direito Penal.

 


[1] STF, 1ª Turma, Inq. 3590/DF. Relator ministro Marco Aurélio, j. 12/08/2014.

[2] "Artigo 5º, XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades individuais; XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei".

[3] STF, RHC 121.835, Agr/PE, relator ministro Celso de Melo.

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